Por Cristina Fontenele, na Adital
O Ministério Público Federal (MPF) denunciou, neste mês de fevereiro, dois capitães do Exército brasileiro, Homero César Machado e Maurício Lopes Lima, pelo crime de lesão corporal grave, com o emprego de vários tipos de suplícios físicos e psicológicos, contra a vida de Frei Tito de Alencar Lima, na época da ditadura militar no Brasil. Os procuradores pedem a perda do cargo público dos denunciados, o cancelamento de aposentadoria ou qualquer provento de reforma remunerada de que disponham, e a retirada das medalhas e condecorações obtidas. Familiares de Frei Tito esperam medidas concretas para a consolidação da justiça.
À Adital, Lúcia Alencar, sobrinha do sacerdote, explica que, embora consciente das limitações da Lei de Anistia, que, no momento, não permite que se punam os torturadores pelos seus crimes, a denúncia gera discussão sobre a ditadura militar no Brasil e a permanente tortura na atualidade. Ela parabeniza o MPF que, por meio da Procuradoria da República de São Paulo, realiza a denúncia. “Medidas concretas para a consolidação da nossa Justiça de transição e democracia”.
Lúcia destaca que outro fato muito significativo para esse longo processo de justiça contra a tortura, e aguardado com “muita esperança”, é a atuação de Roberto Caldas, atual presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, em 2010, com os demais juízes da Corte, condenaram o Brasil pelos casos dos 62 desaparecidos na Guerrilha do Araguaia.
Nildes Alencar é uma entre os sete irmãos de Frei Tito ainda vivos. Ela afirma à Adital que a denúncia prova que a carta do Frei, escrita em fevereiro de 1970, expondo as denúncias que sofria nas prisões, era verdadeira, “nunca foi exagero ou farsa de Tito para se pronunciar como mártir da história”. Nildes relata que a família não foi contatada pelo MPF sobre a denúncia. “A meu ver, é de fundamental importância uma posição da família diante disso, para desenvolver um processo de luta democrática”.
A irmã de Frei Tito entende que a denúncia não é uma vingança e sim uma reparação, um reconhecimento do quanto a ditadura sacrificou e martirizou inúmeras famílias. “É um resgate, é abrir nosso peitos, e sentirmos diante da sociedade brasileira que Tito não mentiu, que os que foram à Comissão da Verdade não mentiram, mas, sim, denunciariam o sofrimento que ocorreu”. Avalia também como fundamental o Estado assumir a morte do Frei, declarando assim o ato que cometeram.
Sobre as expectativas, Nildes espera que os torturadores recebam a penalidade merecida e que a denúncia traga esse registro histórico do que ocorria no regime militar. Ela espera ainda que o registro seja ampliado para os livros de história do Brasil. “Um povo sem história pode ser manipulado o mais que puder. Um povo com historia é um povo consciente”.
No entanto, a família teme que, apesar da denúncia, o caso não evolua para resultados efetivos. “O que o MPF vai fazer com isso? Que remédio será dado? Como será tratado para dizer que realmente estamos no processo de democracia?”, questiona Nildes, que defende uma revisão do sistema penitenciário e do próprio Exército brasileiro. “Não se pode dizer que não sabiam, se estava sob o comando deles”.
Nildes destaca a importância do caso de Frei Tito como um marco na luta dos direitos humanos. “Foi a partir da carta denúncia do Tito que os direitos humanos tomaram a frente em relação a todas as torturas”. Porém, mesmo diante dessa relevância, Nildes percebe que o ocorrido com o irmão parece ter sido um “caso à parte” e teme que fique na história como “uma coisa folclórica”, embora o ato de coragem do Frei o tenha transformado em um “doente em vida, morto vivo, sofrendo as agruras de um exilamento, de um banimento, de um expatriado”, desabafa.
Clarisse Meireles – jornalista e coautora do livro “Um homem torturado – nos passos de Frei Tito de Alencar” – também reflete sobre a denúncia do MPF. Para ela, a denúncia é um passo importantíssimo no processo de justiça brasileiro, particularmente neste momento que ela avalia como “grave” para os direitos humanos e para os direitos do trabalhador no país. Momento no qual a Câmara dos Deputados tem agido como um “rolo compressor”, empenhada em votar pautas conservadoras e retrocessos. “As bancadas da Bala, do Boi e da Bíblia são as provas cotidianas de que o Brasil tem urgência não apenas de educação. Ansiamos, também, por memória e verdade: só um país com a coragem de falar sobre o seu passado pode pretender curar suas feridas”.
Sobre a repercussão da denúncia, Clarisse acredita que, talvez, torne mais conhecida a imagem de Frei Tito para os brasileiros. Além disso, a jornalista vê como um início de mudança para a imagem do Brasil. “O único país do Cone Sul entre os que tiveram uma ditadura cruel e violenta a ter deixado impunes os torturadores e membros do esquadrão da morte, através de uma espúria Lei da Anistia, criada para proteger torturadores e assassinos”.
Clarisse defende que as denúncias avancem por toda a cadeia de comando responsável pela criação e ação da Operação Bandeirantes, da qual os dois agentes faziam parte, alcançando também os generais presidentes. E que o Brasil rebatize avenidas, pontes, escolas e aeroportos, substituindo os nomes dos “carrascos”, ditadores e membros dos esquadrões da morte por nomes das vítimas e dos heróis que lutaram pela democracia. “Quem sabe assim avance a proposta de dar o nome de Frei Tito a uma rua de São Paulo, que tem o nome do seu torturador, Sergio Fleury, que há anos espera uma decisão da Câmara de Vereadores”.
Entenda o caso
Frei Tito nasceu em 14 de setembro de 1945, em Fortaleza [Estado do Ceará]. Em 1964, participou das primeiras reuniões e das manifestações estudantis contra a ditadura militar. No início de 1966, ingressou no noviciado dos dominicanos, em Belo Horizonte (Minas Gerais). Em 1968, foi preso durante o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (São Paulo), sendo apontado como o responsável por alugar o sítio para o Congresso.
Detido novamente, em novembro de 1969, com Frei Betto e outros religiosos, em uma operação realizada pela Polícia de São Paulo, os dominicanos foram acusados de apoiarem Carlos Marighella, da Ação Libertadora Nacional (ALN). Frei Tito foi torturado ininterruptamente durante três dias pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, chefe do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).
Em seguida, o religioso foi enviado ao presídio Tiradentes, no qual permaneceu até fevereiro de 1970, quando foi levado para a sede da Operação Bandeirantes (OBAN). Nesse local, o Frei teria sido novamente submetido a crueldades físicas e psicológicas, nesta época pelos denunciados, Homero César Machado e Maurício Lopes Lima, em conjunto com outros agentes não identificados.
Em dezembro de 1970, foi incluído entre os prisioneiros políticos trocados pelo embaixador suíço Giovani Enrico Bücker, sequestrado pelo comando da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Em 1971, foi para Roma, Itália, e, em seguida, para Paris, França, onde foi acolhido no convento Saint Jacques. O religioso acabou se suicidando no exílio francês, em setembro de 1974.