“Não há outra via, se não a via popular, da luta social na rua”
Entrevista especial com Boaventura de Sousa Santos – Blog da Boitempo
A luta pela democracia é o que une as esquerdas atualmente, e só essa união e mobilização popular podem reverter o golpe parlamentar no Brasil. Esta é a avaliação do filósofo e sociólogo português Boaventura de Sousa Santos que, em entrevista exclusiva conduzida pelo Movimento Democrático 18 de Março (MD18) e a Universidade Federal do Pará, fez uma análise precisa da atual situação política brasileira. Boaventura desnuda o cenário do que ele chama de Golpe Parlamentar. Fala ainda da importância das lutas sociais, da influência dos Estados Unidos na política brasileira e também sobre as estratégias internacionais para combater o Golpe Parlamentar no Brasil. Neste contexto, o intelectual chama a atenção para a criação de uma grande frente internacional contra a política imperialista americana que, na sua leitura, está em franca ofensiva contra os países que compõem o BRICS. Membro ativo do Fórum Social Mundial, Boaventura destaca a resistência popular que toma as ruas do Brasil como a última trincheira da democracia e faz um apelo para que movimentos sociais mantenham-se ativos e as ruas continuem ocupadas. Mesmo num cenário catastrófico e desolador, seu pensamento pulsante e potente contorna todo o pessimismo.
Esta conversa, conduzida por Kalynka Cruz-Stefani, Professora de Comunicação da Universidade Federal do Pará, Doutoranda em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e Maria Fernanda Novo dos Santos Doutoranda em Filosofia pela UNICAMP com estágio na Universidade Paris X, dá sequência à série de entrevistas do MD18 com grandes intelectuais de esquerda publicadas no Blog da Boitempo. Leia a primeira entrevista da série, com o sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, clicando aqui.
* * *
Diante desta grave crise politica no Brasil, nós do MD18, assim como cada brasileiro engajado contra o golpe, buscamos entender quais ferramentas podem nos ajudar a pensar como resistir a esse governo ilegítimo. Para isso, precisamos entender a partir de diversos pontos de vista este cenário. O senhor, que se dedica há muitos anos a refletir sobre o Brasil, poderia nos dar a sua leitura deste quadro geral?
Estamos envolvidos em uma luta não só nacional, mas internacional, dada a importância do Brasil e, portanto, devemos juntar todos os esforços e ter alguma clarividência sobre o momento difícil que estamos enfrentando. Em primeiro lugar, obviamente, estou absolutamente convicto de que se trata de um governo ilegítimo e de que estamos diante de um golpe parlamentar. O perfil é de um golpe parlamentar relativamente diferente daquele que aconteceu em Honduras e no Paraguai, mas tem, no fundo, o mesmo objetivo que é, sem qualquer alteração constitucional, sem qualquer ditadura militar, interromper realmente o processo democrático. É evidente que o momento é difícil porque nem toda gente pensa como nós, essa é a primeira questão. Por exemplo, neste momento que vos falo, meu coração está pesado, uma colega minha da USP, Flávia Piovesan, que colabora comigo em um projeto internacional, aceitou ser secretária dos Direitos Humanos…. Ontem lhe mandei uma mensagem dizendo-lhe que o prestígio dela não deveria de modo nenhum ser posto a serviço de um golpe parlamentar e que eles não merecem a qualidade que ela tem. Estou, neste momento, a assinar uma carta, assinada também pelos advogados populares e outras organizações sociais, me manifestando contra a decisão dela. Flávia diz que, para ela, não é um golpe parlamentar : o impeachment está previsto, etc. Já conhecemos este tipo de argumentação, obviamente que temos muitos argumentos jurídicos contra esta posição dela, mas não deixa de ser perturbador que uma pessoa ligada aos Diretos Humanos venha emprestar a sua dignidade a este governo. Portanto, isto significa que vamos entrar num período difícil, complexo, com alguma divisão dentro do país, isto era a primeira coisa que gostaria de dizer. Certamente, vai ser muito importante que as forças progressistas, que inequivocamente, penso eu, são as que estão a defender a ideia de que houve um golpe parlamentar, mantenham o seu nível de mobilização para neutralizar não só aqueles que desde sempre estiveram a favor do golpe, como aqueles que acabam por legitimar o golpe, como é o caso da Flávia, se vier a se concretizar, o que parece que vai ser o caso.
Em segundo lugar, eu penso que é uma situação muito difícil porque algo que raramente se discute no Brasil, aliás que muito pouco se discute no Brasil, é a presença pesada do imperialismo norte-americano. Nós não podemos entender o que se passa no Brasil sem uma ação desestabilizadora norte-americana, inspirada e financiada pelos norte-americanos. Há duas dimensões; obviamente que uma é o financiamento de organizações que surgiram a favor do impeachment e que nós temos informação de que alguns dos maiores conservadores norte-americanos – como por exemplo os irmãos Koch que financiam uma das agendas superconservadoras nos EUA – têm estado a financiar estas organizações. Por outro lado, os EUA têm feito muita força para que os homens, sim homens, de fato, todos brancos, que estão do lado deles assumam o poder o mais rápido possível. Com que objetivo? Fundamentalmente com o objetivo principal de neutralizar o Brasil como um dos protagonistas dos BRICS. Os BRICS são uma ameaça extraordinária para os EUA, porque os EUA são uma economia em dependência que se aguenta fundamentalmente porque detêm importante capital financeiro e, portanto, por aceitação universal do dólar. Os BRICS chegaram exatamente a criar um banco que é uma alternativa ao Banco Mundial e, portanto, as trocas entre eles podem ou não ocorrer em dólar. Isto significa um ataque extraordinário ao dólar. Portanto, os EUA têm vindo desde algum tempo produzir uma política de neutralizar todos os países que estão nos BRICS. Começaram pela Rússia. Mas, na Rússia, o processo democrático é um pouco complexo, aí o modo de neutralizar a Rússia foi baixar o preço do petróleo. De uma semana para outra baixou para menos da metade do preço. Em segundo lugar, no caso do Brasil, como há uma democracia, uma democracia viva, aproveitaram obviamente das contradições do processo democrático; sabemos que as democracias representativas defendem-se muito mal dos antidemocratas. Aproveitaram-se disso para criar uma desestabilização muito forte. Aliás, basta ver quem está neste novo governo para ver de forma clara como houve interferência dos EUA no sentido de realinhar o Brasil pela politica americana. O maior exemplo é o José Serra, que é o homem dos EUA que vai para o governo com dois objetivos: fazer com que o Brasil se alinhe completamente com os EUA, o que significa anular o banco dos BRICS, e abrir a possibilidade de o Brasil entrar na parceria Transpacífico. Logo, contra inimigos deste tipo, é muito difícil lutar.
Neste sentido, o que representa o boicote da Rússia e eventualmente da China, nesse jogo de forças internacionais? Isto é capaz de influenciar contra o que está acontecendo, desestabilizar este governo que tomou o poder?
O Brasil está agora com a oportunidade – e devemos ter consciência disso – de fazer uma luta contra o imperialismo norte-americano. Há aqui realmente, alguma oportunidade para desestabilizar este projeto global que, como sabem, não é apenas na América Latina. Vemos muito bem que no sul da Europa, na Grécia, em Portugal e na Espanha as mesmas receitas de austeridade estão a ser aplicadas. Portanto, o Brasil está, neste momento, numa posição histórica que permite ser uma frente de luta contra o imperialismo, mas isto vai depender de muitas coisas, vai depender acima de tudo do movimento popular interno do Brasil. É fundamental lançar internacionalmente a ideia de que, com vários países, o Brasil possa vir a construir um bloco que faça alguma afronta a esta intenção dos EUA e da União Europeia. Neste momento, a UE não tem nenhuma identidade autônoma em relação aos EUA.
Além disso, é também preciso que o movimento popular no Brasil continue. Principalmente agora que o golpe não está consumado, mesmo que haja uma suspensão (do Governo de Dilma) e que não haja pressa (do Governo ilegítimo) em resolver. Aliás, esta é uma outra ilegitimidade deste governo – e foi assim com Itamar Franco também – mas este Governo é um governo provisório, porque a presidente Dilma está suspensa, não foi afastada definitivamente e, portanto, este Governo não deveria ter uma política de mudança tão radical com tantas medidas que estavam na pauta do congresso e que agora vão avançar. E estas pautas são demolidoras e vão alterar todo o modelo econômico. É evidente que o processo (de afastamento de Dilma) vai avançar e certamente o golpe consuma-se. Por isso a vossa pergunta inicial faz todo o sentido, o que fazer internamente?
Os movimentos sociais e populares foram atacados diretamente com o esfacelamento de políticas que foram conquistas históricas. A extinção, ou a cisão em secretaria, de Ministérios que trabalhavam a favor de políticas públicas que atendessem às demandas populares foi a primeira canetada de Michel Temer. Como entender este ato que representa a implosão da comunicação entre governo e sociedade civil?
Obviamente, a extinção destes Ministérios é para mostrar que este Governo e este golpe sabem muito bem a que vieram. Está absolutamente claro que os cortes nos Ministérios foram exatamente em todos os Ministérios que respondem às pautas dos Movimentos Sociais. Aliás, a ministra da Igualdade Racial, Nilma Gomes, que foi minha pós-doutoranda, uma das mais brilhantes que tive e cuja políticas estive a acompanhar de muito perto é um bom exemplo do que efetivamente acaba de passar no Brasil. Por isso, é muito importante notar que, quando a direita conservadora entra no poder, ela entra com uma violência enorme, no sentido de apagar o mais rapidamente possível a memória de tudo que se passou em tempos mais recentes. Vejam o que aconteceu com o Macri, porque a estratégia é global. Em três semanas, alterou a legislação que praticamente anulou todas as conquistas sociais que o governo peronista de Cristina tinha desenvolvido nos últimos anos. É exatamente isto que vai se passar agora. Qual o problema dos argentinos? É que o Macri ganhou as eleições e, portanto, houve uma divisão na sociedade. Isto fez com que os movimentos sociais ficassem paralisados.
No Brasil, não. Uma presidente ganhou as eleições, a direita não gosta do resultado das eleições e começa a desestabilizar. Poucos meses depois de a presidente ser eleita, pedem o impeachment dela. É como eu disse e tenho escrito : temos, neste caso do Brasil, talvez a política mais honesta da América Latina que foi impedida pelos políticos mais corruptos. Isto nunca tinha acontecido. É uma coisa nova e, portanto, os movimentos sociais estão a tomar conta disso. Eu acho que nós, neste momento no Brasil, temos uma série de movimentos, realmente uma frente unida, mas com suas especificidades. Tem alguns movimentos mais próximos do PT, outros estão mais independentes, no aspecto mais amplo da esquerda. De um lado, o MST; do outro, o MTST, que são distintos – eu, aliás, trabalho com ambos. Estão nesta frente também os movimentos quilombolas, os movimentos indígenas; todos estão muito ativos. E eu penso que, para efeito internacional e interno, esta mobilização deve se manter.
Qual é o nosso problema? Como sou cidadão honorário das universidades de São Paulo e Porto Alegre, eu falo como se fosse brasileiro. É assim que me sinto neste momento. Eu acho que, neste momento, realmente o grande problema que nós enfrentamos é que a mobilização popular não é sustentável ao longo de muito tempo com o mesmo dinamismo. Isto é, as pessoas a certa altura cansam, o processo do impeachment vai durar seis meses e não é crível que se mantenha o mesmo nível de mobilização. Não quer dizer que ela não se mantenha, mas temos que lutar muito para que ela se mantenha. Eu penso que vai ser muito importante manter esta pressão. Neste momento, quando vocês me perguntam onde estão as vias de luta política, não há outra via se não a via popular, da luta social na rua, nas organizações. Veja como alguns dos ministros e alguns dos secretários foram recebidos quando entraram: os próprios servidores os insultaram. Portanto, esta desestabilização dos desestabilizadores é fundamental. Ela tem que se manter e, portanto, acho que há várias estratégias que devem ser adotadas no sentido de manter esta mobilização em alto nível para poder continuar a fazer pressão. Não uma pressão sobre o congresso, porque realmente como vocês dizem e muito bem, este congresso não representa de maneira nenhuma o Brasil, e isto é o que nos devemos pensar para o futuro. Ou seja, é preciso uma reforma política.
Portanto, eu acho que vai ser necessário manter acesa a luta social, mantê-la unida pela democracia. Pois, quando os movimentos se unem é pela democracia. Como sabem – e talvez vocês acompanhem o meu trabalho – eu fiz várias críticas à presidente Dilma obviamente. Acho que a presidente Dilma não estava preparada para esta situação, de maneira nenhuma. Ela foi uma escolha pessoal do presidente Lula e, portanto, não me admiro que o presidente Lula considere que está a passar por uma derrota pessoal. Porque foi realmente uma escolha pessoal de alguém que sai da presidência com 80% de aceitação e, portanto, pensa que os próximos quatro anos serão anos de bonança, serão anos tranquilos, mas não foi isso. Dilma cometeu erros enormes, sobretudo no início do segundo mandato ao fazer as políticas de austeridade que nós conhecemos e ao nomear para as finanças o Levy. Portanto, o que une os movimentos neste momento é a luta pela democracia, não é luta pelo governo do PT. E isso parece-me que é o importante, isso pode unir as pessoas.
E esperamos que esta unidade se mantenha, porque o que vem por ai em termo de legislação, pelas medidas que vocês aqui mencionam (como as pautas conservadoras do Congresso) e que obviamente têm toda razão, há muitas outras que estão na calha. Notadamente, a legislação sobre as empresas públicas. A proposta que já está no Senado é para que as empresas públicas funcionem como empresas privadas. A independência do Banco Central é outra, e fundamentalmente da proposta do pré-sal. Retirar da Petrobras o fato de ter 30% da reserva do pré-sal e abrir isso ao mercado internacional, eles querem tirar isso. Agora façam a ligação, porque os irmãos Koch são os grandes industriais do Petróleo nos Estados Unidos. São os que estão, por exemplo, por trás do cracking nos EUA e na Argentina. Portanto, eles têm muito interesse econômico em receber este recurso.
Quando o senhor afirma que a mobilização social é quase o único caminho, surge uma questão incontornável. Qual é a possibilidade de acionar recursos jurídicos internacionais ?
Eu acho que várias medidas podem ser tomadas, e eventualmente estão a ser tomadas. Por exemplo, eu mesmo tomei uma iniciativa no âmbito do Fórum Social Mundial de criarmos um tribunal ético internacional. Isto está a causar muita polêmica dentro do Fórum porque as correntes dominantes não querem assumir uma posição direta em nome do Fórum. É um debate que eu tenho com o Chico Itacar, e penso que vou perder este debate. Pelas informações que tenho até hoje, a maioria das pessoas não quer que Fórum Social Mundial apareça como criador de um tribunal ético. Eu penso que isto é uma derrota enorme. E faço aqui uma crítica porque sou uma das pessoas que esteve no FSM desde o início e sinto que é a sentença de morte do FSM se não tomar nenhuma medida nesta situação em que está o país, que, no fundo, deu ao mundo o FSM, que foi o Brasil.
Esta recusa se dá por causa das políticas do PT?
Não, é uma política que surge como medida jurídica, isto é, aparece fundamentalmente como desrespeito pela regra do Fórum. Segundo os princípios, o Fórum não toma posições políticas sobre a agenda internacional. Eu sou membro do conselho internacional e venho lutando pela mudança dessas regras. Bem, tudo leva a crer que as regras não serão mudadas. Em segundo lugar, eu penso que o Tribunal Interamericano de Direito Humanos, a corte, a comissão e o tribunal podem eventualmente ser chamados a se pronunciarem sobre a ilegitimidade deste governo. Eu penso que há uma intenção de apresentar uma queixa na comissão internacional, senão mesmo no tribunal dos direitos humanos, porque o próprio presidente da comissão já mostrou suas reservas ao que está a passar no Brasil. E por outro lado, um dos juízes mais prestigiados da corte, que é o juiz Raul Zaffaroni, da Argentina, também se mostrou complemente adepto disso.
Em terceiro lugar, eu penso que os estudantes mobilizados, os trabalhadores, os imigrantes, todos os que estão fora do Brasil deviam, neste momento, fazer dois tipos de ação. Um movimento de pressão sobre as embaixadas, manifestações na embaixada do Brasil, por todos os meios pacíficos. E, por outro lado, ações junto aos ministérios dos governos estrangeiros destes países. Ações orientadas, praticamente diárias e eventualmente um acampamento, como se faz muitas vezes. Enfim, é preciso ação que eu chamo de extra institucional neste momento. E junto das embaixadas para que isso possa trazer algum impacto mesmo midiático. Penso que as mídias internacionais estão realmente perturbadas com a agressividade do golpe e a agressividade da Globo. O Guardian deu uma matéria em que tornou claro que os jornalistas se sentiam enganados pela Globo. Na medida em que a Globo parecia que estava a transmitir distúrbios, estava efetivamente a provocar distúrbios. Vindo do Guardian, é uma grande condenação. Então, a mídia está divida e penso que ações inteligentes aqui na Europa, sobretudo, podem ter algum impacto.
Portanto, a vossa responsabilidade aqui é manter esta dinâmica absolutamente forte para aguentar, porque nos movimentos de rua e nos movimentos extra institucionais não podemos estar todos mobilizados ao mesmo tempo. Mas, todos nos ajudamos uns aos outros na mobilização. Isto é, se souberem no Brasil que os estudantes e imigrantes etc aqui de Paris se juntam para fazer uma ação junto à embaixada e junto aos ministérios dos governos estrangeiros, isso vai animar quem está no Brasil. Ou quem está em Portugal, quem está na Espanha, etc. Vocês têm que não só fazer estas ações como torná-las conhecidas. Portanto, acho que isso é que tem ser feito : uma rede internacional de apoio.
Frente à crise das instituições, acreditamos que o silêncio e a participação subjetiva do judiciário foram fundamentais para sustentar as bases do golpe. Qual a sua avaliação do dano que o Judiciário brasileiro causou ao Brasil ?
É evidente que o judiciário é uma instancia conservadora. O judiciário tem um desempenho extremamente desigual dentro do Brasil. Nós tivemos, no passado, alguns momentos em que o judiciário parecia estar ao lado dos movimentos. Vemos algumas decisões progressistas até do tribunal no que diz respeito à reintegração de posse no caso das ocupações do MST, por exemplo no passado em Pontal do Paranapanema. Mas, é evidente que a grande maioria e a instituição por si própria é conservadora. Ainda que conservadora, mantém mesmo assim alguma ideia de primado do direito. E para saber que a direita não quer o primado do direito, mesmo um primado do direito conservador, vemos o que tem sido tentado aprovar no congresso do Brasil, que a concessão da terra aos povos quilombolas e indígenas saia do STF e passe para o congresso, o que significa que nunca mais nenhuma terra será concedida. Portanto, a direita nem sequer no STF merece confiança. O STF que é, no fundo, a cúpula do sistema. Agora, o grande problema é que sendo uma instituição conservadora como é, ela é muitas vezes presa de uma politização excessiva, óbvia, repugnante, como foi o caso do Sérgio Moro. Um juiz de primeira instância que realmente assumiu como justiceiro privado a Lava Jato, tomando medidas, algumas delas ilegais e inconstitucionais. E aqui é que se nota o caráter conservador do sistema, pois ele não foi disciplinado por irregularidades que cometeu, como por exemplo grampear o telefone da presidente.
Vocês se recordam do clamor que houve no Brasil quando o presidente Obama e a NSA tinham grampeado o telefone da Dilma. Bem, agora um juizinho de Curitiba o faz e não acontece nada. Quer dizer é um escândalo o que se passou. Por outro lado, obviamente que é totalmente seletivo, porque nunca houve tanta luta contra a corrupção como nos governos do PT. A corrupção obviamente atinge sobretudo o PSDB e o PMDB, mas a seletividade da investigação está sobretudo em cima do Lula e da Dilma e de algumas pessoas do PT. E é evidente que tudo isto faz parte da jogada do império. Vocês viram que o Sérgio Moro foi considerado um dos líderes mais influentes do mundo, um dos novos líderes pela Time. Ora bem, a Time atua com a Globo. Ou seja, o imperialismo norte-americano perfeitamente organizado para criar uma nova liderança política no Brasil. Eventualmente, um presidente daqui alguns anos, porque a própria direita sabe que a maior parte de seus políticos é corrupta. Michel Temer não será mantido, ele está ali para fazer o serviço do golpe. Depois ́, é evidente que o mandam embora a qualquer momento. Nós não temos de fato, neste momento no Brasil, qualquer garantia jurídica forte contra um golpe desta natureza. Portanto, só há a pressão da rua.
Sobre o tempo de vida desse golpe, nos parece que há uma expectativa por parte da população de que se realizem novas eleições para reconquistar a democracia. Na sua avaliação, qual a nossa perspectiva de futuro se não conseguirmos reverter este Golpe antes de seis meses?
É evidente que a pressão das ruas deve ser a máxima pressão durante o período do julgamento do impeachment, nestes seis meses. Há várias possibilidades, e todas elas têm vindo a ser discutidas pelos movimentos. Uma dela foi a possibilidade de uma emenda constitucional para novas eleições muito em breve, no outono por exemplo, depois de se criar uma situação de ingovernabilidade no pais que faça com que a única solução seja realmente novas eleições. E que pode até ser que a direita ganhe. Mas se a direita é inteligente, pode ser uma direita inteligente, penso que se for as eleições provavelmente ganhe e assim se pacifica. Portanto, pode haver uma aliança não só do movimento popular, mas de algumas forças conservadoras para fazer um projeto eleitoral. Eu penso que se continuar a mobilização popular não vai ser possível aguentar até 2018 sem outra consulta popular. É o melhor que pode acontecer no Brasil.
Agora, o problema é perceber que esta é a proposta mínima, isto é, eleições antes de 2018. Acho que é fundamental para pacificar o pais e restaurar a democracia. Mas é um programa mínimo, porque o programa máximo seria uma assembleia constituinte originária. Isto é, fazer uma assembleia constituinte, fazer uma eleição para uma assembleia que fizesse uma revisão da constituição, que é o que está neste momento a ser pedido para uma reforma política. Porque se vamos fazer novas eleições sem mudar o sistema político, vamos ter o mesmo. Portanto, a bala, o boi e a bíblia vão continuar a dominar porque são eles que têm dinheiro para colocar seus capangas no congresso. Portanto, deveria haver uma reforma política. Agora, há realmente espaço político para pedir esta reforma, e uma assembleia? Provavelmente não. Aliás, eu tenho dito que uma assembleia constituinte num momento de grande crise social é complicado. Portanto, o melhor é isso, a pressão, no meu entender acho que muito importante na frente popular, uma pressão para que haja eleições, um processo eleitoral antes de 2018.
Aproveitando que você está aqui em Paris para uma conferência sobre Epistemologias do Sul, gostaríamos que você nos ajudasse a pensar o que pode acontecer com a inversão das vozes que detêm o poder e o espaço de fala, como acontece com a presença dos negros nas universidades, ocupando lugares de destaque e de tomadas importantes de decisão, de quilombolas lutando pelo reconhecimento de sua ancestralidade, ou dos indígenas que se organizam para defender suas terras e seus saberes. Isso é, de algum modo, a atualização de seu conceito?
Basicamente, as Epistemologias do Sul são uma proposta que temos vindo a fazer no sentido de valorizar o conhecimento nascido na luta. É justamente disso que estamos falando até agora, dos movimentos sociais e daqueles e daquelas que se mantiveram invisíveis, ocultos, marginalizados ao longo da história. Isto é, os vencidos, digamos assim, dos três grandes modos de dominação contemporânea: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. E fundamentalmente, a minha proposta de Epistemologias do Sul é fortalecer esta resistência e lhe dar valor epistemológico, ou seja, os conhecimentos nascidos na luta são isso.
Portanto, o meu trabalho intelectual não tem nenhuma influência direta, nem quero que tenha diretamente aos movimentos. Eu sou aquele que está na retaguarda, eu aprendo com os movimentos. E, naturalmente, posso ajudar com as minhas posições. Mas é evidente que a energia, a força epistemológica que venham daí, dos movimentos indígenas, dos movimentos quilombolas, das mulheres. São eles que nos têm ensinado muito sobre aquilo que, depois, aparece como epistemologias do sul. É uma tentativa de criar um paradigma não- eurocêntrico na relação filosófica, epistemológica e teórica.
É nisto que estamos. E, hoje, cada vez mais as pessoas estão a absorver esse conceito que é central, de ecologia dos saberes, e junto aos saberes universitário, acadêmico que obviamente todos nós reconhecemos, mas que ele não é único. Há outros saberes e eles têm que se articular com outros saberes.
***
O Movimento Democrático 18 de Março (MD18) nasceu da luta contra o golpe de Estado no Brasil. Sediado em Paris, e com grande presença de pesquisadores, professores universitários, artistas e militantes de movimentos sociais, o movimento propõe ampliar a reflexão sobre as possibilidades da esquerda na atual conjuntura de crise. É com esse objetivo que o MD18 inaugura uma série de entrevistas com intelectuais, artistas e militantes de diferentes horizontes, que visam ampliar o debate sobre as formas de resistência que podem e devem advir. O projeto se inicia com a participação de grandes pensadores da esquerda como Michael Löwy, Boaventura de Sousa Santos, Nancy Fraser e Anselm Jappe, além de contar com a colaboração de inúmeros intelectuais brasileiros. As entrevistas serão disponibilizadas em português e em francês no site do MD18: http://www.md18.org/
***
Boaventura de Sousa Santos é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick.