No Taqui Pra Ti
Num dia de outono de 1972, depois de ver “O charme discreto da burguesia” que acabava de ser lançado em Paris, o escritor amazonense Márcio Souza e eu fizemos uma longa caminhada pela avenida Daumesnil. No momento em que entramos na Praça da Bastilha, ele interrompeu os comentários sobre o filme e me disse num tom provocador:
– Quem diria, hein? Os índios brasileiros ajudaram a derrubar a Bastilha.
Na hora, a afirmação me pareceu tão absurda e delirante quanto dizer que para fazer a bouillabaisse de Marselha – um caldo de peixe com molho apimentado – os franceses se inspiraram na quinhapira dos índios do Rio Negro. São duas receitas que tem em comum o fato de produzirem, ambas, dois pratos deliciosos e sofisticados com peixe e molho de pimenta, mas que nunca conversaram um com o outro. Por isso, pensei que Márcio estava de gozação. Não estava.
É que nós, brasileiros, somos amestrados para achar naturais apenas as influências de lá para cá. A França marcou os movimentos independentistas do Brasil, o pensamento, a ciência, a arte, a culinária, a arquitetura, os hábitos, os modos e modas da sociedade brasileira. Se nos disserem que Villegaignon fabricava poire e foi ele quem ensinou os Tupinambá do Rio a fazer caxiri, a nossa alma vira-lata é capaz de acreditar. O contrário nos choca, não ousamos sequer imaginar qualquer contribuição das culturas indígenas à civilização francesa, sequer o hábito do banho diário.
O “bon sauvage”
No entanto, parece extremamente válido supor que o contato entre povos gera influências recíprocas, mesmo quando se trata de uma relação de dominação e opressão. É via de mão dupla. Foi pensando assim que Affonso Arinos de Mello Franco pesquisou para escrever “O Índio brasileiro e a revolução francesa. As origens brasileiras da teoria da bondade natural”, livro publicado em 1937, que permanece ignorado pela academia. Seu autor é insuspeito, nunca esteve envolvido com as lutas indígenas, sequer simpatizava com os índios. Inicialmente, ele queria saber quais os filosofos gregos que nutriram o ideário da revolução francesa. Acabou encontrando os índios.
Por indicação do Márcio, li o livro de Arinos, cuja hipótese central é a de que os pensadores franceses que contribuíram para a formulação dos princípios e do ideário da Revolução de 1789 estavam fascinados pelo modo de vida dos índios e beberam diretamente, entre outras fontes, nas sociedades indígenas e nas reflexões dos índios. Os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, formulados no plano teórico, tinham referências concretas na forma como os índios viviam e se relacionavam – uma prova palpável e viva de que a sociedade podia ser organizada de forma diferente.
Para comprovar sua hipótese, o jovem Arinos, que nos anos 1930 residiu num sanatório em Genebra, rastreou as obras dos pensadores mais destacados da França, nos séculos XVI, XVII e XVIII, com o objetivo de verificar a relação deles com os índios que viviam no Brasil e em que medida tiveram o pensamento influenciado por esse convívio. Depois de fuçar arquivos e bibliotecas da Europa, o autor assinala dois tipos de contato: um, indireto, através de leituras, e o outro, direto, com os próprios índios.
Relatos e descrições etnográficas dos viajantes, missionários e cronistas europeus sobre o Brasil no período colonial foram lidos e assimilados pelos intelectuais franceses. Crônicas como as de Jean de Léry e André Thevet, que moraram no Rio em meados do séc. XVI, de Claude D´Abbeville e Yves D´Evreux que estiveram no Maranhão no início do séc. XVII, de Jean Mocquet e de tantos outros, tiveram grande repercussão na época, fortalecendo a idealização dos índios e o mito do “bon sauvage”, mas sobretudo registrando suas formas de vida, “sem fé, sem lei e sem rei”.
Os índios na França
Depois de revelar a influência desses viajantes sobre o pensamento dos intelectuais franceses, Arinos fez um levantamento sobre o intercâmbio sistemático e a constante presença na Europa de centenas e centenas de índios provenientes do Brasil. Seu exaustivo balanço mostra que Raoni, no século XXI, foi apenas o último de uma enorme lista de caciques recebidos nos últimos cinco séculos pelos chefes de Estado. Os seis Tupinambá levados a Paris por Claude D´Abbeville foram batizados pelo bispo de Paris tendo como padrinho e madrinha o rei e a rainha da França.
Desta forma, intelectuais de peso tiveram contato direto com os próprios índios, como são os casos de Montaigne, Voltaire e Rousseau, entre outros citados por Arinos. Para escrever o seu ensaio sobre o canibalismo em meados do século XVI, Montaigne, por exemplo, ajudado por intérpretes, manteve longas entrevistas com índios tupi que visitavam a França, e concluiu que Inquisição dominante na Europa estava muito mais distante da civilização do que a antropofagia.
O livro de Arinos reconstituiu a festa brasileira realizada em 1550, em Rouen, na Normandia, com participação de 50 índios Tupinambá do Rio, aliados da França, que recebeu os “primeiros bolsistas” daqui. Esses índios construíram malocas às margens do rio Sena e realizaram uma performance em homenagem a Henrique II e Catharina de Medicis, um combate simulado no qual os Tupinambá e franceses derrotaram portugueses e seus aliados Tabajara, incendiando suas tabas. O êxito foi tal que outras cidades, como Troyes e Bordeaux, entre outras, realizaram festas similares.
Muitos índios que visitaram a França são citados, como o chefe potiguar Soro-bebé, “o primeiro exilado político brasileiro”, cuja história é narrada por Arinos, que reproduz documentos arquitetônicos, como a imagem de um friso no interior da igreja de S. Jacques, em Dieppe, de 1530, no qual estão representados índios provenientes do Brasil ou o baixo relevo esculpido em madeira, de 1551 – uma espécie de “história em quadrinhos” da Festa de Rouen – que estava na fachada de uma casa de madeira chamada Ilha do Brasil e hoje pertence ao Museu das Antiguidades, que tive oportunidade de visitar em companhia da fotógrafa Cláudia Andujar.
Para Sérgio Rouanet, o livro de Affonso Arinos, começado em 1932, é uma contribuição relevante para a história das mentalidades, que mantém sua atualidade 80 anos depois. “A atualidade vem do fato de que Arinos trabalhou em grande parte com fontes primárias e que nesse sentido sua bibliografia não ficou obsoleta” – escreveu Rouanet, lembrando que efetivamente o Brasil, através dos índios, “forneceu a matéria prima para a produção, na Europa, de teorias revolucionárias”.
O livro de Arinos, por seu caráter provocador e instigante, foi reeditado, mas sem muito alarde. Sua leitura nos leva, no mínimo, a não considerar absurda a afirmação inicial e nos conduz a uma indagação inquietante: por que os ideólogos da Revolução Francesa foram influenciados pelas sociedades indígenas, mas o mesmo não ocorreu com os teóricos dos movimentos políticos e sociais do Brasil?
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P.S. O tema acabou me sendo sugerido indiretamente pela doutora Ana Paula da Silva que defendeu, nesta última quinta-feira a tese “O Rio de Janeiro continua índio: território do protagonismo e da diplomacia indígena no século XIX” no Programa de Pós Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Na banca José R. Bessa Freire (orientador), Isabel Missagia (UFRRJ), Marcos Albuquerque (UERJ), Amir Geiger e Sofia Débora Levy (UNIRIO) .