A racionalidade binária e a ruína da República: derrocada da democracia, por Salah H. Khaled Jr. – [Imperdível]

Em Justificando

E eis que tudo se encaminha para seu final. A história não se repete como tragédia, mas como farsa. O formidável insight de Marx (sinta-se livre para me etiquetar caso deseje) permite que o intérprete se coloque em um ponto de vista relativamente privilegiado: o de quem é suficientemente sensível para perceber que o quadro que estamos testemunhando já estava esboçado há muitos meses atrás. Ele consiste na simples confirmação de algo que era muito mais do que uma mera hipótese alcançável: o ponto de chegada representa a culminância de um esforço meticulosamente planejado de destruição de alvos previamente definidos, sem que exista qualquer restrição diante dos potenciais efeitos colaterais que podem decorrer do eventual sucesso da empreitada.  Mas antes que eu possa estruturar aqui um lamento – quase que um elogio fúnebre – à agonizante democracia, é preciso recapitular retrospectivamente – o que é necessariamente um empreendimento falho – as próprias condições de possibilidade do golpe devastador que é direcionado contra a presidente democraticamente eleita, mas que não atinge somente ela e seu partido.

É preciso que se tenha a dimensão exata do que representa o esforço em curso: ele também atinge as instituições a que pertencem boa parte dos progenitores do próprio golpe, que é construído a partir do Judiciário, de forma manifestamente ilegal, em clara violação às regras do jogo. E não há democracia sem respeito às regras do jogo. Não há democracia quando as práticas judiciárias não são mais do que argila manipulável conforme as predileções morais e políticas de quem exerce um simples poder discricionário que a nenhum critério objetivo obedece.

Um golpe construído judicialmente é particularmente grave, mesmo para um país com tradição golpista como o nosso. Vivemos tempos especialmente sombrios, uma vez que a legalidade democrática não é violentada pela força das armas ou sequer pela ameaça de emprego dessa força. O ataque parte exatamente de instâncias que deveriam assegurar sua manutenção e efetividade e que, para isso, devem compreender que sua função é contramajoritária, ou seja, não está na serventia da vontade de uma maioria (ou de uma pretensa maioria), mas na garantia de direitos fundamentais que são essenciais para a sobrevivência da democracia.

Para quem compreende que uma finalidade utilitária justifica qualquer meio, não há problema algum em tudo isso. O que importa é o quanto parece próxima a estocada final. No entanto, embora essa apreciação superficial seja predominante em certos círculos, o que estamos presenciando é extremamente grave e produz uma crise profunda, que afeta de forma drástica a credibilidade das instituições e deixará chagas potencialmente irrecuperáveis. Quem não tem o seu bom senso afetado pela disseminação irrestrita da racionalidade binária – que logo discutirei – percebe claramente que o que está em jogo é muito mais do que a permanência de Dilma Rousseff na Presidência da República. Sem dúvida é um governo muito ruim: mas o impeachment não é um mecanismo apropriado para a retirada de governos ruins ou indesejados por uma parcela da população. Corremos sérios riscos de destruir um bem muito mais precioso do que qualquer indivíduo ou partido seletivamente etiquetado. Quando as chamas atingirem seu máximo esplendor, é pouco provável que alguém não saia chamuscado. A governabilidade pode se tornar uma promessa inalcançável – para qualquer partido ou governante – caso os mesmos pressupostos de enfrentamento político sejam admitidos como aceitáveis para circunstâncias análogas.

Como chegamos ao limiar da destruição mutuamente assegurada? Como deixamos de lado todos os protocolos de legalidade – e civilidade (!) – e atingimos o DEFCON 1 da Nova República e do própria democracia pela qual se lutou durante duas décadas de regime de chumbo de Ditadura Civil-Militar?

Por mais alarmante que tudo isso possa soar, não é exatamente algo sem precedentes. O Brasil tem suas peculiaridades e traços distintivos. Não falo de estereótipos. Existe algo que caracteriza o país muito mais do que os lugares comuns do samba, carnaval e futebol: o autoritarismo. No Brasil a exceção é de fato regra, como em poucos lugares do mundo. E a nossa história republicana comprova isso. A legalidade democrática é exceção – “ponto fora da curva” – na normalidade autoritária que caracteriza nossa política, repleta de regimes ditatoriais e rupturas autoritárias. Uma rápida passagem pela história republicana demonstra isso com enorme facilidade. A tentação autoritária sempre esteve presente e não se pode dizer que tenha havido grande resistência ao conjunto de efeitos de sedução que ela emprega. Uma parcela da elite brasileira historicamente demonstrou uma disposição pragmática impressionante. Concordou em abrir mão do exercício do poder político e eliminar ou restringir de tal modo a representatividade que da democracia nada restou além do nome. E fizeram isso sem pestanejar justamente porque o que mais importou (naqueles contextos) foi a manutenção de uma estrutura social excludente e verticalizada, cujo sentido consistia na permanente sujeição dos desfavorecidos diante daqueles que pelo seu capital político, econômico e social tinham maiores condições de formatar e reformatar as regras do jogo.

Portanto, temos aí um primeiro ingrediente: existe uma verdadeira tradição de aceitabilidade de deformação/destruição/usurpação das regras do jogo e do próprio poder político. Ela torna racionalizável essa saída quando o jogo não transcorre de acordo com a vontade de certos grupos, que não hesitam em empregar esse detestável recurso.

Como referi anteriormente, a forma que o golpe assume na atual conjuntura tem uma especificidade: ele é fundamentalmente construído a partir do Judiciário, ainda que o Legislativo venha a ser – provavelmente – o algoz responsável pelo derradeiro gesto golpista.  Em outra oportunidade discuti como uma determinada epistemologia capacita o processo penal para o extermínio de inimigos eleitos, uma vez que dá ao gestor da prova – o inquisidor – a possibilidade de confirmação de hipóteses previamente estabelecidas. Conectei historicamente o que chamei de processo penal de extermínio aos parâmetros sistematizados por Eymerich no Manual dos Inquisidores, ao Código de Instrução Criminal de Napoleão, ao universo dogmático fascista de Manzini e – como não poderia deixar de ser – ao Código de Processo Penal brasileiro do Estado Novo de Vargas. Demonstrei como uma tecnologia repleta de ódio é uma espécie de legado do passado: como sua tradição foi transmitida de geração a geração, sempre preservada em nome da utilidade que representa o aparato processual para o esquadrinhamento da realidade. Mostrei inclusive que essa tecnologia foi recepcionada pelo próprio STF recentemente (veja aqui). Ao fazer isso não relatei nenhuma novidade: trata-se de uma discussão consolidada na literatura processual penal comprometida com a democracia e com o sistema acusatório, que é necessariamente um de seus sustentáculos. Embora um sistema processual não possa ser definido (somente) com base em seu índice democrático, a conexão entre sistema acusatório e democracia é mais do que visível, salvo para desavisados ou para quem intencionalmente nutre desprezo por ela.

A epistemologia que relatei já é suficientemente destrutiva por si só. Mas seu potencial para aniquilação de corpos é elevado geometricamente com a introdução da lógica espetacular que convoca a própria população para o rito de destruição, provocando efeitos colaterais cuja extensão é verdadeiramente imprevisível (veja aqui). Para a consecução da finalidade de comoção popular, o papel da grande mídia é essencial e contribui decisivamente para a extensão do processo de deformação ilegal a que é submetido o que deveria ser um mecanismo de redução de danos: a instrumentalidade processual penal (veja aqui).

A questão que imediatamente surge – e que foi discutida por muitos autores – é se o processo penal pode salvar uma democracia percebida como debilitada, ou mais especificamente, uma democracia corroída por um fenômeno que não consiste exatamente em uma “crise” contemporânea. Pode o processo exorcizar um fenômeno de longa duração, que possivelmente é constitutivo e não tem como ser extirpado do Estado, ou seja, a corrupção? Para o alcance dessa finalidade, pode ele ser submetido a um intolerável nível de deformação ilegal, que faça dele nada mais que um meio para um fim definido como desejável, por mais sedutor que tal fim possa parecer? Pode o processo desempenhar de forma competente tão nobre missão?

Muitas pessoas acreditam que sim, embora acreditem de uma forma bastante peculiar: supõem que a corrupção é atributo exclusivo de um dado grupo de pessoas, ligadas a um partido específico – o que é manifestamente desmentido pela realidade das próprias investigações – e com isso estão dispostas a apoiar quaisquer medidas potencialmente capazes de extirpar o câncer que assola a nação. Que a população em geral possa pensar dessa forma não é algo necessariamente assustador e surpreendente: não há uma compreensão aprofundada do que é cidadania, o que é em grande medida pode ser atribuído ao quanto é recente a discussão e implementação de direitos civis no país. O grande problema ocorre quando as próprias instituições passam a operar com base nessas diretrizes. Não somente como receptoras dessas expectativas punitivistas, mas como efetivamente produtoras de forma ativa das expectativas em questão, o que somente é possível através de uma aliança entre esferas judiciais e midiáticas que facilita a disseminação de uma economia moral de ilegalidades que simplesmente torna tudo possível no processo (ver aqui).  

Portanto, o segundo ingrediente consiste na recepção de uma tradição autoritária de processo penal, na maximização de seu potencial de destruição com o acréscimo da dinâmica espetacular e, finalmente, na elevação do potencial danoso do aparato pela compreensão de que ele é um meio adequado para o combate à corrupção mediante uma desavisada aliança entre esferas judiciais e midiáticas, que se sentem legitimadas por uma economia moral que permite a prática de ilegalidades para combater outras supostas ilegalidades.

Apesar de tudo que relatei, creio que nada disso seria possível sem que a racionalidade binária tivesse alcançado um nível de disseminação absolutamente inédito e surpreendente. O país é hoje refém de um pensamento simplificador que acirra ânimos, constrói polaridades e faz de seres humanos caricaturas que simplesmente odeiam imagens demonizadas de inimigos que se encontram no lado oposto. Em outras palavras, somos um país dividido em coxinhas e petralhas.

Faço aqui um mea culpa. A academia é parcialmente responsável pela disseminação desse pensamento. Não diretamente, é claro. Mas nós decidimos que o confinamento na torre de marfim acadêmica era algo aceitável e até mesmo desejável. Enquanto isso, uma pseudointelectualidade canalha vigorosamente se dedicou ao empreendimento de adestramento moral da população, através da disseminação de uma cultura fascista de desprezo pelo outro, o que vale para qualquer um que seja minimamente diferente. Basta o desvio de um dado padrão do que é moralmente aceitável para que a pessoa possa se tornar objeto de um discurso abjeto de ódio, que não se assemelha sequer remotamente a uma direita intelectualmente respeitável (leia aqui).

O discurso de ódio atingiu um alcance tão gigantesco que a mera condição de aliado circunstancial de quem é vítima de uma ilegalidade já basta para fazer da pessoa nessa condição receptáculo do mesmo ódio. Dito de outra forma, não defendo o PT, Lula e Dilma senão circunstancialmente, no âmbito do combate à proliferação irrestrita de ilegalidades cometidas por aqueles que os perseguem fora dos ditames legais. Minha defesa é da legalidade democrática, o que significa defender a todos, inclusive aqueles que não percebem que se tornaram reféns de uma racionalidade binária que mata a própria possibilidade de pensar. Não enxergam que o aparato pode ser voltado facilmente contra eles próprios. A extensão do ódio é tão grande que a criminalização da advocacia se tornou algo aceitável – pela lógica do ódio circunstancial –, ainda que o seu exercício seja fundamentalmente indissociável da democracia e sua fragilização a comprometa quase que irremediavelmente (veja aqui).

Portanto, o terceiro ingrediente é o discurso de ódio. Ele cega quase que completamente as pessoas e impede que percebam o que de fato está em jogo neste jogo. Não vejo motivo para reiterar as críticas sobre as inúmeras ilegalidades que envolvem a condução coercitiva de Lula, o grampo e vazamento seletivo de telefonemas com intenção de influenciar a “opinião pública” e assim por diante (veja aqui). As ilegalidades são tão visíveis, claras e cristalinas que não é necessária uma demonstração. Mas isso não impediu que valorosos professores empreendessem esforços nessa direção, literalmente desenhando de forma clara a extensão do que representa a violação. Para uma leitura nesse sentido, veja aqui o formidável texto de Geraldo Prado. Devo também recordar que o argumento da “obstrução de Justiça” para justificar a suspensão da nomeação de Lula não resiste a um exame minimamente racional (veja aqui). Pelo contrário. O episódio escancara o que já é visível por olhares que não estão poluídos pelo ódio: grande parte das práticas que envolvem o circo midiático-processual que estamos testemunhando é flagrantemente ilegal e imoral.

É preciso dar um basta em atitudes que deliberadamente estimulam o conflito social e potencialmente podem causar inúmeras mortes. O preço de tudo isso pode ser muito, muito elevado. A democracia não pode conviver com práticas absolutamente ilegais e que nitidamente decorrem de juízos morais. Estão arruinando a credibilidade das próprias instituições a que pertencem, o que é extremamente perigoso para a sobrevivência do regime democrático. Os responsáveis por essas irregularidades devem enfrentar as consequências de seus atos. É o que a legalidade impõe e exige. O corporativismo deve ser deixado de lado. Certas iniciativas envergonham a magistratura e não representam de modo algum a envergadura e a dignidade dos juízes brasileiros.

É em tom de desabafo que escrevo que temo pelo “câmbio paradigmático” que está sendo fundado aqui. Os limites do que é ou não aceitável para um magistrado estão sendo esticados até o ponto de ruptura. A corrosão institucional é incalculável. Existe um limite de deformação suportável pelas instituições democráticas. E ele está sendo irresponsavelmente ultrapassado. Os piores temores de todos que lutam por um processo penal de corte acusatório e democrático estão se materializando diante dos nossos estarrecidos olhos. A conivência com ilegalidades pode nos conduzir ao que parecia recentemente impensável: a reiteração do nosso triste passado autoritário.

Pode a democracia acabar assim? Não com uma explosão, mas com um lamento? Eis a farsa desvelada: o que foi anunciado como promessa de salvação está efetivamente matando a democracia, que agoniza e acumula ruínas a cada dia, queimada na fogueira de vaidades dos devotos da racionalidade binária. Apostam irresponsavelmente no autoritarismo, o que faz com que o estado de polícia cresça cada vez mais. Desprovido de controles, ele engolirá a própria República. Engolirá a todos, sejam coxinhas, petralhas ou pessoas que não são reféns de formas precárias de ideologia.

O pensamento simplificador sempre produziu cadáveres. O ódio que ele provoca sempre causa destruição. Dessa regra não há exceção e não há escapatória. Ninguém flerta impunemente com o desastre e sai ileso para contar a história da façanha. Entrar em uma ditadura – mesmo que velada – sempre é fácil. O caminho pode ser banalizado subjetivamente e a construção do golpe, um esforço rotineiro do dia a dia. Mas sair dela não é tarefa fácil. Pode levar décadas.

Gostaria de pensar que aprendemos a lição. Não parece ser o caso. Resistência democrática é o que resta para um simples professor com limitada capacidade de intervenção na realidade. Obrigado por ter me honrado com seu tempo. Um grande abraço!

Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.

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