La Gran Muerte: genocídio e violações de direitos são denunciados por indígenas e Cimi em Fórum da ONU

Renato Santana – CIMI

“Esta semana recebemos mais uma ordem de despejo contra famílias Kaiowá. É o tekoha – lugar onde se é – Apykai da cacique Damiana, companheira que perdeu o marido, dois filhos, dois netos e outros parentes atropelados quando foram expulsos de seu território e obrigados a viver às margens de uma rodovia. Sua tia morreu quando fazendeiros lançaram pesticidas sobre ela”, disse Eliseu Lopes Guarani e Kaiowá aos mais de mil indígenas de todo o mundo presentes na 15ª edição do Fórum Permanente da Organização das Nações Unidas (ONU) Sobre a Questão Indígena, ocorrida nesses primeiros 20 dias do mês de maio em Nova Iorque (EUA). A qualquer momento cacique Damiana poderá voltar com sua comunidade para as margens da rodovia expulsa por uma ordem de despejo. Eliseu explica que para os “anciãos Ñanderú” de seu povo se trata de La Gran Muerte; na tradução para o branco: genocídio, ou, em alguns entendimentos, etnocídio – o que não muda os efeitos da Gran Muerte

Diante de tal quadro vivenciado por diversos povos indígenas Brasil afora, o líder Guarani e Kaiowá pediu uma declaração urgente da ONU às autoridades brasileiras contra o genocídio dos povos indígenas e que os direitos sejam respeitados e garantidos no país. Eliseu integra o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) e faz parte do Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos, sendo um dos 111 indígenas protegidos pelo Estado por se opor às “expulsões dos territórios, ao acosso, às ameaças e às discriminações”, conforme o Guarani e Kaiowá expressou em seu discurso.  Como integrante do Conselho Continental da Nação Guarani, o indígena pediu estudos sobre a situação de 250 mil Guarani espalhados em quatro países – Bolívia, Paraguai, Argentina e Brasil – que vivem “em uma grande família” e passam por situações de violações de direitos humanos semelhantes.

“Quero denunciar que as violências a que estamos submetidos é igual em todos os países. Não temos o direito de ir e vir, além de nos tratarem como estrangeiros em nosso próprio território. As grandes empresas violam os nossos direitos e os governos nacionais não cumprem com suas normas constitucionais relativas a seguridade e defesa de nossos direitos. No Paraguai, fazendeiros brasileiros atacam o nosso povo e queimam escolas. Na Bolívia, as petroleiras deixam nosso povo vulnerável. Na Argentina é muito forte a marginalização de nosso povo; falta assistência e políticas públicas “, afirmou Eliseu Guarani e Kaiowá. A liderança lembrou que desde a sua última visita ao Fórum da ONU mais um indígena Guarani e Kaiowá acabou assassinado no Brasil: Simião Vilhalva, do tekoha Ñanderú Marangatú, homologado em 2005 pelo governo federal, mas ainda invadido por fazendas.

“Até o momento, nada foi feito para punir os assassinos. Um fazendeira caminha livremente, na luz do dia, nos mostrando armas, inclusive para nossos filhos, e até o momento nada foi feito pelas autoridades brasileiras. Nossas lideranças estão ameaçadas de morte e desprotegidas. Sofrem intimidações da polícia e são criminalizados por inúmeros processos judiciais”, denunciou Eliseu, ele mesmo ameaçado de morte pelo papel que exerce junto ao seu povo e como membro da Aty Guasu – Grande Assembleia Guarani e Kaiowá. No tekoha em que Eliseu vive, o Kurusu Ambá, quase uma dezena de lideranças foi assassinada numa luta de décadas pelo território tradicional – incluindo a anciã Xurite Lopes, morta com tiros pelas costas, sem nenhuma chance de defesa.

A liderança Guarani e Kaiowá pediu à ONU que ajude os povos indígenas a fazer com que o governo brasileiro cumpra a Constituição Federal, garanta direitos e demarque os territórios tradicionais. Eliseu foi enfático ao dizer que os Guarani e Kaiowá não aguentam mais ver fazendeiros com as mãos sujas de sangue do povo. “Não queremos que o sangue de nossas famílias reguem a soja, a cana e sirvam de comida para o gado. Não vamos renunciar a nossos territórios! Por isso, quero dizer nossa Grande Assembleia Aty Guasu está finalizando uma denuncia internacional para a Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil, pelo cumprimento do direito constitucional e pelo etnocídio permanente pelo qual meu povo passa”, encerrou Eliseu seu discurso no Fórum da ONU.

Genocídio: uma pauta urgente

Acompanhado pelo missionário Flávio Vicente Machado e pela missionária Laura Vicuña, ambos do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que se pronunciaram também ao Fórum da ONU, Eliseu Guarani e Kaiowá esteve em reunião com representantes do Escritório de Prevenção ao Genocídio da ONU.  “A reunião com o escritório de prevenção de genocídio foi muito importante, primeiro por confirmar que o Caso Guarani e Kaiowá já é objeto de estudo do escritório, que tem como base de análise fatores de risco dos quais os Kaiowá lamentavelmente se enquadram em vários fatores; segundo por compartilhar nossas iniciativas de pesquisas do tema juntamente com universidades brasileiras”, avaliou Machado, do Cimi Regional Mato Grosso do Sul.  Sobre o Marco de Análise da ONU, que define os fatores de risco sobre a prevenção do genocídio, crimes de atrocidades ou contra a humanidade, o missionário destacou as pesquisas iniciais da Universidade Unisinos, do Rio Grande do Sul apontando que dos 14 fatores de risco analisados pela ONU, os Guarani e Kaiowá possuem situações que se enquadram em praticamente todos os pontos.

“Genocídio, como diz o Assessor Especial do Secretário Geral da ONU, Adama Dieng, é quando você é morto não pelo que você fez e sim pelo que você é. Neste sentido precisamos fazer análises técnicas do que historicamente acontece no Mato Grosso do Sul, principalmente quanto aos deslocamentos forçados e o assassinato de membros específicos do povo Guarani e Kaiowá”, explicou Machado. O missionário demonstrou aos representantes da ONU que nos últimos 12 anos houve pelo menos um assassinato de indígena Guarani e Kaiowá a cada ano, na luta pelo território, dos quais em apenas um caso ocorreram prisões – caso Nísio Gomes, assassinado em 2011. Isso confere ao Mato Grosso do Sul o estado brasileiro que mais mata lideranças indígenas. “Investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal (MPF) apontam para mortes seletivas e metódicas através de milícias armadas de fazendeiros, num consórcio de morte operando em todo estado, inclusive contra o povo Terena”, completou Machado.

Ao escritório da ONU, Eliseu Guarani e Kaiowá e os missionários do Cimi relataram a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para tratar do genocídio em curso no Mato Grosso do Sul. No entanto, a CPI teve formação majoritária de deputados estaduais da bancada ruralista. “Informamos ao escritório que as organizações indígenas, juntamente com a sociedade civil sul-mato-grossense, com o apoio de advogados e universidades, trabalham um relatório paralelo à CPI. Deputados ruralistas membros da CPI operam para desqualificá-la, estando mais preocupados com a imagem do estado do que com a vida de pessoas – mortas ou impedidas de exercer seus usos e costumes”, afirmou o missionário do Cimi. Eliseu Guarani e Kaiowá uma vez mais relatou episódios de violência contra o seu povo, oferecendo dados de realidade ao Escritório de Prevenção ao Genocídio da ONU. Para Machado, é importante destacar que o genocídio denunciado não se trata de força de expressão, mas que possui elementos concretos e estudados não apenas pelo Cimi, mas por centros de pesquisa do Brasil: “Não podemos aceitar análises superficiais e desprovidas de conhecimento, como fazem os deputados membros da CPI”, encerrou.

Brasil: uma preocupação

Durante os dias em que o Fórum da ONU ocorreu em Nova Iorque, no Brasil o Senado Federal afastou a presidente Dilma Rousseff em processo de impeachment. O país passou a ter um governo provisório sob os auspícios do presidente interino Michel Temer, então vice-presidente de Dilma Rousseff. Mesmo com um caráter provisório, Temer, logo nos primeiros dias de seu mandato com forte teor deletério aos direitos sociais, anunciou que iria rever 21 atos administrativos de demarcação de terras indígenas do governo Dilma. Tais procedimentos administrativos, portarias declaratórias, identificações e homologações, foram publicados entre janeiro e maio deste ano – período estipulado como alvo das reanálises por Temer. Se tratam de terras que aguardavam algum encaminhamento por parte do Poder Executivo há quase uma década. Em alguns casos, como a Terra Indígena Taunay Ipegue, do povo Terena (MS), havia até decisão da Justiça Federal determinando ao Ministério da Justiça que desse prosseguimento ao processo administrativo dada a demora em ocorrer.

Sobre este contexto, a relatora Especial da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, se pronunciou à 15ª edição do Fórum Permanente com preocupação ao analisar a situação destes povos no Brasil. Para Victoria, que esteve em março percorrendo terras indígenas no Mato Grosso do Sul, Bahia e Pará, existem vários indícios de um etnocídio em curso no país. A relatora afirmou que os benefícios aos interesses privados ocorrem em detrimento dos direitos dos povos indígenas, e que o governo provisório se mostra afeito a intensificar tais práticas que historicamente se constata no Brasil. A íntegra do pronunciamento de Victoria pode ser vista aqui. Durante fala à sessão da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, em Brasília, durante esta semana, Paulino Montejo, assessor da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), defendeu que qualquer revisão de procedimento demarcatório é inconstitucional porque precisa ter fatos que determinem qualquer reanálise e fere diretamente o direito originário, constitucional, à terra.

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