O preço do “capitalismo verde”

Com críticas à privatização da natureza e mercado de carbono, participantes de debate em SP afirmam: saída para crise ambiental é ação política, e inclui mudanças nos padrões de consumo e desperdício 

Por Daniel Santini, Outras Palavras

A Fundação Rosa Luxemburgo (FRL) realizou em São Paulo o debate internacional “Quem tem medo do capitalismo verde?”, com a participação da jornalista Daniela Chiaretti, do jornal Valor Econômico; do cientista político alemão Thomas Fatheuer, integrante da rede Cooperação Brasil (KoBra); do diretor do departamento internacional da FRL, o também alemão Wilfried Telkämper; e do ativista ambiental holandês Winnie Overbeek, do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais.

Com histórias e perspectivas distintas, os quatro debatedores apresentaram leituras diferentes sobre alguns dos aspectos mais atuais relacionados à economia verde, mas, em linhas gerais, a conversa foi marcada por críticas ao mercado de carbono, aos resultados da conferência do clima e às propostas de privatização da natureza.

Um debate político

Para Wilfried Telkämper, não dá para analisar a crise ambiental sem considerar seus aspectos políticos e econômicos. Fazendo referência ao título do debate, ele associou logo de início a degradação ambiental a este fenômeno. “Eu tenho medo é do capitalismo, que destrói a base da existência de tantas pessoas. O capitalismo verde é parte do capitalismo”, afirmou, lembrando que Karl Marx já defendia que é preciso levar em conta a relação entre homem e natureza ao se analisar relações sociais e econômicas (para mais referências sobre marxismo e ecologia, vale conferir entrevista com o sociólogo Klaus Meschkat).

Ex-integrante do Partido Verde alemão, Wilfried iniciou sua carreira política nos anos 1970 como ativista antinuclear e hoje é integrante do partido Die Linke (A Esquerda, em alemão), ao qual a FRL está ligada. Ele defende que as estratégias de financerização da natureza, com a participação das Bolsas de Valores e hedge funds(fundos de investimento de risco) na formação de novos “mercados verdes”, não tem como objetivo evitar a degradação, mas sim lucrar com a situação. “Esse é o principal problema”.

Neste sentido, argumenta que é simbólico o interesse no tema por parte de empresas petrolíferas e conglomerados químicos, que dominam o segmento de insumos agrícolas (agrotóxicos e adubos sintéticos) com grave impacto ambiental e social. Ele critica os que limitam a discussão a questões técnicas, como se o problema climático pudesse ser resolvido com fórmulas econômicas ou avanços científicos. “Não é uma questão tecnológica, mas sim de pressão política. É preciso ação política principalmente em relação às nações industriais, que são as maiores emissoras de carbono, para que se evite que a catástrofe seja maior ainda”, defende. “Estou falando de pressão local e também de agir já e mudar totalmente a forma como vivemos”. Ele menciona como exemplo a mobilidade nas cidades, com o transporte individual sendo priorizado em detrimento ao transporte público, com políticas que beneficiam a indústria automobilística. “Tudo precisa ser levado em consideração não amanhã, mas hoje. E isso significa ação política também”.

O político e ecologista é de uma corrente que defende um socialismo democrático com engajamento em questões ambientais. Acompanhou a 21ª Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP-21), em Paris, em 2015 (leia cobertura completa da participação da FRL em inglês). É crítico ao acordo resultante do encontro. “O problema é que não foram acordadas medidas concretas, mas declarações de intenções”, diz, para mesmo assim apontar que que é preciso o documento final da COP e utilizá-lo para fazer pressão. “Leiam o acordo. Participem da discussão a partir da ação política”. (Veja o acordo final do encontro em inglês em formato PDF).

Diplomacia verde e a COP 21

Se o político alemão faz críticas à COP 21, a jornalista e colunista Daniela Chiaretti, do Valor Econômico, defende que a convenção é “inspiradora e há ideias interessantes”. Com o cuidado de destacar que as discussões podem servir como uma “bússola”, ela cita que é preciso “não dar peso demasiado, mas também não subestimar” os resultados e menciona como uma das perspectivas interessantes do encontro a ideia de limitar o aquecimento até 2100 em apenas 2ºC; ou 1,5ºC, em uma meta mais ambiciosa.

Como repórter especial de meio ambiente desde 2005, ela acompanhou in loco as últimas conferências ambientais e defende que não existe uma única grande solução para os problemas, mas sim “muitas soluções”. Ela ressalta que a discussão é ampla, e é necessário considerar múltiplos aspectos – como, por exemplo, o fato de estudos indicarem que, em desastres ambientais, morrem mais mulheres do que homens. Neste sentido, pontua que o resultado do último encontro foi positivo. “Não é que eu sou otimista com o Acordo de Paris, mas acho que o mundo é melhor com um acordo de clima do que sem. E acho que existem tantas ambiguidades nesse acordo e tanto espaço para que as coisas sejam diferentes. Espaço de luta, de pressão. Não é porque o acordo existe que tudo está dado”.

Ela defende que as pessoas precisam se envolver nas discussões e que o tema deveria estar nas escolas, e também que é preciso olhar “sem preconceito” para as novas soluções e fórmulas apresentadas. De todos os participantes, ela foi a que mais defendeu que soluções financeiras devem sim ser consideradas como possíveis saídas para a crise ambiental. “O Acordo de Paris e as discussões de clima não discutem o capitalismo, elas estão inseridas no capitalismo. O discurso econômico já interpretou com rapidez toda essa discussão”, afirma, para apontar como, por exemplo, a questão da “descarbonização” se tornou chave nas negociações em curso.

Descarbonização é o termo usado para se falar em reduzir ou “neutralizar” emissões de carbono – bandeira adotada com força por uma China que, no lugar de petróleo, aposta cada vez mais em energia nuclear para sustentar seu agressivo modelo de desenvolvimento. A jornalista cita que já é possível falar em “geopolítica de carbono”, e defende que o conceito pode ser útil para discussões sobre responsabilidade em degradação ambiental; em uma cidade, por exemplo, daria para tentar medir quais “bairros emitem mais carbono”.

Citando o artigo que escreveu para o jornal sobre negócios e clima, no qual narra o encontro durante a conferência entre o canadense Mark Joseph Carney, presidente do banco central britânico, o Bank of England, e o empresário e ex-prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, ela menciona como, mesmo entre investidores, já surge a preocupação de reconsiderar o valor de ativos em combustíveis fósseis, e que analistas já sugerem prudência em planos de expandir produção de petróleo – o que implicaria, por exemplo, em rever a extração do Pré-Sal no Brasil. Tal cuidado de imediato está relacionado à queda no preço no mundo todo, mas, na visão da analista, também a uma leitura por parte do setor financeiro de que os acordos do clima acabarão por influenciar e frear o uso de combustíveis fósseis em algum momento.

Florestas sem gente e o mercado de carbono

Justamente a perspectiva de crescimento da negociação de emissões de carbono é, para o ativista ambiental Winnie Overbeek, o resultado mais grave da Conferência de Paris. Ressaltando que o acordo negociado “não tem referência aos direitos humanos”, ele argumenta que foram estabelecidas falsas soluções que beneficiam as empresas e permitem que elas sigam atuando da mesma maneira. “O acordo não menciona a causa do problema, a conversa é sobre como compensar, não sobre como reduzir”, afirma, chamando a atenção para os limites de se utilizar as emissões de carbono como métrica para tentar quantificar os impactos ao meio ambiente.

Ele alerta para as empresas que apresentam fórmulas para “neutralizar” emissões de combustíveis fósseis a partir da preservação de florestas ou mesmo do plantio de árvores, lembrando que há até as que já falam em “emissões negativas” de carbono. “A equação é aceita, mas para o clima é diferente o impacto”, argumenta. ” O petróleo que vem do subsolo é um carbono armazenado há muito tempo. Nos últimos 200 ou 300 anos começamos a retirá-lo do solo, o que levou a um aumento da concentração de carbono na atmosfera. Conservar uma floresta que seria desmatada não é o mesmo, mas eles tratam como se fosse igual manter o carbono do subsolo. A absorção de carbono por uma floresta é temporária. Quando se tira carbono do subsolo, a quantidade na atmosfera aumenta e vai continuar aumentando”, diz. “As empresas de petróleo fizeram uma grande festa, assim como outras indústrias que dependem do petróleo, como as do agronegócio. Vão continuar emitindo, só que agora podem compensar”, completa.
Placa sobre restrições em comunidade impactada por projeto de carbono no Acre. Foto: Verena Glass
Placa sobre restrições em comunidade impactada por projeto de carbono no Acre. Foto: Verena Glass

Como coordenador internacional do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (World Rainforest Movement) ele tem acompanhado o impacto de projetos de compensação de carbono do tipo REDD e REDD+ no Acre, uma das regiões consideradas pela organização “laboratório do mundo” em relação a este tipo de estratégia.  “As populações como ficam? Em cada projeto desses eles têm que dizer que a floresta será desmatada; se não tiver desmatamento, não tem o que compensar. Mas não há desmatamento hoje, é um desmatamento que acham que vai acontecer em 30, 40 anos. Então fazem grossos relatórios projetando isso e os culpados pelo desmatamento que vai acontecer nunca são hidrelétricas ou plantações, mas sim a população local”.

O resultado, afirma o ativista, é que comunidades têm sido expulsas das florestas em que sempre viveram, camponeses e ribeirinhos acabam proibidos de cortar árvores para fazer canoas, ou pescar e caçar, tudo ao mesmo tempo em que projetos de mineração, hidrelétricas, extração de petróleo e agropecuária continuam avançando sem nenhuma restrição. Ele critica o papel das ONGs conservacionistas neste jogo, aponta que elas defendem que “floresta boa é floresta sem gente”, e diz que muitas “andam de mãos dadas com as corporações” nas negociações internacionais. Também critica a maneira como tais projetos são propagandeados, com investimento pesado em marketing e pouca discussão concreta com as comunidades afetadas.

“Na prática se pretende resolver a crise climática compensando uma coisa que não está sendo compensada, continuando a aumentar as emissões, e culpando a população que menos contribui com o desmatamento. Não se está trabalhando com as causas. Quem está por trás é o grande capital, é o capitalismo baseado neste modelo de produção para o consumo global. É uma injustiça social da qual muito pouco se fala”, defende.

Caminhos possíveis

Em sintonia com os demais palestrantes, o cientista político e filólogo Thomas Fatheuer aponta como solução para o enfrentamento da crise ambiental mudanças no modo de vida e produção. Assim como Wilfried Telkämper, ele ressalta que o problema não é meramente tecnológico ou econômico, mas principalmente político. Na mesma linha de Daniela Chiaretti ele também considera que as negociações do clima estão alterando de forma significativa a maneira como as relações econômicas se estruturam. Ele ressalta que, em um cenário em que surge a figura dos “serviços ambientais” e no qual se discute a financerização da natureza, “a mudança no capitalismo é profunda”. Como Winnie Overbeek, porém, é crítico em relação às negociações de carbono. “Estão usando a descarbonização como um jeito de continuar a usar fósseis”, afirma o cientista político, que é coautor do livro “Crítica à economia verde”, disponível em alemão.

Fatheuer dirigiu de 2003 a 2010 o escritório do Rio de Janeiro da Fundação Heinrich Böll, instituição ligada ao Partido Verde alemão. Hoje é integrante do grupo Cooperação Brasil (KoBra) e, com a facilidade de quem acompanha tanto a situação política da Europa quanto a da América Latina, faz comparações e apresenta problemas comuns aos dois continentes relacionados à economia verde. “Quero dar um exemplo do perigo de um caminho que não está certo. Existe uma discussão antiga sobre o que fazer com transporte aéreo dentro da convenção do clima. A associação internacional das companhias aéreas, a IATA (International Air Transport Association), assumiu um compromisso de reduzir até 2025, 2030, as emissões em 30%. Ao mesmo tempo, o tráfego aéreo está aumentando. Como esse milagre vai acontecer?”, questiona.

“A maneira mais efetiva de reduzir o CO2 por pessoa é reduzir o espaço no avião. Isso já foi feito. Eu já não caibo mais em um avião com o meu tamanho, então não dá para reduzir mais. As máquinas são um pouco mais eficientes, também não dá para reduzir assim. O milagre vai acontecer pelo crédito de carbono”, explica. “Com a compensação, você cria um mundo em que as emissões aumentam, mas ao mesmo tempo diminuem. O que deveríamos fazer é discutir o tráfego aéreo, não faz sentido voar para alguns lugares. Tudo é feito para continuar igual, sem se discutir mudar o modo de produção e estilo de vida. Isso é o capitalismo verde”, defende.

Ele cita que, assim como a indústria aérea, a automobilística tenta estratégias parecidas. Em vez da priorização do transporte público e da redução do número de viagens individuais com carros privados, o que se discute é a compensação ambiental pelas emissões. “Temos que pensar é na maneira do trânsito, temos que sair do modelo de trânsito individual das grandes cidades. Falo da Alemanha, não vou dar palpite no Brasil, os brasileiros que têm que discutir isso, mas na Alemanha tenho certeza que temos que fazer essas mudanças e essa política de compensações está impedindo essas mudanças e não impulsionando. Isso é real e visível”.

Ao mesmo tempo em que aponta problemas comuns, ele cita soluções possíveis. “A questão da energia na Alemanha é muito interessante, não só pela energia, mas pela questão do poder. A descentralização da geração de energia quebra os grandes monopólios. Eu recebo a minha energia de uma cooperativa que foi uma iniciativa de cidadãos. Isso está pipocando na Alemanha. É algo fora do esquema das grandes corporações que sempre geraram energia na Alemanha. Isso abre caminho para soluções descentralizadas. Existem parques eólicos de municípios com participações de cidadãos”.

E faz questão de ressaltar que sua posição não é pura e simples contra mercados. “Não tenho nada contra mercados, mas obviamente é preciso discutir onde eles são úteis e onde não são. Como pai de três crianças eu sou muito feliz que elas estejam protegidas do mercado de trabalho, do trabalho infantil. Temos um grande acordo na sociedade que muita coisa tem que ser discutida politicamente. E as questões de futuro são políticas e não de mercado. Todas as tentativas de resumir tudo à economia são uma maneira de tirar o poder das decisões políticas. O povo tem que poder falar não. Isso é muito importante”, conclui.

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