Marcha para o fascismo

Por Leonardo Isaac Yarochewsky, em Justificando

“A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”  (Karl Marx)

Surgido em março de 1964 , “A Marcha da família com Deus pela Liberdade” foi um movimento que consistiu numa série de manifestações, ou “marchas”, organizadas principalmente por setores do clero e por entidades femininas em resposta ao comício realizado no Rio de Janeiro em 13 de março de 1964, durante o qual o presidente João Goulart anunciou seu programa de reformas de base. Agrupou segmentos da classe média, temerosos do “perigo comunista” e favoráveis à deposição do presidente da República. [1]

A primeira dessas manifestações ocorreu em São Paulo, no dia 19 de março de 1964, dia de São José, santo padroeiro da família. A “Marcha” teve como principal articulador o deputado Antônio Sílvio da Cunha Bueno, apoiado, prontamente, pelo governador Ademar de Barros, que se fez representar no trabalho de convocação por sua mulher, Leonor de Barros. [2]

Preparada com o auxílio da Campanha da Mulher pela Democracia da União Cívica Feminina, da Fraterna Amizade Urbana e Rural, entre outras entidades, em São Paulo a passeata recebeu também o apoio da Federação e do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo. Com cerca de trezentas mil pessoas, contou com a presença de Auro de Moura Andrade – presidente do Senado – e Carlos Lacerda – governador do estado da Guanabara. Saiu da Praça da República e terminou na Praça da Sé com a celebração da missa“pela salvação da democracia”. Na ocasião, foi distribuído o Manifesto ao povo do Brasil, convocando a população a reagir contra Goulart. [3]

“Conhecido por influenciar a opinião pública brasileira antes do golpe de 1964, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, ou Ipês, fundado em 1961 por altos empresários brasileiros, fez muito mais do que imprimir panfletos, editar livros e veicular propaganda para desestabilizar o governo de esquerda do presidente João Goulart. A ação foi bem mais direta do que se pode imaginar: entre 1961 e 1964, período de alta instabilidade política no Brasil, o Ipês atuou energicamente em Brasília, dentro do Congresso Nacional. Trabalhava como emissário ipesiano um poderoso banqueiro carioca responsável por operacionalizar no coração do Poder Legislativo o pesado lobby do instituto, cujo financiamento era sustentado por doações de grandes empresas brasileiras e multinacionais aqui instaladas. Sua função era clara: coordenar uma rede suprapartidária de parlamentares arregimentados pelo Ipês para barrar os projetos do governo no Congresso. Dessa forma, Jango se veria cada vez mais isolado na cena política nacional, criando um clima de instabilidade que o levaria a radicalizar o discurso e a ação”. [4]

Segundo a historiadora Martina Spohr [5], coordenadora da área de Documentação do CPDOC da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e estudiosa do regime ditatorial que vigorou no Brasil até 1985, além de atuar no movimento civil-militar que conspirou e depôs o presidente João Goulart em 1964, a elite empresarial brasileira também manteve, ao longo de todos os anos sessenta, estreito vínculo com o capital estrangeiro, numa “relação íntima” com os interesses dos executivos norte-americanos.

No que se refere à publicidade favorável ao golpe de 1964, a agência CommonWealth teve importante e fundamental atuação a serviço do Ipês. O Ipê paulista, com o dinheiro de empresários, pagava a uma agência de publicidade e relações públicas para organizar pautas e criar o forte clima de instabilidade contra o governo Goulart.

Segundo Joana Manteleone, praticamente todos os jornais do país seguiam a agenda proposta pela agência CommonWealth, “reproduzindo artigos, entrevistando personagens “sugeridos”, dando livros de debates alinhados com as pautas da conspiração civil-militar em curso”. [6]

Não é despiciendo lembrar que no caso do jornal Estado de São Paulo, o seu principal dirigente, Júlio de Mesquita Filho, estava abertamente a favor do golpe, pedindo a intervenção militar em vários editoriais.

O presidente da Editora Abril, Victor Civita, ofereceu para imprimir livros e materiais editoriais do Ipês a preço reduzido como forma de colaboração.

A mídia, a OAB e várias instituições, além de políticos que hoje posam de democratas, apoiaram o golpe de 1964, ainda que depois tenham se voltado contra o regime ditatorial militar. Vários foram, também, os ditos juristas que procuraram à época justificar a intervenção militar e o golpe.

O editorial do jornal O Globo de 1º de abril de 1964 e publicado na edição do dia seguinte retrata o que a grande mídia pensava do golpe:

“(…) Ninguém, realmente ninguém, no Brasil, é contra as reformas que venham a melhorar as condições de vida do nosso povo e corrigir as injustiças e desigualdades sociais. Mas ninguém, realmente ninguém, no Brasil, se animaria a confiar a execução dessas reformas a um governo a princípio infiltrado e depois orientado pelos comunistas (…) Mas restavam as Forças Armadas que ele levasse às últimas consequências os planos arquitetados para transformar o Brasil numa segunda Cuba (…) Neste momento grave da História, quando os brasileiros, patriotas e democratas veem que não é mais possível contemporizar com a subversão, pois a subversão partindo do governo fatalmente conduziria ao “Putsch” e à entrega do país aos vermelhos, elevemos a Deus o nosso pensamento, pedindo-lhe que proteja a Pátria Cristã, que a salve da guerra fratricida e que a livre da escravidão comuno-fidelista”.

(O Globo, Rio de Janeiro, 2 de abril de 1964, p. 3)

O editorial do Correio da Manhã do dia 1º de abril de 1964 foi no mesmo sentido:

“A Nação não mais suporta a permanência do Sr. João Goulart à frente do Governo. Chegou ao limite final a capacidade de tolerá-lo por mais tempo. Não resta outra saída ao Sr. João Goulart senão a de entregar o governo ao seu legítimo sucessor. Só há uma coisa a dizer ao Sr. João Goulart: saia (…)”

Na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, as seguintes palavras de ordem constavam dos diversos cartazes:

“Abaixo o Imperialismo Vermelho”
“Renúncia ou Impeachment”
“Reformas sim, com Russos, não”
“Vermelho bom, só o batom”
“Verde, amarelo, sem foice nem martelo”

Em várias manifestações – que podem ser chamadas de “marchas” em favor do impeachment da Presidenta da República -, as palavras de ordem também se fizeram presentes:

“Nossa bandeira jamais será vermelha”
“Renúncia ou Impeachment”
“Contra a Corrupção”

“Vão pra Cuba”
“Fora PT”

Caso o atento leitor enxergue algumas semelhanças com o momento atual, não terá dúvida em afirmar que há um golpe em curso no Brasil, muito parecido e tão orquestrado quanto o golpe de 1964.

A identidade do golpe de 1964 e o atual momento não param nas palavras de ordem. Quando da votação da admissibilidade do processo de impeachment pela Câmara dos Deputados, grande parte dos parlamentares justificaram o voto em nome de “Deus” e da “família”. Assim como no editorial do jornal O Globo, Eduardo Cunha, quando presidiu o processo de admissibilidade do impeachment na Câmara dos Deputados – antes da decisão do seu afastamento pelo STF – , votou em favor do impeachment da Presidenta da República rogando a “Deus” para que tivesse misericórdia do Brasil. Qualquer semelhança com a “Marcha”, não é mera coincidência.

Não é mera coincidência, também, que os editoriais dos principais jornais de hoje, como aqueles de outrora, defendam a saída da Presidenta Dilma. “Saia João Goulart” – “Tchau querida”. E a história se repete como farsa.

Quando se imaginava que o Brasil estava consolidando sua neófita democracia, a mesma elite de 1964 – com algumas rugas a mais -, a mesma oligarquia, os plutocratas de sempre, e a mesma mídia que apoiara o golpe militar, colocam, novamente, seus poderes a serviço do golpe de 2016 para destituir do cargo uma Presidenta da República eleita com mais de 54 milhões de votos e que, definitivamente, não praticou crime algum que justifique seu afastamento.

Não é demais repetir que a insatisfação política, a crise econômica, o desemprego ou qualquer outra razão de ordem política não são suficientes para sacar do cargo o Chefe do Poder Executivo. Descontentamentos políticos se resolvem nas urnas, através de eleições livres e diretas. Eleições que Dilma Vana Rousseff disputou e venceu.

O atual vice-presidente da República e seus asseclas marcham em direção ao Palácio do Planalto ritmando o “passo de ganso”. Eles marcham. Marcham atropelando a democracia. Marcham levando com eles todos àqueles que de algum modo apoiaram o golpe. Marcham com o apoio da mídia. Marcham em nome de “Deus”. Marcham em nome da “família”. Marcham sobre a Constituição. Marcham destruindo a esperança. Marcham, marcham sem trégua, marcham em direção ao fascismo.

Maio de 2016.

Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista e Professor de Direito Penal da PUC-Minas.

REFERÊNCIAS

[1] http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/AConjunturaRadicalizacao/A_marcha_da_familia_com_Deus

[2] Idem.

[3] Idem.

[4] AMORIM, Felipe e MACHADO, Rodolfo. O ipês in À espera da verdade: empresários, juristas e elite transnacional, histórias de civis que fizeram a ditadura militar. Joana Manteleone et al. 1ª ed. São Paulo: Alameda, 2016.

[5] http://www.historia.uff.br/stricto/td/1364.pdf

[6]] MANTELEONE, Joana. A publicidade contra Jango in À espera da verdade: empresários, juristas e elite transnacional, histórias de civis que fizeram a ditadura militar. Joana Manteleone et al. 1ª ed. São Paulo: Alameda, 2016.

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