A face da escravidão contemporânea

Karina Toledo, de Michigan | Agência FAPESP

Embora a escravidão tenha sido formalmente abolida no Brasil em 1888, ainda nos dias de hoje é possível encontrar no país trabalhadores submetidos a condições análogas a de escravos.

De acordo com um balanço divulgado recentemente pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS), somente em 2015, o problema foi detectado em 90 dos 257 estabelecimentos fiscalizados e um total de 1.010 pessoas foram retiradas de condições de emprego consideradas degradantes.

Na tentativa de compreender quais são os fatores que caracterizam o fenômeno da escravidão contemporânea, a historiadora e professora da University of Michigan Law School Rebecca Scott tem se dedicado a estudar documentos produzidos por funcionários do MTPS durante as ações de fiscalização.

O projeto vem sendo realizado em parceria com o juiz federal e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Carlos Henrique Borlido Haddad e com Leonardo Augusto de Andrade Barbosa, analista legislativo na Câmara dos Deputados, em Brasília.

Um escopo do trabalho foi apresentado por Scott no dia 29 de março, em Ann Arbor, em Michigan, Estados Unidos, durante a programação da FAPESP Week Michigan-Ohio. O evento, que termina hoje (1º/4) na cidade de Columbus, em Ohio, tem o objetivo de fomentar novas colaborações entre pesquisadores paulistas e norte-americanos.

“A campanha de erradicação do trabalho análogo ao escravo que vem sendo realizada no Brasil desde meados dos anos 1990 – e que se fortaleceu principalmente no início do século 21 – reúne diversas entidade governamentais e não governamentais e tem gerado o que os historiadores mais almejam: um vasto material documental. Não conheço outro país com um trabalho tão sistemático nesse campo”, afirmou Scott em entrevista à Agência FAPESP.

A análise dos processos gerados a partir da fiscalização do MTPS, disse Scott, permite aos pesquisadores irem além do campo especulativo e conferir quais são as condições reais que levam promotores e juízes a condenar pessoas por exploração de trabalho escravo.

“Nos permite examinar conceitos legais, entender como os fiscais e os promotores fazem o diagnóstico da situação quando visitam os locais de trabalho e observar como esses conceitos legais estão evoluindo na sociedade”, disse.

A colaboração com os juristas brasileiros começou há cerca de dois anos, quando eles estiveram em Michigan para cursar o pós-doutorado. Haddad tinha experiência prática no assunto, pois já havia julgado diversos casos de empregadores acusados de explorar trabalho escravo. No ano de 2009, na Vara Federal de Marabá, no Pará, ele julgou em um só bloco 32 processos e condenou 27 pessoas.

“Haddad acredita que toda a sociedade é prejudicada quando esse tipo de situação é mantida impune. Já Barbosa estava muito interessado em estudar como a legislação foi escrita e como foi se modificando”, contou Scott.

Na condição de historiadora, Scott disse estar interessada particularmente na definição do conceito de escravidão contemporânea. “O uso desse termo tem a intenção de fazer uma analogia com circunstâncias presentes no Brasil até o século 19. Mas como usar essa metáfora sem cometer um erro? Não podemos diminuir as características únicas do processo de escravização de africanos no século 19. Definir a linha entre escravidão e liberdade é algo crucial para que a campanha para erradicação do problema avance”, avaliou Scott.

Segundo a pesquisadora, as análises têm mostrado que são consideradas “condições análogas à escravidão” aquelas em que as violações dos direitos trabalhistas ultrapassam um certo limite e passam a ferir a dignidade humana.

“Muitas vezes os empregadores percebem a vulnerabilidade de seus trabalhadores e atuam para multiplicar essa vulnerabilidade e, assim, diminuir o grau de autonomia que aquela pessoa tem para aceitar certas condições de trabalho. Outro componente são as condições de trabalho propriamente ditas. Há décadas pesquisas têm mostrado que a escravidão tende a colocar seres humanos em condições similares a de animais, como dormir ao relento, por exemplo”, explicou.

Novas fontes

Além dos documentos do MTPS, o grupo pretende em breve analisar o acervo do Ministério Público do Trabalho (MPT) da 15ª Região – Campinas, que está sendo digitalizado com apoio da FAPESP no âmbito do Projeto Temático “Entre a escravidão e o fardo da liberdade: os trabalhadores e as formas de exploração do trabalho em perspectiva histórica“, coordenado pelo professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Fernando Teixeira da Silva, que integra a equipe do Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult).

Conforme relatou no evento Sidney Chalhoub – que hoje é professor da Harvard University, mas já foi docente da Unicamp e ainda integra a equipe do Cecult –, o acervo do MPT corria risco de ser destruído por falta de espaço para armazenamento e foi salvo graças ao financiamento da FAPESP que permitiu sua digitalização. Atualmente, a base de dados conta com um total de 3.228  ichas, sendo que 1.053 já estão disponíveis para consulta pública na Unicamp.

“Boa parte do material da Justiça do Trabalho já foi destruída por falta de espaço para armazenar, o que é uma pena. São fontes riquíssimas para historiadores estudarem a experiência dos trabalhadores em uma determinada época. Muito do que sabemos hoje a respeito da escravidão se originou em processos criminais e cíveis em que trabalhadores analfabetos tiveram seu depoimento colhido”, disse Chalhoub.

Além de Scott e Chalhoub, participaram da sessão dedicada a temas de legislação e justiça social os professores de História da University of Michigan Paulina Alberto, Jean Hébrard e Sueann Caulfield, além da brasileira Eduarda La Rocque, coordenadora da iniciativa Pacto do Rio – que une representantes da sociedade civil, academia, órgãos públicos, parceiros privados e de organismos internacionais para promover e monitorar o desenvolvimento sustentável da Região Metropolitana do Rio.

Para mais informações sobre a FAPESP Week Michigan-Ohio acesse AQUI.

Em parceria com juristas brasileiros, a historiadora norte-americana Rebecca Scott analisa documentos do Ministério do Trabalho e da Previdência Social para compreender os fatores que caracterizam o trabalho análogo à escravidão nos dias atuais (foto: Marco Evangelista/Wikimedia Commons)

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