O fotógrafo Lunaé Parracho revela a descoberta da fotografia por sua mãe – no momento em que ela enfrenta uma grave doença
Por Lunaé Parracho, na National Geographic Brasil
Nas manhãs de agosto de 2014, minha mãe acordava cedo dentro de seu quarto no Planet Hostel, em Montevidéu, onde então vivia e trabalhava. Todos os dias, organizava suas coisas, tomava um café, pegava a câmera fotográfica e caminhava umas três quadras rumo à la rambla.
Em um dia deste mês do inverno uruguaio, ela havia testemunhado uma luz incidindo através da neblina sobre a linha de prédios na orla do Rio da Prata. Era uma luz específica, meio dourada, meio prateada, feita difusa pelo sereno, reluzindo sutil nas edificações e nas águas mansas do rio. A cena havia encantado seus olhos. “A luz era bela”, me disse, “o sol recém nascendo… os raios do sol nos prédios, na água… era uma luz diferente… essa neblina encobria, ao mesmo tempo que produzia uma cor outra, não como a do sol de todo dia”.
“Fiquei com isso mais de um mês na cabeça. Ia cedo, antes do meu horário de trabalho, para ver se conseguia pegar a tal luz. Caminhava, ficava sentada na mureta, esperando. Mas não se repetia…”
No mesmo período, no oeste do Maranhão, eu caminhava a uma distância aproximada de 4.700 quilômetros daquela costa. No meio da floresta. E enquanto minha mãe me contava de sua busca, me transportei para aquelas suas manhãs, em completa identificação. A gente que fotografa tem disso em algum momento da vida. A gente vai reparando num tanto de luzes distintas ao longo dos anos, mas sempre tem “aquela luz”.
Agora, estou diante das fotos de minha mãe, que assina ‘Jubas’. Uma produção para mim muito significativa. Foi ela quem me deu a primeira câmera, quando eu tinha 17 e nos últimos cinco longos anos, que passamos sem nos ver, ela comprou a sua – e estivemos, os dois, fotografando.
Vou seguindo suas composições, feitas das mais variadas matérias-primas – das cores de crepúsculos da capital uruguaia a múltiplas perspectivas de quem caminha a cidade sem se cansar.
Em meio às suas fotos, pinturas e desenhos, acredito estar testemunhando o encontro de uma artista com sua própria arte. O cenário é um sul pulsante da América Latina, que ela sempre trouxe nas veias – somos de Sant’Ana do Livramento, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai.
“A gente nem sempre escolhe nossas lutas”
Três meses atrás, internada em um hospital em Porto Alegre, minha mãe quis escrever às suas pessoas queridas, mas não podia. Desde o fim do ano passado, ela vinha tendo dificuldades com as palavras. Não conseguia ler nem escrever nada, e pediu emprestado minhas mãos para contar o que lhe acontecia, numa carta que postou no Facebook. Em agosto de 2015, ela havia sido submetida a uma cirurgia para remover um pequeno tumor na mama. Naquele momento, segundo os médicos, o câncer se apresentava inofensivo e ela tinha “95% de chance de cura”.
Cinco meses depois, entretanto, um outro diagnóstico, tardio, revelou um tumor de pulmão agressivo com metástase no cérebro e ossos. Aos meus questionamentos, um médico-chefe da equipe de mastologia respondeu que a chance de uma paciente com aquele tumor na mama apresentar este outro câncer eram tão remotas quanto a chance de alguém correr para baixo de uma marquise fugindo para se proteger de uma chuva – e a marquise desabar sobre a pessoa naquele exato momento. Esses são os esforços metafóricos empreendidos por profissionais de saúde diante do que parece se lhes apresentar como imponderável.
No último dia 2 de fevereiro, dia de Iemanjá, minha mãe queria agradecer às suas amigas e amigos o carinho que vinha recebendo naquele momento difícil em forma de mensagens que chegavam de toda parte, de familiares e amigos que fez no curso da estrada.
À época, diante do risco de a qualquer momento sofrer graves lesões no sistema nervoso que poderiam permanentemente arrancar dela as palavras, aos 53 anos, minha mãe me ditou que escrevesse o seguinte: “Não sei o que vai acontecer daqui para frente. Por isso tomo este momento para lhes escrever. Se eu perder conexões cerebrais e as letrinhas me escaparem de vez, quero que saibam, desde já, que a nossa conexão de coração e alma permanecerá igual, como sempre. Quero que saibam, também, que não vou fugir à luta. Vou lutar, como sempre fiz em minha vida. E não quero que fiquem tristes.”
Naqueles dias, uma amiga nos enviaria uma mensagem solidária em que dizia: “A gente nem sempre escolhe as nossas lutas. Às vezes elas vêm ao nosso encontro. E acho que essas são sempre as mais difíceis”.
Firme em sua crença na fé Bahá’í, minha mãe me dizia outro dia que “as pessoas associam o câncer com a morte, mas eu não tenho medo de morrer, porque sei que existe outra vida em outro mundo depois deste. Acontece que não é minha hora, ainda tenho o que fazer bem aqui neste mundo.”
Dias depois de receber alta daquela internação, ela quis compartilhar uma nova carta, onde dizia que “apesar do quadro que está se apresentando, não esmoreço, estou vivendo cada momento. E cada momento que passa eu enfrento”.
“Essa doença não me faz triste. Me faz mais forte. Quero que saibam que estou feliz”, me pediu que escrevesse.
Ela agora retomou as palavras, depois de um ciclo de radioterapia, e agora luta contra as dores da doença enquanto tenta superar os efeitos colaterais da quimioterapia. Ela também vem buscando, fora da medicina hegemônica, perspectivas para entender o que lhe aconteceu. Todos os dias, renova com um pouco mais de lenha a fogueira da fé e da esperança. Nesse processo, estamos publicando suas fotos e compartilhando suas pinturas e desenhos em um blog, que é parte dessa lenha.
“Um diagnóstico de câncer é como ser forçado a olhar para dentro de si”, ela me diz. “E a arte” – quem sabe um pouco filha da fé e irmã da esperança – “tem esse poder de alimentar conexões sutis que nos mantém de pé.”
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Praia de Pocitos: os trilhos levam ao céu celeste infinito e ao rio-mar e, como uma mensagem de renascimento, uma árvore bem no fim da linha. Foto: Jubas.