A suspensão de Cunha mostra que o tempo do Judiciário é o tempo de exceção

Por Salah H. Khaled Jr., em Justificando

A novela chegou ao fim: depois de muitos e muitos meses, o STF surpreendentemente determinou a suspensão do mandato de Eduardo Cunha, em “decisão excepcionalíssima”. Supostamente a gravidade da situação autoriza a medida, cuja legalidade é – na melhor das hipóteses – indefinida e borrada. Barroso elogiou a decisão de Teori e declarou: “Eu não quero viver em outro país, eu quero viver em outro Brasil”.

Fascinante. Pompa e melodrama. Certamente algo propício para mais um capítulo da atual epopeia de salvação nacional: um novo cordeiro é imolado como sacrifício no altar, em clara tentativa de higienização do golpe no imaginário popular. É tentador comemorar a ruína de Cunha. Não deixa de ser irônico que alguém que tenha empregado tantos estratagemas para violar a legalidade finalmente venha a sucumbir diante de uma decisão tão questionável como muitas de suas próprias. O legado de Cunha é de destruição. A história retratará com as devidas cores o que representou sua passagem pela presidência da Câmara dos Deputados. Mas não caia nessa não tão sutil armadilha. O criador se foi, mas a obra permanece: foram os dedos, mas restam os amaldiçoados anéis, em estranho trocadilho golpista.

Não sei qual é o Brasil que Barroso espera viver. Certamente não é o mesmo que eu imagino. Não consigo me entusiasmar com a lenta e gradual derrocada de tudo que foi construído após a restauração democrática. Uma geração inteira de juristas oxigenados constitucionalmente e comprometidos com direitos fundamentais está testemunhando, com pesar, a falência do respeito pelas regras do jogo. Estamos trocando a legalidade democrática pelo velho jeitinho, nossa única norma fundamental. O que importa é alcançar a linha de chegada. A corrida maluca não conhece outra regra, ainda que o decisionismo sempre encontre suas próprias razões, que somente convencem os incautos e coniventes com práticas de exceção.

O presidente do STF, Ricardo Lewandowsky, foi incisivo: “o tempo do Judiciário não é o tempo da política nem é o tempo da mídia”. A afirmação é contundente, sem sombra de dúvida. Procura diferenciar uma temporalidade “jurídica” de outras temporalidades, tidas como menos rigorosas, apressadas e superficiais. Ela é apresentada no contexto do que visivelmente soa como uma protelação injustificável: por que somente agora alguma medida foi tomada, se o pedido de afastamento de Cunha, do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, está nas mãos de Teori Zavascki, relator da Lava-Jato, desde dezembro? Como Cunha pode ter permanecido como presidente da Câmara dos Deputados e conduzido o processo de impeachment, quando supostamente pesam contra ele indícios tão flagrantes que justificam a“excepcionalíssima” suspensão de seu mandato? Não parece razoável crer que tais elementos justificariam seu afastamento imediato da presidência da Câmara, para que não existissem fundados argumentos de utilização do processo de impeachment como instrumento de vingança pela falta de apoio no Conselho de Ética? Não deve o “tempo” do Judiciário zelar pela estabilidade do Estado Democrático de Direito e a preservação da legalidade, impossibilitando que interesses pessoais valham mais do que as regras do jogo?

Sem dúvida são ótimas perguntas. Não saberia dizer qual é o “tempo” do Judiciário, qual é o “tempo” do Supremo e muito menos qual o critério empregado para definir o “ritmo” da balada nesta festa estranha e repleta de gente golpista. Parece que, ultimamente, ele é determinado pelo sabor da ocasião. De vez em quando corre, de vez em quando mal sai do lugar. E de vez em quando “faz de conta que não vê, que não é com ele”: tempo de indiferença diante da legalidade democrática. Tenho certeza que muitos escreverão sobre o intrigante “timing” dessa decisão, como muitos escreverão sobre a “excepcionalíssima” suspensão do mandato de Cunha (que“não pode virar regra”, como os próprios ministros enfatizaram). Afastamento da presidência é uma coisa. Suspensão de mandato é algo bem diferente e extremamente questionável. Ou deveria ser. E isso vale para o mandato de Cunha como vale para qualquer outro, não importa a circunstância, justificativa ou intenção de sacrifício para tentar produzir uma ilusão de igualdade. Ou vamos adotar uma forma de tratamento específica conforme determinar o critério moral de ocasião?

Devo soar cansativo, sempre o mesmo e velho argumento de defesa da legalidade, cada vez mais fora de moda. Talvez eu deva cair na “real”: nada tem sido exatamente como “deveria ser” nos últimos meses. São tantas e tantas “liberalidades”, que nos acostumamos com violações. A exceção virou rotina e não causa mais espanto. Se as coisas fossem como “deveriam ser”, não parece nada provável que Cunha pudesse ter acolhido e conduzido o processo de impeachment, como se nada pesasse contra ele. “Aparentemente”, ele desfrutava de uma espécie muito particular de presunção de inocência, cujo prazo de validade finalmente expirou, como determinado pelo infame “tempo do Judiciário”. Por sinal, se as coisas fossem como “deveriam ser”, o próprio STF não teria brincado com a presunção de inocência, reiterando as premissas do processo penal fascista. Se as coisas fossem como “deveriam ser”, não creio que Moro pudesse ter ilegalmente vazado conversas de autoridades com foro privilegiado sem sofrer qualquer espécie de sanção. Não teria transformado a Operação Lava-Jato em um instrumento de desestabilização da própria República, que encoraja decisionismos pelo país afora. Se as coisas fossem como deveriam ser, juízes não bloqueariam o Whatsapp ou proibiriam reuniões estudantis com pautas “subversivas”. Se as coisas fossem como “deveriam ser”, a Assembleia Legislativa de Alagoas não teria aprovado um projeto que amordaça professores da educação básica, proibindo que discutam política e religião. Se as coisas fossem como “deveriam ser”, nossos parlamentares não votariam com base na própria subjetividade: observariam se de fato estão presentes os requisitos para o crime de responsabilidade. Se as coisas fossem como “deveriam ser”, não estaríamos prestes a testemunhar um ficha-suja como Temer tomar posse sem eleição e sem ter tido um único voto da população. O descompasso entre realidade e legalidade indica que a noção de limite foi obliterada pelas razões e interesses individuais dos protagonistas do momento.

A coleção de horrores e destroços acumulados nos últimos meses realmente é espantosa. Mas os adeptos do pragmatismo oportunista da moral de rebanho sempre comemoram a queda dos eventuais inimigos, sem levar em conta que podem ser os próximos da fila: alvos das baterias do Judiciário e do Legislativo, repentinamente transformados em lugares de proliferação de um detestável protagonismo.

E tem gente que ainda diz que “estamos consolidando a democracia” e “as instituições estão funcionando”. Realmente estão funcionando: que belo estrago estão fazendo. Quanto mandonismo. Quanto ativismo judicial. Quanto empreendedorismo moral. Este é o outro Brasil? Parece mais do mesmo velho mofo de sempre. Mas com jeitinho dá pra levar. Sempre funcionou assim. Nós é que nos iludimos achando que o tempo do Judiciário poderia ser o tempo do Direito, enquanto ele é tempo de exceção. Em última análise, talvez os dois sejam a quase a mesma coisa. O resto é verniz para dar ar de legitimidade para a decisão.

Já escreveram que o STF não barra o golpe porque faz parte dele. Sua contribuição é inegavelmente inestimável. Darão a chancela novamente, como em 64? Terão a audácia de bradar que contribuem para a fundação de um piegas novo Brasil? Eu espero que não. Mas está cada vez mais difícil ter qualquer confiança neste Supremo, que está falhando justamente naquela que deveria ser a sua maior hora. O sacrifício de Cunha não dá qualquer credibilidade para ele. Pelo contrário. A democracia está sangrando. Ninguém ira estancar a hemorragia? Tristes tempos em que vivemos.

Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

nineteen − ten =