Fica difícil imaginar de onde poderá vir a imprescindível “vontade política” para acabar com a guerra no Mato Grosso do Sul
Por Spensy Pimentel em El País
Há duas semanas, mais uma vez, os fazendeiros de Mato Grosso do Sul se reuniram, tomaram armas e resolveram fazer justiça com as próprias mãos. Dezenas de camionetes, segundo os relatos dos indígenas, se deslocaram para a Fazenda Yvu, em Caarapó (MS), a fim de expulsar um grupo guarani-kaiowá que, no último domingo (12), havia ocupado o local, reivindicando a conclusão do processo de demarcação da Terra Indígena Dourados-Amambai Peguá I, de 56 mil hectares. O resultado da ação foi desastroso: um indígena morto – o agente de saúde Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza – e seis outros baleados, inclusive um menino de 12 anos, além de diversos feridos e um rastro de destruição.
Hoje, muitos dos indígenas que pleiteiam essa área vivem na Reserva de Caarapó, de 3.500 hectares, criada pelo Serviço de Proteção ao Índio em 1924. Grande parte da população guarani-kaiowá foi levada para essas áreas reservadas várias décadas depois, sobretudo durante o período da ditadura militar. O resultado foi que, desde os anos 80, essas aldeias ficaram superlotadas, o nível de vida se deteriorou, e uma epidemia de suicídios, mortes violentas e miséria se instalou.
O relatório referente à nova TI foi publicado no Diário Oficial no último dia 13 de maio, pouco antes da posse do Governo interino. Somente considerando o prazo máximo dado pela Constituição de 1988 para que se concluíssem as demarcações de terras indígenas, já seriam aí quase 23 anos de atraso.
Até a quarta-feira (15), as informações davam conta de quatro fazendas ocupadas, e, no fim desse mesmo dia, o ministro anunciou que um contingente da FNSP (Força Nacional de Segurança Pública) seguiria até o local para ajudar a coibir confrontos. A previsão é a de que os policiais da FNSP permaneçam no local por pelo menos quinze dias. Será o suficiente para acalmar os ânimos? Quem sabe. Mas, certamente, é, mais uma vez, uma resposta pífia, diante da dimensão do desafio que oferece o conflito fundiário envolvendo a busca pela garantia dos direitos indígenas em Mato Grosso do Sul.
Ainda se aguardam os detalhes, mas a operação dos ruralistas parece ter seguido um padrão comum nos últimos anos. Por meio do ou com algum tipo de apoio do sindicato rural local, os fazendeiros se articulam, reúnem-se e partem rumo à área ocupada pelos indígenas. O roteiro é semelhante ao que se verificou no acampamento indígena de Kurusu Amba, em junho do ano passado, e Nhanderu Marangatu, no fim de agosto. Neste último local, a mobilização dos terratenentes também resultou em um morto, o indígena Simeão Vilhalva.
No caso do Kurusu Amba, até vídeos mostrando a articulação dos fazendeiros chegaram a ser divulgados na internet por jornalistas locais. Uma busca pela rede indica, facilmente, diversas gravações de reuniões inflamadas de sindicatos rurais em toda a região – há mesmo palestrantes que fazem tour por essas entidades, sugerindo estratégias e ações coordenadas.
As investigações do assassinato do líder kaiowá Nísio Gomes, morto em 2011, mostraram claramente como funcionam essas redes: o presidente do Sindicato Rural de Aral Moreira esteve entre os presos pelo crime. A articulação, no caso de ataques armados, inclui ainda advogados, empresas de segurança privada e até mesmo indígenas cooptados em troca de dinheiro. Pelo menos no caso de Nhanderu Marangatu, em 2015, também foi registrada a presença de políticos da região no sindicato rural, horas antes do ataque – incluindo dois deputados federais e um senador.
Vale lembrar, ainda, que, em dezembro de 2013, ocorreu em Campo Grande o chamado Leilão da Resistência, uma venda de animais cuja renda declaradamente seria encaminhada para o financiamento de ações de segurança privada, a fim de “defender” as fazendas que estivessem sob risco de ocupação por parte dos indígenas. O atual governador do Estado, Reinaldo Azambuja (PSDB), foi um dos políticos que “prestigiaram” o evento.
Na última sexta-feira, o Ministério Público Federal anunciou a denúncia de 12 pessoas pela formação de milícia privada e outros crimes relacionados a ataques armados contra comunidades indígenas guarani-kaiowá na região – incluindo-se incêndio, sequestro e disparo de armas de fogo. A denúncia é resultado da formação de uma força-tarefa entre os procuradores, que vem trabalhando há oito meses – aproximadamente, desde o episódio no Nhanderu Marangatu em que foi morto Simeão. Não houve, ainda, divulgação de quais seriam os episódios específicos aos quais se relacionariam essas prisões.
Pois bem: apesar de todo esse histórico, logo após a repercussão do ataque de Caarapó, o sindicato rural local divulgou nota afirmando que não teve nenhuma participação nos eventos de terça-feira e que, simplesmente, alguns fazendeiros, de forma “voluntária”, acompanharam o proprietário da Fazenda Yvu até lá, quando souberam que a área tinha sido ocupada pelos indígenas.
Contrariando as imagens gravadas pelos indígenas, que mostram inclusive o uso de um trator com pá carregadeira na ação, bem como o som de disparos de armas de fogo e silhuetas de homens apontando armas de cano longo, o sindicato afirmou que os fazendeiros simplesmente “utilizaram fogos e bombas para dispersar” os índios. Um integrante da família proprietária da fazenda chegou a dizer a este EL PAÍS que os indígenas foram baleados já dentro da reserva, depois de terem fugido da fazenda em função dos “rojões” que os fazendeiros soltavam. Não é a primeira vez que acusações desse tipo são feitas por fazendeiros. No conflito em Nhanderu Marangatu, os ruralistas repetiram várias vezes à imprensa que Simeão devia ter sido morto pelos próprios indígenas como estratégia para sensibilizar a opinião pública. No caso Nísio Gomes, alegavam que o líder kaiowa teria fugido para o Paraguai e que a acusação de assassinato seria injusta. Um indígena que havia sido subornado pelos fazendeiros revelou posteriormente à polícia: a versão tinha sido forjada pelos fazendeiros.
Não só em MS, mas em várias partes do país, não foram poucas as ameaças expressas por lideranças ruralistas nos últimos anos, em variados contextos, de que, se não houvesse ações federais para coibir ocupações de terra por indígenas e outros sem-terra, os fazendeiros tomariam providências para proteger-se, inclusive usando armas.
Menos de uma semana antes do ataque em Caarapó, algumas centenas de quilômetros ao sul, em Guaíra (PR), na divisa com MS, uma ONG ligada aos proprietários de terra locais, a Organização Nacional de Garantia ao Direito de Propriedade (Ongdip) divulgou na internet uma convocatória para que os fazendeiros da região se organizassem para atacar um grupo avá-guarani de uma área ocupada. O resultado foi que a comunidade teve as casas queimadas e os indígenas foram expulsos com ameaças de morte. Na noite anterior ao ataque de Caarapó, nas páginas de redes sociais ligadas ao movimento indígena, divulgava-se que outra comunidade guarani-kaiowá sul-mato- grossense, a de Pyelito, em Iguatemi, também estava cercada e sendo alvo de tiros, tática bastante comum para gerar um clima permanente de tensão e terror entre os indígenas.
Nos últimos anos, o Governo federal já não vinha sendo capaz de apresentar soluções efetivas para os problemas fundiários envolvendo os povos indígenas em MS. Vejamos quais as dificuldades. Em primeiro lugar, seria necessário concluir e apresentar logo os relatórios de identificação de terras indígenas no estado. Dos seis grupos destinados a identificar as terras guarani-kaiowá, criados em 2008, só quatro concluíram seus relatórios, ao menos parcialmente. Há vários anos, grupos de fazendeiros operam de forma articulada no sentido de impedir esses trabalhos – seja por meio de ações na Justiça, lobby em Brasília ou até mesmo com sabotagens e ameaças (a indígenas e a profissionais envolvidos nesses trabalhos).
Mesmo com todas essas resistências, parte das identificações foi concluída, e algumas das áreas reivindicadas pelos indígenas – tanto os guarani-kaiowá quanto os terena, os dois maiores povos indígenas de MS – já são conhecidas. Seria possível, então, ao menos começar a negociar com os fazendeiros o que é, teoricamente, o seu principal pleito: indenização pelo valor da terra, não só pelas benfeitorias, algo que não era anteriormente previsto na legislação. Entre 2013 e 2014, tentou-se organizar a mesa de negociação mais recente nesse sentido – o resultado foi um impasse, porque os terratenentes, como em outras vezes, não parecem dispostos a ceder um milímetro, vão aumentando suas exigências a cada rodada, até que o diálogo se inviabiliza.
O Governo não tem conseguido impor autoridade nas negociações: para isso seria necessário muito mais do que reconhecer ingenuamente que os fazendeiros em MS são todos, a priori, de “boa-fé”, como tanto gostam de alegar seus porta-vozes. Onde estão os títulos de propriedade? São mesmo válidos, como se alega? Os impostos estão todos em dia? Durante as negociações de 2013-14, várias lideranças indígenas manifestaram contrariedade, por exemplo, com o fato de o Governo, sem mais, resolver indenizar pessoas em cujas propriedades indígenas haviam sido mortos, durante processos de ocupação. Ora, se até hoje vários desses crimes seguem sem apuração, mesmo quando os indígenas apontam que os fazendeiros teriam sido mandantes dos assassinatos, como é que se vai, simplesmente, pagar a essa gente sem nenhum critério?
Desta forma, o Massacre de Caarapó – como vem sendo chamado o episódio da última terça-feira pelos movimentos sociais – não pode ser visto como um caso sui generis, e sim como um alerta para uma situação muito mais ampla. Há dezenas de outras comunidades indígenas em MS que podem vivenciar situações semelhantes à dessa semana, caso as negociações para chegar a acordos quanto às demarcações não sejam retomadas.
Propostas existem: desde utilizar propriedades confiscadas de traficantes como compensação aos fazendeiros até que o Governo federal abra mão de receber parte dos recursos destinados a pagar a dívida de MS para viabilizar as indenizações. O que falta é uma autoridade que tenha moral e firmeza suficiente para conduzir as negociações e vencer as resistências ruralistas.
No fundo, no fundo, o mais triste é o que mostram os comentários na internet às reportagens sobre os eventos desta semana em Mato Grosso do Sul: uma parcela significativa da população regional prefere solidarizar-se com os ruralistas, não com os guarani-kaiowá. Como os paulistas que se indignam com a passeata que lhes trava o trânsito, muitos sul-mato-grossenses estão mais preocupados com os possíveis danos às propriedades ocupadas pelos indígenas do que com as décadas de miséria desesperadora que eles amargaram esperando para ocupar essas áreas, deles tomadas pelos fazendeiros, com o apoio do Governo federal à época.
Diante de um quadro como esse, e considerando as ideias até agora expostas pelos integrantes do governo interino a respeito da temática indígena, fica difícil imaginar de onde poderá vir a imprescindível “vontade política” para acabar, de uma vez por todas, com a guerra em Mato Grosso do Sul. Há mesmo quem diga que os atos do governo Dilma que declararam terras indígenas como essa de Caarapó correm o risco de ser anulados. Alguém tem alguma dúvida sobre o tamanho da confusão que algo assim poderá gerar?
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Spensy Pimentel é antropólogo sul-mato-grossense e professor da UFSB (Universidade Federal do Sul da Bahia).