Depois de décadas de abusos e perseguições, os Avá-Canoeiro do Araguaia finalmente estão perto de ter seu território tradicional demarcado. Este direito, contudo, encontra-se ameaçado pela articulação dos ruralistas que exigem do governo interino a revisão da Portaria Declaratória da Terra Indígena Taego Ãwa.
Por Tiago Miotto, da assessoria de comunicação do Cimi
A história dos indígenas do povo Avá-Canoeiro do Araguaia (Ãwa, em sua autodenominação), no Tocantins, é marcada por eventos bárbaros de massacre e perseguição e por uma trajetória impressionante de resistência. Eles já foram caçados como animais selvagens, forçados a se esconder na mata por anos e, quase dizimados, foram capturados em uma ação de “contato” forçado protagonizada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1973, durante a Ditadura Militar, e levados, por fim, para viver na terra dos Javaé, contra a vontade destes que eram seus inimigos históricos.
Mesmo assim, resistiram. E só agora, mais de 40 anos depois, caminham para que o direito a viver conforme seu próprio modo de vida, no território tradicional de onde foram capturados em 1973, seja efetivado. Em 11 de maio de 2016, o então ministro da Justiça, Eugênio Aragão, publicou a Portaria que declara a Terra Indígena (TI) Taego Ãwa como de ocupação tradicional dos Avá-Canoeiro, uma conquista histórica para um povo que foi quase aniquilado. O próximo passo importante para que a demarcação do território tradicional dos Ãwa se concretize é a homologação da TI Taego Ãwa.
Na cruzada dos ruralistas contra os direitos tradicionais dos povos indígenas, contudo, os fatos históricos são maleáveis e irrelevantes. Em 17 de maio de 2016, o senador Ronaldo Caiado (DEM/GO) entregou ao ministro da Justiça do governo interino, Alexandre de Moraes, um ofício no qual questiona o “<em”>mérito duvidoso” da portaria declaratória referente à TI Taego Ãwa e solicita sua “reanálise”.
A demanda do senador faz parte da ofensiva dos ruralistas contra os povos indígenas, que exigem do governo interino de Michel Temer a revogação dos poucos processos de demarcação de terras indígenas que avançaram antes do afastamento de Dilma Rousseff.
Para justificar o pedido de revisão da portaria, o senador Caiado utiliza um laudo feito por Edward M. Luz (clique aqui para ler na íntegra), antropólogo desacreditado no meio acadêmico, que atua a serviço dos ruralistas e já foi desligado da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em função de sua atuação antiética contra os povos indígenas (para saber mais, leia a reportagem da Agência Pública).
Segundo documento da ABA, Edward M. Luz não expressa “a experiência e o saber acumulado pelos antropólogos brasileiros” em relação à questão indígena e foi desligado da entidade “por declarações equivocadas e simplificadoras, inteiramente desprovidas de rigor e embasamento científico”.
A antropóloga Patrícia de Mendonça Rodrigues, responsável pelo estudo de identificação e delimitação da TI Taego Ãwa, entregou um documento ao Ministério da Justiça (MJ) (clique aqui para ler na íntegra), no qual contrapõe os argumentos utilizados por Edward M. Luz na tentativa de desqualificar o estudo e a demanda territorial apresentada pelo povo Awá-Canoeiro do Araguaia.
A ABA também se manifestou ao MJ, asseverando a qualidade e o rigor científico do relatório de identificação da TI Taego Ãwa.
Para saber mais sobre o risco de revisão das demarcações de terras indígenas pelo governo interino de Michel Temer, acesse o link e apoie a campanha “O governo é provisório, nossos direitos são originários”: http://cimi.org.br/revogacaonao.
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Argumentos e contra-argumentos: porque demarcar a TI Taego Ãwa
Destacamos, sublinhados, os principais argumentos utilizados pelos ruralistas para defender a revisão da Portaria Declaratória da TI Taego Ãwa, contrapondo-os em seguida aos argumentos apresentados pela antropóloga Patrícia de Mendonça Rodrigues, que realiza estudos históricos e antropológicos com os povos indígenas da região desde 1990 e já coordenou Grupos Técnicos de identificação e delimitação de oito terras indígenas para a Funai.
Confira:
1. “A Presidente afastada e sua equipe procuraram dar ao caso apontado um andamento célere e carente de análise profunda”
Na verdade, o processo de identificação e delimitação da TI Taego Ãwa iniciou em 2009, após o reconhecimento do erro histórico cometido pela Funai em 1973, ao capturar violentamente os dez remanescentes do povo Avá-Canoeiro do Araguaia na Mata Azul, no interior da TI Taego Ãwa, e transferi-los para a aldeia do povo Javaé — onde, segundo a antropóloga Patrícia de Mendonça Rodrigues, eles “foram incorporados pelos últimos a uma tradicional categoria de cativos de guerra (wetxu) por uma imposição autoritária do Estado”.
O relatório de identificação e delimitação da TI Taego Ãwa foi publicado em 2012 e, desde então, aguardava a manifestação do Ministério da Justiça. Assim, não houve andamento célere neste processo: foram pelo menos 43 anos de atraso na reparação deste grave erro do Estado brasileiro.
2. “O primeiro obstáculo à legitimidade e validade desta demanda é o fato concreto de que o reduzido grupo indígena Avá-Canoeiro já possui nada menos do que 3 (três) terras indígenas já demarcadas direta e nominalmente destinadas ao referido grupo indígena”
Em seu documento, a antropóloga Patrícia de Mendonça Rodrigues afirma que “se trata de absoluta falsidade afirmar que os Avá-Canoeiro do Araguaia ocupam três terras indígenas com milhões de hectares ou que vivem ‘bem acomodados’ e ‘adaptados’ no lugar de moradia atual. As três terras citadas estão sob o usufruto exclusivo dos Javaé e dos Karajá (T.I. Parque do Araguaia e T.I. Inãwebohona), ou dos Avá-Canoeiro do Rio Tocantins (T.I. Avá-Canoeiro), etnia que ocupa uma área muito distante geograficamente e com a qual o grupo do Araguaia não reconhece nenhum vínculo biológico, histórico ou de parentesco, dada a separação da mesma de mais de 160 anos”.
A antropóloga destaca ainda que na terra dos Javaé, onde os Avá-Canoeiro do Araguaia foram forçados a viver a partir de 1976, este povo vive “em uma clara posição de inferioridade e subalternidade social, advindo dessa situação severa marginalização socioeconômica, política e cultural, como foi fartamente demonstrado no relatório e omitido por Edward Luz”.
3. “Esta demanda de ampliação da terra indígena ainda terá um altíssimo impacto social, nas propriedades e no desenvolvimento regional, porque atingirá em cheio os Projetos de Assentamentos Caracol 1 e 2, uma iniciativa do INCRA onde residem, vivem e trabalham mais de 800 pessoas que foram retiradas da Ilha do Bananal declarada terra indígena e que agora dependem daquela terra para sua sobrevivência”.
Não se trata da “ampliação” de uma Terra Indígena, e sim da única demarcação de uma terra de ocupação tradicional dos Avá-Canoeiro do Araguaia. Em relação ao Projeto de Assentamento Caracol, que desde sua transferência, na década de 1990, incide sobre metade da TI Taego Ãwa, a antropóloga Patrícia de Mendonça Rodrigues afirma que os dois grupos — indígenas e assentados — foram vítimas de políticas equivocadas do Estado.
“O consultor Edward Luz não informa que houve grave omissão da Funai quando permitiu a criação do assentamento na Mata Azul, área de ocupação tradicional dos Avá-Canoeiro, fato de conhecimento notório na região, sem que os indígenas fossem consultados; e séria negligência do Incra quando escolheu uma área de várzea inundável durante seis meses ao ano, de solo pobre e arenoso, que não tem aptidão agrícola nem pecuária, conforme demonstra o relatório ambiental, para assentar camponeses de vocação agropecuária, os quais tiveram que passar a alugar terras fora do assentamento todos os anos, conforme é público e notório na região, para o gado viver durante a época de enchente”, afirma a antropóloga, que defende que a correção deste grave erro histórico passa, justamente, “pela transferência dos assentados para um lugar compatível com a sua vocação econômica e socioambiental e a demarcação da terra indígena tradicional para os Ãwa”.
4. “A ampliação desta terra indígena terá amplo, enorme e incalculável perda patrimonial uma vez que atingirá em cheio a propriedade da útil e prestigiada Fundação Bradesco em sua Escola de Canuanã, que possui avançada infraestrutura educacional que emprega e atende diretamente uma população superior a 1500 alunos do ensino médio e fundamental, seus professores e funcionários”
Em 7 de maio de 2016, os Avá-Canoeiro do Araguaia manifestaram formalmente ao Ministério da Justiça seu interesse em excluir a parte da fazenda que incidia sobre a terra indígena. Assim, a Portaria Declaratória da TI Taego Ãwa foi publicada sem incluir os cerca de 500 hectares pertencentes à Fundação Bradesco.
5. “Não se pode justificar todo esse transtorno a uma população tão grande[…] Ainda mais quando a sua pretensão se ampara em mero nomadismo de 3 indivíduos, por algumas semanas, naquela região no ano de 1973”.
Esta informação, conforme explica a antropóloga Patrícia de Mendonça Rodrigues, é falsa e de completa má fé. Em 1973, foi capturado um grupo de seis Ãwa na área conhecida como Mata Azul, no centro da TI Taego Ãwa. Para se ter uma ideia da violência do “contato” realizado pela Frente de Atração da Funai naquela ocasião, vale registrar que, na ação da captura, uma indígena de cerca de oito anos foi baleada e fugiu para o mato com outros quatro Avá-Canoeiro, onde acabou morrendo dois dias depois. Estes outros quatro indígenas foram capturados no ano seguinte e, do grupo total de 11 indígenas capturados, seis morreram antes de 1977.
Além disso, os registros da presença dos Avá-Canoeiro do Araguaia na região remontam, pelo menos, ao fim do século XIX. Relatórios oficiais da própria Funai registravam a presença perene dos Ãwa nesta região, onde foram perseguidos e massacrados por não-indígenas, em função da intensificação da colonização nas redondezas.
6. “O número de índios demandantes que passaram alguns dias na área em 1973, se reduz a um total de três (3) índios Avá-Canoeiros. Os demais, nasceram depois do contato e há mais de meio século já estão bem acomodados, adaptados e ambientados ao Parque do Araguaia […]nunca viveram na área e não são Avá, mas sim, índios miscigenados e misturados com outros indíos Tuxás da Bahia, Javaés e Karajás”
Ao contrário do que afirma Edward M. Luz, “todos os Avá-Canoeiro atuais, cerca de 25 pessoas, em sua maioria descendentes do grupo original capturado, cujos sobreviventes e descendentes foram impelidos a se casar com pessoas de outras etnias, se auto identificam como Avá-Canoeiro (Ãwa), falam ou entendem a língua Ãwa, de origem Tupi-Guarani, mantêm práticas tradicionais do povo Ãwa, como o xamanismo, e são reconhecidos pela comunidade circundante como Avá-Canoeiro”, explica a antropóloga Patrícia de Mendonça.
Considerando que os Avá-Canoeiro do Araguaia foram reduzidos a um grupo de apenas cinco indígenas após o contato forçado, trata-se de um caso emblemático de resistência frente à violência brutal do Estado brasileiro durante a Ditadura Civil-Militar.
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Para saber mais sobre a realidade do povo Avá-Canoeiro do Tocantins, acesse os materiais abaixo, publicados originalmente no Jornal Porantim nº 378, de setembro de 2015:
Barbárie e Resistência
“Mais vivos do que nunca”
Uma homenagem ao guerreiro Tutawa Ãwa
Filme Taego Ãwa abre a III Assembleia dos Povos Indígenas de Goiás e Tocantins em Palmas-TO
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Depois de capturados pela Frente de Atração da Funai, em 1973, os indígenas do povo Awá-Canoeiro do Araguaia foram aprisionados e expostos à população local, como mostra a foto acima. Foto: Klaus Gunther