Poder Judiciário viola a Constituição e expõe sua face justiceira aos holofotes da mídia. Entrevista especial com José Carlos Moreira da Silva Filho

“Um poder judiciário forte deve estar preparado para tomar decisões consideradas impopulares, que não agradem os reclamos moralistas e punitivistas da sociedade”, ressalta o jurista e professor

IHU On-Line

No último dia 17 de fevereiro o Superior Tribunal Federal promulgou uma decisão referente a um caso específico, mas significa uma abertura para que a medida seja aplicada em outros processos. Trata-se da decisão que prevê a execução da pena a partir da execução em segunda instância, ou seja, antes que o processo seja concluído e transitado em julgado. Para o jurista e pesquisador José Carlos Moreira da Silva Filho, a medida fere um princípio fundamental da Constituição e se agrava quando se tem em perspectiva o contexto prisional do Brasil.

“Passar um dia sequer preso, tendo a sua liberdade restringida e, no caso específico do sistema carcerário brasileiro, outros direitos básicos além da liberdade, tendo em vista a completa falência das instituições carcerárias, é algo tão grave que suscitou do Poder Constituinte uma questão de princípio, exposta de modo literal no texto constitucional, e declarada cláusula pétrea, a garantia do Habeas Corpus e a presunção da inocência”, alerta o pesquisador em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Para o professor, a medida revela uma relação perversa entre o sistema judiciário e o midiático, onde a isenção pode sair comprometida. “Estamos assistindo a uma guinada do sistema de justiça brasileiro de julgador para condenador, de equidistante e imparcial, para um Poder que se articula com a mídia e com espectros políticos bem definidos e parciais. Assistimos a uma promiscuidade talvez nunca antes presenciada no país entre a ação da imprensa brasileira, que vem se pautando por muitos factoides que ela mesma fabrica, e o sistema de justiça no país, incluindo aí o Ministério Púbico”, frisa.

Em se aplicando essa interpretação para outros processos, o horizonte que se vislumbra continua desfavorável para os “alvos” preferenciais do sistema judiciário no país, favorecendo a manutenção e aprofundamento das desigualdades ao atingir “aqueles que desde sempre são selecionados pelo sistema punitivo, sejam aqueles que serão encarcerados antes do tempo, sejam os demais que já se encontram encarcerados em difícil situação de integridade das suas necessidades fundamentais, que já disputam pouco espaço e estruturas que passarão a ser ainda mais ‘concorridas’”, explica o professor.

O pesquisador ainda constata que “tal decisão favorece o ativismo judicial, desfavorece a integridade constitucional e fomenta esse novo/velho perfil moralizante, midiático e justiceiro que o Poder Judiciário vem assumindo”. Trata-se de um aspecto importante para analisar a fundo a atuação desse sistema e a manutenção da democracia no país.

José Carlos Moreira da Silva Filho é graduado em Direito pela Universidade de Brasília – UnB, tem mestrado em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e doutorado em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Atualmente é Vice-Presidente da Comissão de Anistia, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e Bolsista Produtividade em Pesquisa Nível 2 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma o sr. avalia a decisão do STF em autorizar prisões a partir de decisão em segunda instância?

José Carlos Moreira da Silva Filho – Tratando especificamente da medida adotada neste caso concreto, o do Habeas CorpusHC nº 126.292, que poderá impactar diretamente casos futuros a serem julgados pela Corte e pelas instâncias inferiores, inicio mencionando que as estatísticas de acolhimento pelos tribunais superiores dos recursos interpostos após condenação criminal em segunda instância apontam para o índice aproximado de 25% [1].

Isto quer dizer que cerca de 25% das pessoas que são condenadas em segunda instância conseguem reverter este resultado quando interpõem recursos junto aos Tribunais Superiores (Superior Tribunal de Justiça – STJ e Supremo Tribunal Federal – STF). Caso se mantenha para casos futuros o entendimento adotado pelo STF na fatídica tarde do dia 17 de fevereiro de 2016, o que teremos será a submissão dessas pessoas (repito, 25% do universo de pessoas condenadas em segunda instância) a uma provação indevida e contrária ao Direito.

Passar um dia sequer preso, tendo a sua liberdade restringida e, no caso específico do sistema carcerário brasileiro, outros direitos básicos além da liberdade, tendo em vista a completa falência das instituições carcerárias, é algo tão grave que suscitou do Poder Constituinte uma questão de princípio, exposta de modo literal no texto constitucional, e declarada cláusula pétrea, a garantia do Habeas Corpus e a presunção da inocência.

Alguém poderá arguir que na prática os Tribunais de Justiça já determinam a prisão dos réus mesmo sem o trânsito em julgado, ou seja, mesmo na continuidade do exercício do direito de defesa com a interposição de recursos. Mas há também – o que a decisão tomada pelo STF em 2009 no HC 84.078 exemplifica (decisão que vinha sendo a tônica constante na jurisprudência do STF, agora contrariada pela decisão de 17 de fevereiro de 2016) – a possibilidade de que por via de Habeas Corpus quem foi colocado na prisão após condenação em segundo grau, mas ainda exerce o seu direito de defesa junto aos tribunais superiores, seja posto em liberdade até que o seu recurso seja decidido, o que se ocorrer favoravelmente (com 25% de chances de o ser) o coloca em liberdade permanentemente.

Um dos argumentos ventilados pelo Ministro Teori Zavascki, relator do HC 126.292, é o de que após a segunda instância não cabem mais análises de provas e da materialidade do fato, cabendo apenas a discussão de questões de direito. Ora, esta separação artificial e espartana entre questão de fato e questão de direito violenta a realidade da vida e já havia sido magistralmente denunciada por autores de fôlego da hermenêutica jurídica, dentre os quais destaco Castanheira Neves e Friedrich Muller [2].

Como separar a avaliação jurídica de um fato das normas que o condicionam? O sentido da norma depende da tessitura trazida pelos fatos concretos, não se pode simplesmente “higienizar” um caso propondo uma análise normativa independente do próprio caso. Eis mais um exemplo da patológica distinção entre teoria e prática, um dos maiores males que hoje aflige qualquer processo educativo, de pesquisa ou de construção do conhecimento. Tanto é assim que, repita-se, 25% dos recursos que chegam aos tribunais superiores ensejam a libertação do réu.

Do mesmo modo, é equivocado o argumento de querer justificar a execução provisória após condenação em segunda instância, mesmo com recurso pendente para os tribunais superiores, recorrendo a uma analogia do que determinou a lei da ficha da limpa, visto que aqui não se trata propriamente de uma consequência de caráter penal e de privação da liberdade, mas sim de uma condição de elegibilidade, uma condição eleitoral. São matérias muito distintas.

IHU On-Line – Essa medida pode agravar o contexto do sistema carcerário no que diz respeito ao uso excessivo das prisões provisórias?

José Carlos Moreira da Silva Filho – Este é outro aspecto grave que deve ser examinado é o efeito imediato dessa decisão, caso ela venha a se consolidar, para casos futuros. O Brasil hoje tem cerca de 600 mil pessoas encarceradas (o terceiro país do mundo em número de pessoas presas e talvez o maior em termos de aceleração dos índices de crescimento do encarceramento), das quais cerca de 40% estão em prisão provisória, o que mais do que exemplifica o completo abuso desse instituto.

Isto é, não só temos pessoas que são presas antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, mas também pessoas que são presas sem sequer terem sido julgadas. Esta última situação deveria ser uma exceção relacionada aos casos de flagrante e real necessidade da prisão provisória, no entanto, trata-se de um procedimento banalizado e que se mantém para muito além do prazo legal máximo estabelecido, às vezes por anos [3].

Afora isso, qualquer pessoa minimamente informada sabe muito bem que os presídios e celas do Brasil são verdadeiras masmorras que violam diuturnamente a legislação de execução penal e a própria Constituição ao não garantirem aos apenados e internos as mínimas condições de dignidade. O sistema está completamente falido, as instalações caem aos pedaços, o crime, a violência, a ignomínia são a moeda corrente desses lugares fétidos, insalubres e degradantes.

O curioso é que o próprio STF reconheceu recentemente essa situação calamitosa do sistema prisional, como se viu na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 347, interposta pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL. Não faz muito tempo, foi em setembro de 2015, que o STF, secundando a inovação colombiana, decretou o “estado de coisas inconstitucional” determinando medidas de intervenção orçamentária e estrutural no próprio sistema prisional, o que resultou na exigência aos juízes da realização da audiência de custódia e na liberação da verba do Fundo Penitenciário para a sua finalidade precípua, sem qualquer tipo de contingenciamento.

Como o próprio Presidente da Corte, Ricardo Lewandowski, esclarece, o “estado de coisas inconstitucional” “foi uma medida desenvolvida pela Corte Nacional da Colômbia a qual identificou um quadro insuportável e permanente de violação de direitos fundamentais a exigir intervenção do Poder Judiciário de caráter estrutural e orçamentário” [4].

Diante disso, pergunta-se: qual é a lógica em se determinar que um sistema prisional falido, abarrotado de presos, seja ainda mais precarizado com a prisão dos milhares de réus que hoje aguardam seu recurso de terceira instância em liberdade? O STF que tomou a decisão no HC 126.292 não parece ser o mesmo STF da ADPF 347. Diria que são até mesmo verdadeiras antíteses.

Mas afora a inutilidade e o caráter brutal, violento e precário – similares ao próprio “estado de coisas” do sistema prisional brasileiro – a que ficam reduzidos direitos e garantias com esta decisão, está uma questão ainda mais grave, objeto do segundo olhar que proponho na resposta a esta pergunta: o mortal atentado à Constituição de 1988 no que ela tem de mais elevado e democrático, perpetrado exatamente pelos que têm a missão de protegê-la como principal razão de ser do seu ofício cotidiano.

IHU On-Line – Como essa nova jurisprudência se relaciona com a Constituição Federal? Que conflitos emergem?

José Carlos Moreira da Silva Filho – Como procurei frisar antes, a relativização da presunção de inocência realizada pelo STF, chancelando prática que vinha anteriormente combatendo, é um mal em si. Mas agora afirmo que dentro desse mal há ainda outro maior, e que vem se amoldando em uma cadeia de eventos que não se iniciaram em 17 de fevereiro de 2016, mas que remontam às próprias origens do texto constitucional e ao processo de redemocratização do país.

A Constituição Federal de 1988, gravada simbolicamente na retina dos que foram contemporâneos à sua promulgação com a imagem de Ulysses Guimarães erguendo-a sob a cabeça ao som de aplausos, gritos e êxtases, traduz o marco simbólico e legal da passagem da ditadura para a democracia, do Estado de exceção para o Estado de Direito. Tal marco é reconhecido em seu próprio texto quando no Art.8 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias determina o direito de reparação para os que foram perseguidos políticos até a data da sua promulgação, demarcando o instituto da anistia em sintonia com os cânones democráticos e libertários. Por meio deste artigo, o Estado brasileiro se reconhece devedor de uma indenização aos que outrora perseguiu, ou seja, reconhece a ilicitude dos seus atos de perseguição e deles procura se distanciar.

Em muitos outros artigos da Constituição se pode reconhecer a distância valorativa, simbólica e literal que a nova ordem constitucional quer tomar do Estado ditatorial. Resultado de extensa e legítima mobilização social organizada, já treinada pelos embates das lutas pela anistia nos anos 70 e pelas diretas já nos anos 80, a nova Constituição nasce pródiga em direitos e garantias, tanto de ordem individual quanto social, estabelecendo inclusive o princípio da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental e o princípio da prevalência dos direitos humanos em suas relações internacionais.

A nova Constituição inicia pelo que há de mais essencial nesse novo esforço de fundar juridicamente uma sociedade democrática e mais igualitária: os princípios, direitos e garantias fundamentais. Aqui reside parcela majoritária e inegociável da identidade constitucional firmada no processo Constituinte, e exatamente por isto ela foi blindada contra qualquer possibilidade de reforma constitucional, estando suscetível teoricamente apenas a uma nova, legítima e eventual Constituinte, devendo ainda observar os compromissos internacionais já assumidos e adotados pelo Estado brasileiro. Tal blindagem é conhecida pelo nome de “cláusulas pétreas” (Art.60, §4º), entre as quais está a impossibilidade de reforma para diminuir ou abolir “os direitos e garantias individuais” (Art.60, §4º, IV).

Ocupam lugar de honra no Art.5º da Constituição (dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) os dispositivos que trazem garantias aos indivíduos diante do poder punitivo do Estado. Tais garantias são demarcadas em diversas outras legislações pelo mundo e em tratados internacionais de Direitos Humanos, mas no caso brasileiro elas apontam diretamente para a experiência de arbítrio e não contenção do poder punitivo que o país experimentou ao longo das mais de duas décadas de regime ditatorial.

A sombra da ditadura

Não é por acaso que o grande marco do endurecimento da ditadura foi o AI-5, com a supressão da possibilidade do Habeas Corpus para os que estavam presos acusados de subversão. Prender sem mínimos critérios, com violência, tortura, arbítrio, muitas vezes de modo clandestino, era prática adotada pelos agentes de segurança e chancelada de roldão pelo Poder Judiciário brasileiro, que com as devidas exceções postou-se passivo e conivente diante da exceção.

Em tese de doutorado magistral defendida em dezembro do ano passado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, Vanessa Dorneles Schinke evidencia o alto nível de cumplicidade predominante no judiciário brasileiro com o arbítrio, e isto em diferentes níveis, desde discursos laudatórios à ditadura e duros com aos que a ela se opunham inseridos em suas sentenças até as participações festivas e permanentes em cursos de formação na Escola Superior de Guerra, em solenidades oficiais, em documentos institucionais, e isto em todos os níveis, inclusive e especialmente nas instâncias intermediárias e superiores.

Contudo, o mais sintomático dessa cumplicidade se deve a um caráter quase que estruturante do próprio funcionamento da corporação judicial no Brasil. Apegada aos seus procedimentos, ao seu modus operandi burocrático e ao apagamento contextual do arsenal legislativo à sua disposição, a casta judicial brasileira evitou embates diretos com os governantes ditatoriais e com toda a ordem de interesses sociais que por eles eram representados, considerando em suas decisões, sem a menor cerimônia, a convivência saudável entre a Constituição de 1946, os Atos Institucionais, a Constituição outorgada de 1967 e de 1969, e toda a legislação já existente.

Não se via contradição lógica entre Atos Institucionais e a Constituição que feriram de morte, não se via problema na revogação por decreto autoritário de inúmeras normas da Constituição em vigor, mesmo as da outorgada. É como se tudo que o Estado produzisse e envolvesse fosse um direito de fato, assumido sem mais como fundamento jurídico de decisões judiciais.

Uma vez ocorrida a transição democrática com a promulgação da nova ordem constitucional, tal transição não se fez acompanhar de uma intensa, ampla e necessária depuração institucional do passado autoritário através de mecanismos de justiça de transição. A aplicação de tais mecanismos (comissões de reparação, comissões de verdade, julgamento dos agentes públicos que praticaram crimes contra a humanidade, abertura de arquivos, depurações administrativas, reformas institucionais, políticas de memória e memorialização, entre outros) foi tardia e parcial no Brasil e continua em franco desenrolar, sujeita a chuvas e trovoadas.

Um dos setores que permaneceu incólume nesse processo transicional que ainda vivenciamos foi justamente o Poder Judiciário. Nenhum juiz foi questionado ou denunciado por suas posições de apoio, tanto político quanto jurídico, à ditadura e de inação diante da tortura, do arbítrio e do assassinato da Constituição de 1946 e da ilegitimidade do poder político que passou a ser exercido.

As estruturas, mentalidades e simbologias permaneceram intactas, com mudanças cosméticas que não lograram democratizar o judiciário em suas próprias estruturas ou torná-lo mais aberto às legítimas mobilizações populares organizadas voltadas à reivindicação de direitos e ampliação das garantias, demandas voltadas aos objetivos constitucionais de “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (Art. 3º, I) e de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (Art.3º, III).

Em sintonia com a onipresença militar em saber o que deveria ser exigido em termos de moralidade e desejo do povo (ainda que contra a sua própria vontade, considerada imberbe e imatura), a casta judicial entendeu-se como instância máxima de interpretação sobre a moralidade nacional e sobre as demandas populares, e assim se manteve na democracia, ainda que liberta da rédea curta que lhe impunham os ditadores e militares poderosos.

Todavia, nada podia estar mais distante das aspirações e demandas populares que uma casta moldada desde o Império como um enclave elitista e conservador, pouco afeita ao reconhecimento de um protagonismo político aos movimentos sociais. O que temos hoje é uma crescente criminalização dos movimentos sociais decretada pelo judiciário e uma sensibilidade impressionante aos reclamos de lei e ordem, identificados com o desespero histérico de camadas médias e altas da burguesia nacional diante do incessante assédio aos seus bens e aos seus modos de vida, especialmente quando operados por camadas pauperizadas e periféricas da sociedade, que hoje abarrotam os presídios.

É sintomático que uma das razões oferecidas pelos Ministros que votaram com o relator no HC 126.292 foi a de se atender os reclamos da sociedade. E aí perguntamos: como se ausculta esse hipotético reclamo social? Qual o termômetro para medi-lo? A mídia? O senso comum? O poder superior do magistrado de agarrar no ar o sumo da moralidade social? Alguma pesquisa de opinião? O que leva um juiz a relativizar uma garantia constitucional expressa de modo literal e claro, ainda mais em sede de restrição de direitos quando se sabe que prevalece a interpretação restritiva, em nome de um reclamo social cuja densidade é incerta, etérea, vaporosa, quase esotérica? Aqui é bom lembrar de importante crítica formulada por Ingeborg Maus ao judiciário alemão do pós-guerra e que também serve para o nosso caso. Disse a socióloga alemã:

“Quando a justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social – controle ao qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de organização política democrática. No domínio de uma Justiça que contrapõe um direito “superior”, dotado de atributos morais, ao simples direito dos outros poderes do Estado e da sociedade, é notória a regressão a valores pré-democráticos de parâmetros de integração social.” [5]

Continuando com meu raciocínio neste segundo olhar que proponho, vejo essa decisão do STF em paralelo com aquela que tomou na ADPF 153 em 2010, ação que foi interposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB para questionar a compatibilidade da anistia concedida aos agentes da ditadura que praticaram crimes contra a humanidade diante da nossa Constituição. Poucos meses antes de ir a Plenário, quando o julgamento da ação já havia sido pautado, um dos Ministros do STF, Marco Aurélio Mello, em entrevista concedida em Rede Nacional ao repórter Kennedy Alencar, da Rede TV, afirmou que a ditadura foi um “mal necessário”. Tal declaração passou em brancas nuvens e foram poucos os juristas que manifestaram o seu assombro diante da afirmação insólita vinda de um Ministro da Corte guardiã da Constituição e dos seus valores.

Em um segundo momento, já no julgamento da ADPF 153 nos deparamos com a afirmação feita pelo Ministro Relator da ação, Eros Grau, e secundada pelo Ministro Gilmar Mendes, de que a Constituinte que gerou a Constituição de 1988 não era soberana, já que nasceu com uma limitação imposta pela Emenda Constitucional – EC 26/85 em relação à anistia. O detalhe preocupante nessa tese é que a limitação ao Constituinte seria proveniente de uma Emenda a uma Constituição autoritária e outorgada que com ela partilha das mesmas características.

Nesse julgamento os valores e os sentidos da Constituição de 1988 foram afrontados e o STF simplesmente reprisou o entendimento que a própria ditadura estabeleceu sobre o significado da Lei de Anistia de 1979 [6], isentando de qualquer responsabilidade e apuração judicial os agentes públicos da ditadura que protagonizaram crimes contra a humanidade contra aqueles que deveriam proteger na qualidade de agentes públicos. Aquele acórdão, para além do seu resultado, traz afirmações e fundamentações que já deveriam pôr de cabelo em pé a comunidade jurídica comprometida com os valores democráticos em seu mais amplo sentido.

Na ADPF 153 anistiou-se simbolicamente o poder punitivo descontrolado do Estado ditatorial em plena democracia. No HC 126.292 o poder punitivo do Estado democrático foi ampliado e chancelado ao arrepio do que diz o Art.5º, LVII, rompendo com uma cláusula pétrea em plena democracia, e tal qual os agentes da ditadura que praticaram um crime de Estado contra aqueles que deveriam proteger, os Ministros do STF praticaram um atentado frontal à integridade da Constituição que juraram proteger.

No final de 2015 também já se antevia claramente a ausência de desconforto do STF em violentar o sentido claro e expresso do texto constitucional, e relacionando-se mais uma vez com a privação da liberdade, dessa vez de um Senador da República.

O Senador Delcídio do Amaral, independentemente dos malfeitos nos quais possa estar envolvido, é um Senador eleito pelo voto popular, devidamente diplomado. O art.53, §2º da Constituição afirma que desde a expedição do diploma os senadores não podem ser presos, a não ser no caso de “flagrante de crime inafiançável”.

Em seguida diz que quando ocorrer a prática de tal crime por algum Senador, os autos serão remetidos ao Senado em 24 horas para que pela maioria de seus membros confirme-se ou não a prisão. O grande problema é que o fato pelo qual o Senador Delcídio foi preso não constitui a hipótese, não sendo, a meu ver, nem flagrante e nem crime inafiançável, logo violaram a Constituição tanto o STF, que decretou essa prisão, quanto o próprio Senado, que a confirmou.

Tal fato é de grande gravidade em termos de integridade e respeito à Constituição e já abre claramente o flanco para que no Brasil possa ocorrer algo parecido com o que houve em Honduras, isto é, a deposição de um Presidente eleito pelo voto popular por determinação judicial, com frágil amparo na ordem constitucional e operada por funcionários públicos (sim, os juízes o são) que não foram eleitos para determinarem em nome da vontade popular quem devem ser os seus governantes.

Vemos, no presente, manobras nessa direção claramente assumidas por um juiz ativista e “guardião da moral” como Sérgio Moro e vistas com simpatia por Ministros do Tribunal Superior Eleitoral, como Gilmar Mendes, que, por sua vez, não poupa declarações e pronunciamentos, muitos feitos em julgamento, que comprometem flagrantemente a imparcialidade que um magistrado, ainda mais do STF, deve praticar.

Noto, portanto, que não é de hoje a abertura judicial para violentar o texto constitucional e ocupar o seu lugar por meio da sua sentença moralizante e superior até ao próprio Constituinte. Trata-se de um processo que precisa ser reconhecido, detectado, diagnosticado, denunciado e combatido. Uma coisa é a Constituição ser violada por um cidadão, governante ou parlamentar, estando todos sujeitos ao controle judicial cuja função é exatamente coibir tais violações, outra coisa é o próprio Poder Judiciário em sua instância máxima decidir violar uma cláusula pétrea expressa da Constituição, como ocorreu no HC 126.292, rompendo inclusive com o princípio de vedação do retrocesso em matéria de direitos fundamentais, com sua própria jurisprudência pacificada e trazendo evidente insegurança jurídica.

Diante da violação explícita da nossa Constituição no que ela tem de mais essencial (afinal se esta garantia for hoje relativizada qualquer uma pode ser), ainda que operada pelo órgão judicial máximo do país, cabe opor o legítimo direito de resistência, de todas as formas em que for possível. Vejo aqui um claro paralelo com a possibilidade de desobediência civil. Mas, antes disto, é preciso notar que tal decisão por enquanto só vale para aquele caso e que, ademais, é passível de controle em sede judicial internacional. Fato que já movimenta o Conselho Federal da OAB na direção de uma provocação ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, e que já gerou uma condenação ao Brasil no caso Guerrilha do Araguaia determinando que o acórdão do STF na ADPF 153 não fez o controle de convencionalidade (ou seja, foi contrário ao Pacto de San José da Costa Rica e à própria e copiosa jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, à qual o Brasil se submeteu de livre e soberana vontade) e que são nulas quaisquer disposições de anistia para crimes contra a humanidade.

É provável que se prosperar uma causa que questione a decisão tomada pelo STF no HC 126.292 a Corte Interamericana de Direitos Humanos também condene o país e aponte mais uma vez que o STF não realizou o obrigatório controle de convencionalidade.

IHU On-Line – Que questões embasam essa mudança na legislação e que objetivos elas pretendem cumprir?

José Carlos Moreira da Silva Filho – Não houve uma mudança na legislação, mas apenas uma interpretação do STF que desborda, a meu ver, dos seus limites razoáveis. Na verdade, houve uma tentativa anterior de alterar a Constituição pela via legislativa, buscando estabelecer que o trânsito em julgado se desse após a decisão tomada pela segunda instância, proposta defendida inclusive por um Ex-Presidente da casa, o então Ministro Cezar Peluso.

Caso tal proposta vingasse, penso que não haveria ofensa frontal à Constituição. Importa entender que o trânsito em julgado acontece quando não mais é possível qualquer outro recurso. Se o legislador assim entendesse, ele poderia diminuir ou alterar a quantidade de recursos hoje existentes no âmbito do processo penal, vedando, por exemplo, a via do Recurso Especial (STJ) e do Recurso Extraordinário (STF), e alterando o momento processual no qual ocorreria o trânsito em julgado, que neste caso seria a decisão da segunda instância.

Contudo, tal proposta foi rejeitada pelo Poder Legislativo, que optou pela manutenção da amplitude recursal para os que buscam se defender diante do poder punitivo do Estado. Caso prevaleça a decisão que o STF tomou no dia 17 de fevereiro de 2016, ficará mais do que comprovado o exercício do ativismo judicial, como se legislador ele fosse, e, o que é pior, pelo caminho escolhido nesta decisão, nem mesmo o legislador poderia assim determinar, visto que se trata de cláusula pétrea.

Explicando melhor, é possível alterar pela via legislativa o momento processual em que ocorrerá o trânsito em julgado, mas não é possível determinar que a presunção de inocência acabe antes que se dê o trânsito em julgado. Hoje o trânsito em julgado só se consolida com a decisão dos recursos eventualmente interpostos junto aos tribunais superiores, daí porque fere o Art.5º, LVII (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”) a execução provisória da pena antes que os recursos sejam julgados e decididos.

Que fins justificam a medida

Quanto aos objetivos que medidas como essa buscam cumprir, estamos assistindo a uma guinada do sistema de justiça brasileiro de julgador para condenador, de equidistante e imparcial, para um Poder que se articula com a mídia e com espectros políticos bem definidos e parciais. Assistimos a uma promiscuidade talvez nunca antes presenciada no país entre a ação da imprensa brasileira, que vem se pautando por muitos factoides que ela mesma fábrica, e o sistema de justiça no país, incluindo aí o Ministério Púbico.

São vazamentos seletivos, declarações de efeito, constantes aparições na mídia e em grandes eventos, espetacularizações, violações de sigilos e de devidos processos que favorecem apenas um espectro político e desfavorece o outro. O problema não é haver ou não uma investigação, mas sim um esforço hercúleo para condenar apenas alguns que representam o espectro político adversário, a utilização da delação premiada de modo opressivo, com prisões indefinidas decretadas até que o preso fale algo que se encaixe na narrativa ou na expectativa do juiz, o que enquanto não ocorrer impede a sua libertação em grande parte dos casos.

Tal seletividade indica a exceção e não o Estado Democrático de Direito, pois neste deve prevalecer a igualdade de todos perante a lei. O magistrado não deve se comportar como um justiceiro, mas como alguém que deve julgar de modo imparcial, mantendo reserva e distanciamento dos holofotes. A impressão que hoje se tem da atuação jurisdicional é de um certo gosto pela tribuna televisionada, pela entrevista no jornal, pela reportagem do noticiário. E aí todos querem sair bem na foto.

Ora, um poder judiciário garantista e democrático é justamente aquele que não pode transigir diante da ofensa de direitos fundamentais e da integridade constitucional, ainda que uma massa ignara e desconexa representada e insuflada por orquestrações midiáticas assim o exija. Um poder judiciário forte deve estar preparado para tomar decisões consideradas impopulares, que não agradem os reclamos moralistas e punitivistas da sociedade. Caso perca tal condição, não mais poderá exercer a sua função contramajoritária.

A disposição ativista do sistema de justiça no Brasil, que não tem titubeado em investir contra a própria Constituição e seu patrimônio simbólico, não é um problema deste ou daquele Ministro. Notamos que mesmo juristas considerados sensíveis às pautas de igualdade e emancipação social, conhecidos por entendimentos que buscam a direção democrática e o discurso dos direitos humanos e da vedação do retrocesso, como a meu ver seriam o caso de Luis Roberto Barroso e Luis Edson Fachin, não hesitaram em relativizar o princípio da presunção da inocência no HC 126.292, com todas as consequências que já expus antes.

O Ministro mais veemente na defesa do princípio tal qual resta esculpido no texto constitucional, Marco Aurélio Mello, foi justamente o mesmo Ministro que havia afirmado em 2010 que “a ditadura foi um mal necessário”. Temos portanto um problema sistêmico que atinge o sistema de justiça desenhado na Constituição de 1988. É forçoso reconhecer que esse mesmo desenho não trouxe instrumentos aptos a realizarem a necessária depuração em relação ao judiciário burocrático e opaco da ditadura. Apesar da EC 45/2004 e da criação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, insuficientes por si só para dar conta da tarefa, mantém-se o caráter centralizador, verticalizante e oligárquico da estrutura judicial no Brasil.

Isso pode ser constatado, por exemplo, na inexistência do sufrágio direto exercido pelos magistrados e servidores para a escolha dos presidentes dos tribunais de justiça; no controle dos órgãos de corregedoria pelos tribunais, conformando uniformidades condizentes com o padrão político e ideológico adotado; na presença diminuta de representantes das minorias sociais na composição dos quadros (mulheres, negros, indígenas, LGBT’s etc.); no controle externo limitado, tímido, tardio, incompleto e claudicante; na ausência de critérios que priorizem o conhecimento jurídico em torno dos direitos humanos para a escolha dos Ministros da Suprema Corte (como ocorre em outros países como Argentina e Bolívia).

Acrescente-se a esse quadro o fato de que o mesmo judiciário que se arvora em guardião moral máximo da sociedade é aquele que vem, no mais acabado formato corporativo, defender o recebimento de auxílio-moradia para todos os magistrados, mesmo que possuam casa própria. É o mesmo judiciário que não vê problema algum (e nisto não estão sozinhos, já que outras carreiras públicas como Advocacia-Geral da União – AGU e Ministério Público – MP buscam as mesmas benesses) em receber diversas “verbas indenizatórias” que, somadas ao já alto salário, produzem o efeito prático da superação dos valores estabelecidos pelo teto constitucional (muitas vezes triplicando ou mais o valor já alto do teto), e sem que sobre tais verbas, já que “indenizatórias”, recaia sequer a incidência do Imposto de Renda.

IHU On-Line – A partir dessa decisão do STF, como passa a se situar na legislação o princípio da presunção de inocência? Não há um choque entre essas duas medidas?

José Carlos Moreira da Silva Filho – Na decisão tomada pelo STF no HC 126.292 não houve a declaração de inconstitucionalidade do Artigo 283 do Código de Processo Penal. O artigo diz o seguinte: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Assim, se tal dispositivo do Código de Processo Penal não foi declarado inconstitucional, ele vale. A legislação, portanto, só prevê duas hipóteses na qual está facultada a prisão antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória: prisão temporária ou prisão preventiva. Tal circunstância torna ainda mais anômala e incompreensível a decisão tomada pelo STF no dia 17 de fevereiro de 2016.

IHU On-Line – Em que medida essa decisão pode resolver o problema da impunidade, conforme alega a maioria dos juristas que votaram a favor desta medida?

José Carlos Moreira da Silva Filho – Penso que de nenhum modo. Em primeiro lugar, penso que o problema da impunidade no Brasil é mal dimensionado por declarações como esta e frequentemente pelas coberturas midiáticas e policialescas do tema. Temos um sistema penal que é seletivo, que no seu funcionamento, por diversas razões, desde a formação policial até a atuação judicial e a cumplicidade dos demais poderes instituídos, privilegia o perfil do jovem negro, pobre e periférico (basta visitar os presídios).

O sistema tem optado em seu funcionamento pelo encarceramento em massa desse perfil. Já somos hoje o terceiro país do mundo em número de encarcerados, sendo que, como já assinalado, cerca de 40% desse universo são prisões provisórias. Diante desse quadro, quando se diz que no Brasil campeia a impunidade é preciso no mínimo explicar melhor o que se quer dizer. Analisando os tipos de crimes dos que estão presos hoje no Brasil, nota-se, segundo dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias – InfoPen divulgados no ano passado pelo Ministério da Justiça, que apenas 14% dos encarcerados ali estão pela prática de homicídio, sendo que a maior porcentagem dos crimes é o de tráfico de drogas (27%), seguido pelo de roubo (21%).

Evidencia-se uma clara opção política pela punição e combate ao crime de tráfico de drogas e a crimes contra o patrimônio, opção que apenas timidamente vem sendo questionada, deixando-se em segundo plano os crimes de homicídio. De outro lado, percebemos que os chamados crimes de colarinho branco não chegam a 1% do universo de presos (e quando assumem alguma proeminência midiática, como se notou no caso da Ação Penal – AP 470 e vem se notando na Operação Lava-Jato, o sistema continua a ser seletivo, fechando os olhos para os espectros políticos protegidos e muitas vezes forçando condenações e prisões de indivíduos vinculados aos espectros políticos demonizados).

Também é importante frisar que os agentes públicos que praticaram crimes contra a humanidade durante a ditadura simplesmente nunca foram sequer investigados. Nota-se nisto uma proximidade macabra com o atual baixíssimo índice de policiais condenados pela prática de tortura ou homicídio, ainda que tal prática seja apontada como elevada em diversos relatórios de Direitos Humanos.

Concluo dizendo que existe impunidade, sim, no Brasil, mas voltada para aqueles que são selecionados pelo sistema para não serem por ele atingidos, e que incluem aí os piores crimes, como os crimes contra a humanidade. E, como o impressionante aumento das taxas de encarceramento conjugado com o estado deplorável das cadeias brasileiras vem nos aconselhando, precisamos urgentemente investir em políticas desencarcerizantes. Temos que conquistar a consciência de que o sistema penal não é solução para os problemas sociais, de que a principal e mais eficiente forma de combate à violência não deve ser o emprego de mais violência, e de punições que nem sequer estão de acordo com o Direito, como ocorre no confinamento em celas insalubres abarrotadas de pessoas que por vezes não têm nem mesmo um lugar no chão para dormirem deitadas.

A saída é a prevenção, a conquista da igualdade material, a educação e a construção de uma sociedade mais solidária, participativa e inclusiva, restando o sistema penal para os casos mais extremos e excepcionais, se é que não podem ser tratados de outro modo.

IHU On-Line – Como essa decisão impacta os diversos setores e estratos sociais? Quais devem ser os mais atingidos pela mudança?

José Carlos Moreira da Silva Filho – Importante relembrar que a decisão tomada pelo STF no HC 126.292 só vale para aquele caso concreto, mas indica uma possibilidade preocupante para o futuro. Caso venha a prevalecer este entendimento para casos futuros, os mais impactados serão aqueles que desde sempre são selecionados pelo sistema punitivo, sejam aqueles que serão encarcerados antes do tempo, sejam os demais que já se encontram encarcerados em difícil situação de integridade das suas necessidades fundamentais, que já disputam pouco espaço e estruturas que passarão a ser ainda mais “concorridas”. E de modo mais amplo, tal decisão favorece o ativismo judicial, desfavorece a integridade constitucional e fomenta esse novo/velho perfil moralizante, midiático e justiceiro que o Poder Judiciário vem assumindo.

IHU On-Line – Alguns pesquisadores entendem que a decisão do STF não fere a democracia e alegam que o Brasil estaria seguindo um padrão internacional a partir dessa medida. De que maneira o senhor avalia esse posicionamento?

José Carlos Moreira da Silva Filho – Respeito muito o importante trabalho que o jurista que emitiu tal opinião, Oscar Vilhena, vem realizando junto à organização não governamental Conectas, mas considero lamentável essa declaração. Quando o tema do qual estamos tratando são os direitos fundamentais, o país deve estar afinado com as suas garantias e direitos constitucionais na matéria e com as orientações presentes em tratados internacionais de direitos humanos, especialmente aqueles que ratificou e aprovou internamente.

O fato de um outro país, como os Estados Unidos, adotar um parâmetro diverso para o princípio da presunção da inocência guarda importância infinitamente menor para nós do que aquilo que a nossa Constituição estabelece como cláusula pétrea e que é reforçada por diferentes tratados internacionais, dentre os quais se destaca o próprio Pacto de San José da Costa Rica, ao qual o país aderiu. Oscar Vilhena, em sua entrevista, indica a possibilidade de que o decidido pelo STF pudesse ser obtido pela via preferível de uma Emenda Constitucional (hipótese que não creio ser possível diante da existência de cláusulas pétreas), mas que mesmo não ocorrendo não chegaria a ferir a democracia.

Neste ponto discordo veementemente sem possibilidade de contemporização. Para mim, não se trata de avaliar a adequação ou oportunidade da medida em si (que acho bem questionável como esclareci antes), mas, acima disso, de zelar pela integridade constitucional, o que implica no respeito incondicional aos direitos e garantias fundamentais da Constituição, blindados por cláusula pétrea. Acho triste e preocupante, pré-democrático, que juristas conhecidos pela defesa dos direitos humanos e juízes que deveriam proteger a Constituição façam pouco caso dos limites inquestionáveis da reforma constitucional. E isto, sim, fere a democracia!

Por Leslie Chaves

Notas:

[1] Ver detalhamento dessas estatísticas em pesquisa realizada pela FGV no site: http://direitorio.fgv.br/projetos/habeas-corpus-nos-tribunais-superiores

[2] Ver: MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de uma teoria constitucional, I. Tradução de Peter Naumann. Porto Alegre: SAFE, 1995; MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 2.ed. Tradução de Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 2000; NEVES, A. Castanheira. Metodologia jurídica – problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993; NEVES, A. Castanheira. Questão-de-facto — questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade. Coimbra: Almedina, 1967.

[3] Neste sentido, ver pesquisa coordenada pelo Prof. Rogerio Dultra dos Santos da UFF sobre excesso de prisão provisória no Brasil, apoiada pelo projeto “Pensando Direito” da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, divulgada em 2015.

[4] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=299385

[5] MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade – o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade orfã”. Tradução de Martonio Lima e Paulo Albuquerque. Novos Estudos, n.58, p.183-202. nov. 2000.

[6] Mais detalhes nessa linha sobre a incompatibilidade do acórdão produzido na ADPF 153 com a Constituição de 1988 e com os Tratados e a jurisprudência internacional de Direitos Humanos, ver os capítulos 3 e 10 do meu livro: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Justiça de Transição – da ditadura civil-militar ao debate justransicional – direito à memória e à verdade e os caminhos da reparação e da anistia no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

Imagem: Vermelho.org

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