Próximo passo no MS é indígenas pedirem perdão por serem assassinados, por Spensy Pimentel

Por Spensy Pimentel*, especial para o blog do Sakamoto

Os políticos profissionais costumam incluir sempre em seus discursos e propagandas o mote do “trabalho duro”. É um dos grandes chavões nessa arte de iludir e empurrar com a barriga que se tornou a vida política nacional.

Se, porventura, algum político quiser provar que isso é puro preconceito, o Mato Grosso do Sul oferece, neste momento, uma excelente oportunidade. Resolver o imbróglio que o próprio Estado brasileiro criou ali ao distribuir para colonos não indígenas as terras dos povos Guarani-Kaiowa e Terena ao longo do século 20 é um imenso desafio, digno dos mais habilidosos estadistas.

Com todo o respeito, esse toque serve também para os ativistas que têm se sensibilizado com a causa indígena por lá: não é resolvendo a situação de uma, duas, três ou mesmo dez comunidades que os problemas por lá estarão equacionados. São dezenas de grupos locais, literalmente, envolvidos no conflito fundiário.

Cada grupo tem suas lideranças, e elas se encontram em assembleias, onde trocam informações e chegam a consensos. Grupos de lideranças, por vezes, fazem o papel de porta-vozes desses coletivos, criando conselhos. Esses conselhos, porém, não tomam decisões que são impostas aos coletivos. Pelo contrário, eles tentam comunicar aos não indígenas algo sobre os consensos – e também sobre os dissensos – surgidos em assembleias.

Mas por que estou falando disso? É que negociar acordos em Mato Grosso do Sul supõe a criação de mesas de negociação que têm de ser amplas, beeeem amplas. Suficientemente amplas para que caibam centenas de pessoas, líderes de famílias extensas que se espalham pelas dezenas de aldeias das áreas Guarani-Kaiowa e Terena.

Do outro lado, também estão centenas, talvez mais de um milhar – os fazendeiros que, com apoio do Estado brasileiro, criaram “propriedades” sobre as terras indígenas na região. A parte simples da história é que, como diversos porta-vozes têm deixado claro nos últimos anos, da parte dos ruralistas, a discussão se resume a praticamente um único fator: dinheiro. Traduzindo em miúdos, a grande questão que está posta em MS diz respeito às indenizações a serem pagas pelo valor das terras a serem demarcadas.

Sejamos francos: há anos acontecem as maiores tragédias em Mato Grosso do Sul envolvendo os povos indígenas, e não se vê um pingo de solidariedade ou compaixão por parte da elite local. Todo o esforço dos ruralistas tem sido por criar teorias conspiratórias mirabolantes ou encontrar bodes expiatórios entre os indigenistas ou os próprios indígenas – com a variante recente, ao longo dos últimos anos, de jogar a responsabilidade no governo federal, já que ele estava sob controle (sic) do arquivilão PT.

Assassinada uma liderança? Culpa dos indigenistas, que incitaram a invasão de terras. Crianças indígenas morrem desnutridas? Culpa das mães, que não cuidam devidamente dos filhos. Suicídios dos jovens? Culpa deles mesmos, que se entopem de álcool. Parece insano? Acompanhe o noticiário local para comprovar. E o interessante de MS é que você nem precisa chegar aos comentários das notícias para alcançar as declarações mais bizarras.

Recentemente, a Assembleia Legislativa do estado gastou meses de trabalho e milhares de reais para levar a cabo duas Comissões Parlamentares de Inquérito com conclusões brilhantes: a primeira, conhecida como CPI do Cimi, “comprovou” (sic) que o Conselho Indigenista Missionário é o grande responsável pelas ocupações de terra no estado, “incitando” os índios.

Não, leitor, ocupações não acontecem por viverem espremidos em terras minúsculas que se tornaram verdadeiras favelas, repletas de violência, drogas e miséria bem ao lado de amplas fazendas, repletas de gado, cana e soja, frequentadas por brancos de imensas barrigas e com belas camionetes. Fazendas que, por sinal, seus pais e avós lhes contam que ficam nos exatos locais onde suas próprias famílias indígenas viviam antes. Mas não, não tem nada a ver com isso, tudo é culpa do Cimi, que, na cabeça dos ruralistas, age com objetivos semelhantes aos daquele ratinho dos desenhos, o Cérebro – quer dominar o mundo e roubar a água do Aquífero Guarani (sim, essa mesma água que o agronegócio entope de resíduos de agrotóxicos).

A segunda comissão era chamada de CPI do Genocídio e se destinava a apurar a responsabilidade do Estado de Mato Grosso do Sul nos crimes cometidos contra os indígenas. Mas os deputados ruralistas conseguiram proibir que fosse mencionado o termo genocídio dentro da comissão. Tudo bem, porque, no final, eles concluíram que o poder público não tem nenhuma responsabilidade no conflito. Pensando bem, o Estado de MS não tem nenhuma responsabilidade mesmo. É completamente irresponsável em sua omissão quanto à segurança nas reservas indígenas, em sua incompetência nas políticas de apoio à agricultura familiar nas terras indígenas, em suas diretrizes que impedem a plena aplicação de políticas sociais nos acampamentos indígenas.

Então, voltando ao que realmente interessa aos ruralistas, o dinheiro. Caso o único fator em jogo seja o valor “real” da terra no mercado, o jogo fica ainda mais complicado. Na mesa de negociação armada entre 2013 e 2014, o governo federal apresentou uma proposta de indenização de quase R$ 80 milhões pelas 30 fazendas incidentes sobre uma única terra indígena, a Buriti, de 17,2 mil hectares, onde foi morto, em 2013, o professor terena Oziel Gabriel. A oferta foi violentamente rechaçada por parte dos fazendeiros, inviabilizando-se a continuidade dos diálogos.

Quer dizer: ao mesmo tempo em que negociar indenizações é algo imprescindível, em alguma medida, é preciso ter mecanismos muito bem estabelecidos para evitar as chicanas ruralistas. E, de qualquer forma, é bom que tenhamos clareza: falar em indenizações num cenário como o de MS envolve valores na casa dos bilhões de reais. Como disse uma liderança Kaiowa certa vez: “O problema é que nossa tristeza não é barata”.

O que fazer, portanto, diante desses impasses, e num cenário nacional tão desfavorável?

Em primeiro lugar, o conflito fundiário envolvendo terras indígenas já era conhecido do PMDB desde os tempos do Sarney. O que as distintas administrações federais fizeram, ao longo dessas três décadas, foi basicamente, empurrar o problema com a barriga. Alexandre Moraes e Temer reverterão as recentes portarias de identificação lançadas pela Funai? Espere para ver a confusão que isso poderá causar. Não há murro na mesa que resolva o caso de MS.

Se, como dizem alguns, a Nova República está desmoronando, talvez tenha chegado o momento de nossos novos tutores nacionais, os procuradores do Ministério Público Federal, tomarem a frente para organizar as negociações, porque não há outra opção viável em vista. Até mesmo o ruralista Reinaldo Azambuja (PSDB), atual governador de MS, já acenou com um plano para viabilizar as indenizações – ele propõe trocar as parcelas mensais que o estado envia à União por sua dívida pelos pagamentos a serem feitos aos fazendeiros. Isso sem falar que há alternativas complementares, nunca postas em prática: utilizar fazendas confiscadas de traficantes em permutas, por exemplo.

Se não tivermos logo um aceno consistente para alguma possibilidade de diálogo, o que pode haver além da escalada de violência? Nos últimos cinco anos, o Judiciário tem sido mais atento com os processos envolvendo ordens de despejo – já não se mandam comunidades indígenas para a beira da estrada por conta de qualquer medida liminar de primeira instância, como costumava acontecer. Mas, até quando isso durará?

A triste situação dos povos indígenas de MS é um vexame internacional para o Brasil. Está certo que vergonha na cara tem sido um artigo raro no mercado interno, mas, em algum momento, nós precisaremos estancar essa fase terrível que vem desde aquele 7 x 1 em 2014.

Quem sabe começamos justamente por onde toda essa tragédia, no fundo, começou, buscando reparar alguns dos enormes erros cometidos contra os povos indígenas?

(*) Spensy Pimentel, doutor em antropologia, é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia, pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo e um dos maiores especialistas na questão indígena no país.

Familiares no velório de Clodiode de Souza, de 26 anos, do povo Guarani-Kaiowa, morto no dia 14 de junho em ataque de fazendeiros. Foto: Ana Mendes (Cimi)

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