Por Keila Maia. na Fiocruz
Para tentar entender os motivos que teriam levado à cassação dos pesquisadores, é preciso voltar no tempo e lembrar as origens do Instituto. O livro Manguinhos – do sonho à vida-, coordenado por Jaime Benchimol, relata que quando a Fiocruz ainda era Instituto Soroterápico, Oswaldo Cruz conseguiu fazer arranjos que permitiram conciliar a pesquisa básica com a aplicada. Ou seja, produziam-se as vacinas, atendendo aos interesses governamentais mais imediatos e, com os recursos provenientes dessa produção, eram oferecidas condições e infraestrutura para que os cientistas trabalhassem nos estudos que considerassem relevantes. Foi assim durante muito tempo, até mesmo após a morte de Oswaldo Cruz. Mas aí veio o Estado Novo (em 1937), adotando uma política administrativa centralizadora e, com isso, o Instituto perdeu autonomia financeira. Os conflitos internos causados pelas divergências em torno do que deveria ser prioridade começaram a aparecer e, com o passar do tempo, foram acentuados.
Em 1951, foi criado o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq, hoje Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), proporcionando certo alívio para o grupo dos estudos experimentais, já que destinava recursos à pesquisa menos imediatista, ou seja, a básica. E é também para defender essa corrente que surge, no início dos anos 60, um movimento em prol da criação de um Ministério da Ciência e da Tecnologia. Os pesquisadores Herman Lent e Haity Moussatché estavam entre os principais propagadores dessa ideia.
No artigo Massacre de Manguinhos: Crônica de uma morte anunciada(publicado nos Cadernos da Casa de Oswaldo Cruz, em 1989), a cientista política Wanda Amilton, relata que, com o golpe militar de 1964, os pesquisadores que defendiam a prioridade da pesquisa aplicada ganharam força. O médico Francisco Rocha Lagoa era um deles. Ele havia frequentado a Escola Superior de Guerra e, por isso, em 1965, foi escolhido para assumir a direção do Instituto Oswaldo Cruz (IOC). Os cientistas que lutavam pela criação do Ministério da Ciência e da Tecnologia passaram a ser acusados de subversivos. Os que tinham cargo de chefia foram afastados da função pelo então ministro da saúde, Raymundo de Britto, que dizia ser necessário afastar as ideias exóticas de Manguinhos. Paralelamente, tem início a temporada de investigações, por meio das Comissões Gerais de Inquérito, instaladas em todas as esferas do governo. O intuito era apurar a existência de ideias comunistas nas instituições.
“Todos eram chamados para depor. As perguntas eram: Você é comunista? Faz parte de algum partido político? Você faz alguma atividade política no IOC? Tem algum tipo de relação com ativista de partido? ”, relembra José Jurberg, coordenador do Laboratório Nacional e Internacional de Referência em Taxonomia de Triatomíneos do Instituto, que foi convocado para depor em um inquérito do Cenimar, órgão da Marinha, juntamente com mais 13 pesquisadores, entre eles os dez cassados. “Como respondi ‘não’ a tudo, fui liberado em cinco minutos. Tempos depois, fiquei sabendo que fui considerado um comunista recuperável”, conta.
Os inquéritos e também outras intimidações geravam um clima de desconfiança entre os colegas de trabalho. O próprio Rocha Lagoa era quem, muitas vezes, criava os constrangimentos. “Uma vez, estávamos no refeitório, e o garçom que servia o diretor veio dizer que ele estava me chamando para sentar à mesa dele. Assim que sentei, ele disse que o IOC pagaria um mestrado para mim na Inglaterra. Em seguida, começou a perguntar se, no meu setor, havia alguém propagando ideias políticas. Respondi a ele que não sabia nada desses assuntos. E, no resto do almoço, ficou aquele silêncio constrangedor”, conta Jurberg, que não aceitou a proposta de ir à Inglaterra.
Planos do Pentágono
Seguindo as orientações do Ministério da Saúde, Rocha Lagoa também determinou que qualquer recurso financeiro que entrasse no IOC deveria passar pela direção. Assim, os cientistas que desenvolviam projetos em parceria com outras organizações deixaram de receber os repasses. Walter Oswaldo Cruz, da Divisão de Patologia, foi um dos atingidos diretamente pela medida, uma vez que realizava pesquisas por meio de investimentos vindos da Fundação Ford e Fundação Rockfeller. O laboratório dele, segundo relatos, chegou a ser lacrado pela direção do IOC. Em 1967, Walter teve um infarto fulminante e morreu.
Ao todo, houve três inquéritos no IOC, o último em 1966. Nada se provou contra qualquer dos pesquisadores. Foi por isso que, naquele 1º de abril de 1970, a notícia da cassação surpreendeu a todos. A maioria dos pesquisadores entendeu que a medida foi puramente por questões pessoais. Para alguns deles, Rocha Lagoa, que havia sido nomeado ministro da saúde em 1969, teria usado o novo cargo para concluir um projeto de vingança pessoal.
Em seu livro O Massacre de Manguinhos, Herman Lent cita algumas situações em que confrontou o diretor e atribui a elas a razão de ter sido cassado. Um dos trechos diz: “Logo que assumiu a direção, o Rocha Lagoa veio visitar os laboratórios e, discorrendo sobre os planos para o instituto, disse que eles se baseavam na orientação do Pentágono. Surpreso com a afirmativa, ainda pude conseguir fôlego para dizer-lhe que não sabia que o Pentágono possuía planos para direção de instituições científicas no Brasil. E não pude deixar de emitir sonora gargalhada, quando Lagoa afirmou que aquele organismo possuía diretiva para todo e qualquer caso que se apresentasse em qualquer lugar do mundo.”
Às pesquisadoras da COC, Haity Moussatché relatou uma visão diferente. Para ele, a cassação aconteceu porque eles faziam parte de um grupo que queria algo diferente, ou seja, a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia, que poderia incentivar as pesquisas básicas. “Estávamos seguindo uma linha contrária às direções que o mundo tomava. Não era um problema nosso, nem do Brasil, era do mundo inteiro”, relatou.
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