Periferia de São Paulo. “Polícia, crime, igreja e trabalho são esferas de vida que se interpenetram’. Entrevista especial com Gabriel Feltran

“Em São Paulo, a expansão do Primeiro Comando da Capital – PCC foi a principal responsável pela redução importante dos homicídios durante os anos 2000”, constata o sociólogo.  “Ambos os regimes – estatal e criminal – tinham pressões para baixar os homicídios – afirma. O crime foi bem mais efetivo”

Por Patricia Fachin – IHU On-Line

Apesar de a violência e o conflito marcarem a vida na periferia, uma série de contradições também fazem parte dessa realidade, diz o coordenador do grupo NaMargem – Núcleo de Pesquisas Urbanas, que estuda a gestão dos conflitos em periferias de São Paulo, Gabriel Feltran.

Segundo ele, na última década “a vida nas periferias melhorou”, especialmente em relação ao acesso à escolaridade superior e aos serviços básicos de infraestrutura urbana, saúde e moradia, que “são muito melhores do que há 30, 40 anos”. Junto com as melhorias sociais, frisa, o “consumo explodiu pelas políticas de crédito que impulsionaram o desenvolvimento da economia” e “celulares e televisores de última geração compõem, com carros, motos e novos conjuntos habitacionais, as paisagens das periferias”.

Apesar dessas mudanças, comenta, “essa mesma pujança econômica, globalizada, fortaleceu o crime – o crime também é mercado e se desenvolve com a ampliação dos mercados – e a criminalização das periferias. A violência pela disputa desses mercados e, sobretudo, a violência policial contra jovens nele inscritos (ou aqueles que se parecem com eles) cresceu demais. Nesse sentido, a vida piorou muito”.

De acordo com o sociólogo, “essa contradição aparente encontra, entretanto, no conservadorismo e no culto ao dinheiro, alguns pontos de convergência, de síntese, importantes. A expansão neopentecostal – mas também de força política do crime e das polícias – é talvez um dos reflexos mais imediatos disso”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Feltran também comenta e explica as causas do aumento da violência no país, especialmente nas periferias. Para ele, essa situação está diretamente relacionada aos orçamentos policiais voltados à segurança pública e privada. “Isso demonstra a falência desse sistema repressivo, que mata muita gente – o Brasil teve mais de 60 mil homicídios em 2015! – e gasta rios de dinheiro produzindo cadeias e ampliando polícias, para piorar o problema. Porque assim se coletiviza e organiza o crime, produzindo mais e mais truculência, mais polarização social. Hoje uma parte significativa do conflito violento nas cidades é efeito colateral dessa polarização”.

A saída, pontua, “seria regular mercados ilegais (que empregam os ‘criminosos’, na verdade pobres criminalizados por trabalharem em mercados ilegais) e fazer proteção social. Mas seguimos tratando a questão da violência como se fosse um problema moral, causado pelos pobres. Nada mais equivocado”.

Gabriel Feltran é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, coordenador de Pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole – CEM e pesquisador do Núcleo de Etnografias Urbanas do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap. É doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consiste sua pesquisa nas periferias de São Paulo?

Gabriel Feltran – É uma pesquisa de campo, primeiro individual, nas periferias de São Paulo, depois coletiva, com o grupo NaMargem, nosso núcleo de pesquisadores vinculados à Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, à Universidade de Campinas – Unicamp, ao Centro de Estudos da Metrópole – CEM e ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap. Coletivamente atuamos em diferentes capitais, cidades médias e pequenas. Estudamos o conflito urbano – conflito ao mesmo tempo social, geracional, político, econômico e violento – que emerge da forma como as periferias foram historicamente pensadas e tratadas. E da forma como reagem a esse tratamento.

IHU On-Line – O que a pesquisa tem evidenciado, de um lado, sobre o modo de vida e a violência nas metrópoles e, de outro, sobre a política ou o modo como as pessoas se relacionam com a política?

Gabriel Feltran – O conflito urbano tem origem na desigualdade abissal da nossa sociedade, subordinada a uma pressão extrema por sucesso individual. Não é uma novidade que enquanto uns criam os filhos com meio salário mínimo mensal, obtido por renda informal, outros andam de helicóptero e gastam dois salários mínimos em um jantar.

Esse conflito exige mediação, ou estoura em violência, inclusive letal. Políticas sociais e econômicas feitas por governos, mas também a emergência de “outros governos” nas periferias, como o “crime” e as igrejas, são tentativas de mediar esse conflito. Não se compreende isso muito bem olhando de fora das periferias. Mas dali de dentro se compreende melhor essa situação.

IHU On-Line – Quais são e como descreve os circuitos sociais dos grupos urbanos analisados na sua pesquisa, como jovens de periferia, moradores de rua, usuários de drogas, traficantes, criminosos e prostitutas?

Gabriel Feltran – Esses grupos são muito heterogêneos internamente. Há mulheres que fazem programa por uma lasca de pedra de crack, outras que cobram dois mil reais. Há jovens inscritos no tráfico que pensam apenas no dia de hoje, gastam mil reais em uma noite, outros que trabalham durante o dia e estudam à noite, pagando prestações de carro, casa e eletrodomésticos. Essa heterogeneidade que se nota de perto, de longe vira estereótipo, preconceito, incompreensão e conflito.

Os circuitos urbanos desses sujeitos respondem a essa heterogeneidade. Há vidas tecidas inteiramente entre abrigos, prisões, unidades de internação e clínicas de recuperação. Vidas criminalizadas: 70% dos participantes de um programa social na Cracolândia paulistana estiveram recentemente na cadeia.

São Paulo tem um milhão de ex-presidiários e as taxas seguem crescendo. Mas há parentes e amigos desses sujeitos estudando em universidades públicas, como a que eu trabalho. Os circuitos de vida são amplos e diversificados, os mundos têm tamanhos diferentes a depender deles.

IHU On-Line – Esses jovens da periferia participaram de junho de 2013?

Gabriel Feltran – Seguramente o movimento estudantil esteve muito presente nas manifestações. Mas não eram eventos das periferias, claramente. E seus desdobramentos, a disputa interna aos movimentos, fortaleceu muito mais as pautas dos grupos muito conservadores, como os de policiais e de elites direitistas, do que as de integração das periferias.

O fascismo solto hoje no país, espalhado pelas redes, é também fruto da vitória desses grupos em 2013, para além do esgotamento da narrativa petista, do ciclo de institucionalização do petismo.

IHU On-Line – Que percepção esses que moram nas periferias de São Paulo têm tido sobre o Brasil na última década, sobre a situação social e política do país, sobre o desenvolvimento de suas próprias vidas?

Gabriel Feltran – Percepções heterogêneas. De um lado, a vida nas periferias melhorou: escolaridade, inclusive superior, acesso a serviços básicos de infraestrutura urbana, saúde e moradia são muito melhores do que há 30, 40 anos. E na última década o consumo explodiu pelas políticas de crédito que impulsionaram o desenvolvimento da economia nos anos 2000. Celulares e televisores de última geração compõem, com carros, motos e novos conjuntos habitacionais, as paisagens das periferias.

De outro lado, essa mesma pujança econômica, globalizada, fortaleceu o crime – o crime também é mercado e se desenvolve com a ampliação dos mercados – e a criminalização das periferias. A violência pela disputa desses mercados e, sobretudo, a violência policial contra jovens nele inscritos (ou aqueles que se parecem com eles) cresceu demais. Nesse sentido, a vida piorou muito.

Essa contradição aparente encontra, entretanto, no conservadorismo e no culto ao dinheiro, alguns pontos de convergência, de síntese, importantes. A expansão neopentecostal – mas também de força política do crime e das polícias – é talvez um dos reflexos mais imediatos disso.

IHU On-Line – Que relações esses jovens estabelecem entre si e com outras instâncias sociais e políticas mais amplas, como a família, o mercado de trabalho, as igrejas, as políticas sociais, o mundo do crime e o Estado? É possível chegar a uma análise homogênea?

Gabriel Feltran – Não, esse universo, como dizíamos, é extremamente heterogêneo. O rapaz negro que trabalha no shopping como segurança e faz faculdade à noite ou o filho de operário que ingressou por ação afirmativa na universidade pública não têm visões de mundo iguais à do irmão do PCC ou do pastor da Igreja Universal, ou ainda de um soldado da Polícia Militar. E eles podem estar na mesma família, porque os projetos de vida são mais individualizados e o mercado de trabalho mais segmentado. Polícia, crime, igreja e trabalho são esferas de vida que se interpenetram.

IHU On-Line – Que comparações estabelece entre esses grupos sociais e grupos de outros territórios urbanos?

Gabriel Feltran – A ordem estatal é mais hegemônica, mais legítima, entre as classes médias e elites, porque o Estado, a lei, a Justiça, são feitos para elas. Entre os mais pobres, muito mais desfavorecidos e mesmo criminalizados por essa ordem, há mais registros normativos, sejam morais, sejam políticos.

IHU On-Line – Quais são os principais conflitos que evidencia nas cidades metropolitanas hoje? Qual são as razões que os motivam?

Gabriel Feltran – A violência policial e criminal só aumenta de intensidade no Brasil, como os orçamentos policiais e voltados à “segurança pública” e privada. E com o aumento da militarizaçãoUnidades de Polícia Pacificadora,UPPs – e encarceramento. Isso demonstra a falência desse sistema repressivo, que mata muita gente – o Brasil teve mais de 60 mil homicídios em 2015! – e gasta rios de dinheiro produzindo cadeias e ampliando polícias, para piorar o problema. Porque assim se coletiviza e organiza o crime, produzindo mais e mais truculência, mais polarização social.

Hoje uma parte significativa do conflito violento nas cidades é efeito colateral dessa polarização. A saída seria regular mercados ilegais (que empregam os “criminosos”, na verdade pobres criminalizados por trabalharem em mercados ilegais) e fazer proteção social. Mas seguimos tratando a questão da violência como se fosse um problema moral, causado pelos pobres. Nada mais equivocado.

IHU On-Line – Que relações tem estabelecido entre as políticas estatais de segurança e as políticas do crime de segurança? Como chega à conclusão de que governo e crime não produzem políticas necessariamente opostas?

Gabriel Feltran – Eu digo isso para São Paulo, em especial, porque ali a expansão do Primeiro Comando da Capital – PCC foi a principal responsável pela redução importante dos homicídios durante os anos 2000. Expandiu-se o crime – e todas as taxas de criminalidade violenta – ao mesmo tempo que a justiça do crime regulava estritamente a morte nas favelas e periferias. A queda das taxas de homicídio foi capitalizada pelo governo do estado, como se fosse sucesso da “segurança pública”. Ambos os regimes – estatal e criminal – tinham pressões para baixar os homicídios. O crime foi bem mais efetivo, nesse caso, embora a desproporção de recursos e força em favor do Estado seja evidente.

IHU On-Line – Que aspectos da metrópole precisam ser mais considerados, estudados e analisados quando se estuda essa temática da violência?

Gabriel Feltran – É preciso, sobretudo, desnaturalizar a ideia de que os pobres são ignorantes, atrasados, alienados, exóticos ou violentos. É preciso reconhecer as suas formas de vida, inclusive de organização social e política. Em nossa pesquisa, tomamos essas formas de viver como prisma para olhar a cidade. E acreditamos que assim entendemos mais profundamente nosso cenário, em busca de soluções.

Foto: Agência USP / Portal GGN

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