Cristofobia e a santa cruzada brasileira pelo direito ao preconceito, por Leonardo Sakamoto

Blog do Sakamoto

No começo era uma cara de nojinho aqui, um balançar negativo de cabeça ali, um tremelique seguido de um sinal da cruz e um deus-que-me-livre-e-guarde. Tudo muito discreto como recomenda a hipocrisia brasileira.

Mas como determinados grupos cismavam em achar que podiam ter os mesmos direitos dos “homens e mulheres de bem” desta gloriosa nação, os preconceitos – que sempre existiram – escancararam-se para fora do armário. Afinal de contas, era preciso defender os valores da “tradicional família brasileira” – não a indígena, que segue sendo devidamente dizimada em um genocídio a conta-gotas, mas aquela, branca, cristã, rica e feliz, que aparece em comerciais de margarina.

– Casais gays e lésbicos insistem em andar de mãos dadas na rua? Devem apanhar até morrer.

– Uma jovem gosta de sexo e tem vários parceiros? Estupro corretivo nela.

– Negros entram por cotas em uma universidade pública? Assédio para que se lembrem que nunca serão iguais a nós.

– Trabalho escravo de migrantes bolivianos? Cala a boca e trabalhem. O que importa é o preço da roupa.

– Uma empregada domésticas reclamando de direitos? Demissão, claro. Como ela ousa? Sempre a tratamos como alguém praticamente da família.

A insurgência de determinadas minorias em direitos levaram a contra-ataques ferozes daqueles que, historicamente, nunca tiveram que lutar para serem considerados cidadãos – ou mesmo gente. E para que essa reação a fim de manter tudo como está fosse palatável para o resto da sociedade, vendeu-se a ideia de que os carrascos são vítimas e as vítimas são carrascos.

– Gays e lésbicas querem converter nossos filhos à crença homossexual através da ideologia de gênero, precisamos impedir isso!

– É necessário ensinar às meninas que apenas as mulheres que não se dão ao respeito e que agem como vagabundas é que são estupradas.

– O Brasil sempre foi um país com igualdade de direitos e condições. As cotas vieram tumultuar e acabar com o processo meritocrático.

– A vida desses migrantes era muito pior em seu país bolivariano. Aqui, damos casa, comida e um trabalho. Deviam ser gratos.

– É um absurdo que uma família que sempre ajudou uma empregada seja colocada na Justiça. A classe média não tem como pagar direitos trabalhistas.

A ideia de inverter o lugar de vítimas e carrascos é feita diariamente por setores da mídia, por certos “humoristas”, por escolas, em empresas, clubes, igreja. E é através da religião, aliás, que estamos inaugurando uma nova etapa nesse processo. Pois não basta inverter as bolas no dia a dia, precisamos normatizar tudo isso.

“Hoje, o cristão, principalmente o evangélico, tem suas ações tolhidas por algumas opiniões. Você tem uma minoria sendo tolhida de seus direitos, como liberdade de expressão e, até mesmo, às vezes, liberdade de culto. O cristão, hoje, não pode falar qualquer coisa relacionada à homoafetividade que ele é caracterizado como um homofóbico. Ou seja: falou que é contrário à prática da homossexualidade, ele é homofóbico. Você tem essa questão sendo muito aprisionada.”

A declaração é de Eduardo Tuma (PSDB), vereador da capital paulista, que conseguiu aprovar com a ajuda de partidos do governo e da oposição o “Dia de Combate à Cristofobia”.

Pobres cristãos… Tão frágeis e indefesos diante dos malditos gays e lésbicas!

Os direitos humanos são como uma complexa colcha em que um retalho (direito) termina quando começa o outro. E todos eles seguem costuradinhos para fazer um tecido único. Ou seja, a liberdade de expressão, que é um dos desses retalhos, não é absoluta, não pode ser usada para incitar violência contra a dignidade e a integridade de outras pessoas – como, não raro, tem sido feito em alguns templos e igrejas.

Sabemos todos como a “prática da homossexualidade” (sic) tem sido condenada como pecado mortal. E sabemos que não é a mão do pastor ou do padre a ferir e matar, mas a sobreposição do discurso de ódio ao longo do tempo que torna-o quase uma ordem. Ou um desejo de Deus.

E não é questão de seguir o livro sagrado do cristianismo. É uma questão de poder e hegemonia. Porque se a bíblia diz “Não se deite com um homem como quem se deita com uma mulher; é repugnante” (Levítico 18:22) também impede a cobrança de juros (“Não lhe darás teu dinheiro com usura, nem darás do teu alimento por interesse”, Levítico 25:37) e condena quem come certos frutos do mar (“De todos os animais que há nas águas, comereis os seguintes: todo o que tem barbatanas e escamas, nas águas, nos mares e nos rios, esses comereis. Mas todo o que não tem barbatanas, nem escamas, nos mares e nos rios, todo o réptil das águas, e todo o ser vivente que há nas águas, estes serão para vós abominação”, Levítico 11:09 e 10).

Mas, ao contrário de gays e lésbicas, ninguém dá porrada em banqueiro ou taca pedra em quem pede camarão ao alho e óleo.

Os tempos são outros. Os grupos sociais que, até agora, reinaram sozinhos sobre a sociedade terão que abrir espaço para que os excluídos vejam seus direitos respeitados ao invés de se fazerem de vítimas e tentarem usar o poder público para referendar seus discursos de exclusão. A verdade é que tudo muda.

Tanto muda que a data escolhida para o “Dia de Combate à Cristofobia” foi o 25 de dezembro. Nesse dia, aproveitando o solstício de inverno, celebrava-se o “Nascimento do Sol Invencível”, em homenagem ao deus persa Mitras. Apenas em 354 d.C. a data foi apropriada pelo papa Libério para nela celebrar o nascimento de Jesus de Nazaré.

Quem sabe, no futuro, a data não seja realmente usada para comemorar a fraternidade de cristãos e não-cristãos que ao invés da incitação do ódio. Pode demorar, mas vai acontecer. Para desespero de muita gente.

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