Nota divulgada esta tarde (6/7/16): “O Ministério da Justiça e Cidadania informa que não houve nenhum convite para o general de reserva do Exército, Sebastião Roberto Peternelli Junior, para assumir a presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai)”. E como ficam as entrevistas dadas por ele etc e tal? (TP)
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A indicação de Peternelli para a Funai é o coroamento de uma estratégia de perseguição neobandeirante
Daniel Pierri – El País
Michel Temer não gosta de ver o impeachment associado à palavra golpe, e muito menos ao golpe militar. Porém, constrói nos bastidores a nomeação de um General reformado, Sebastião Peternelli, para a presidência da Funai. Peternelli é indicação de André Moura, PSC, líder do Governo na Câmara e de Romero Jucá, flagrado por grampos como articulador de operação para barrar a Lava Jato.
Peternelli foi derrotado como candidato a deputado federal nas últimas eleições. Em seu twitter, apareceu um post defendendo a intervenção militar para derrubada de Dilma. Em seguida, ele alegou que alguém havia invadido sua conta e postado indevidamente, e que ele era a favor da “legalidade”. Em seu Facebook, porém, exalta a ditadura militar, e a perseguição à “comunistas”.
O general exerceu a função de secretário-executivo do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), nomeado por José Sarney em 2012, quando esse ocupava a função de Presidente da República em exercício, durante uma viagem de Dilma Rousseff e Michel Temer, ainda no primeiro mandato. O pesquisador Jorge Zaverucha, em seu artigo publicado no livro O que Resta da Ditadura, esclarece que o Brasil era até recentemente o único país latino-americano que havia conservado a subordinação de seu órgão de inteligência aos militares; no caso a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN, criada no Governo FHC –, ao próprio GSI, órgão controlado por ministros militares. Em seu segundo mandato, Dilma havia finalmente retirado o status de ministério do GSI, passando a ABIN para a Secretaria de Governo. Temer imediatamente revogou o ato, devolvendo o controle da ABIN aos militares.
O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), no capítulo que trata da temática indígena, revelou que os órgãos de inteligência do Governo Militar perseguiam o movimento indígena então nascente, e também grampeavam e monitoravam seus aliados, seja da sociedade civil, seja dentro da própria Funai. Após o AI-5, foi criada na Funai uma Assessoria de Segurança da Informação (ASI), ligada diretamente à Divisão de Segurança da Informação (DSI) do Ministério do Interior, a ABIN da época. O acervo do ASI-Funai é farto em transcrições de grampos de servidores da Funai, de lideranças indígenas, de organizações indigenistas, e até de bispos da CNBB. Está tudo documentado, quem defendia demarcação de terras, índio ou não índio, estava monitorado a cada passo.
Hoje, a mesma bancada ruralista, que participa do lobby pró-Peternelli, controla uma CPI da Funai e do Incra na Câmara, instalada para perseguir novamente os índios e seus apoiadores, e abrir espaço para uma série de retrocessos na política indigenista, como a famigerada PEC 215, em relação à qual o general já se mostrou favorável. A nomeação de um quadro do GSI para presidência da Funai seria o coroamento dessa estratégia de perseguição neobandeirante, liderada pela bancada BBB – do Boi, Bala e Bíblia.
O relatório da CNV também revelou que Romero Jucá, padrinho inconfesso de Peternelli, foi responsável direto pela morte de centenas de Yanomami, ao capitanear a invasão de garimpeiros nesta terra indígena enquanto era presidente da Funai, e ao mesmo tempo expulsar as equipes de saúde da área, fazendo invadir as epidemias junto com o garimpo. Conforme documento divulgado pela CNV, Jarbas Passarinho (1920-2016), então ministro da Justiça, confessou em 1993 a sua responsabilidade, a do Estado, e de Romero Jucá no genocídio Yanomami. À época, Sarney era Presidente da República e o general Peternelli era membro da sua segurança pessoal. Jucá até hoje continua exercendo sua influência na política local em Roraima, por meio de indicações e conchavos, que ele tenta fazer estenderem-se novamente à Presidência da Funai, que já ocupou.
Davi Kopenawa, líder Yanomami, testemunha do genocídio promovido com apoio de Jucá, recentemente publicou uma monumental obra auto-biográfica, A Queda do Céu, que relata os sucessivos massacres que os Yanomami sofreram durante a ditadura militar, e durante a gestão Jucá-Sarney. Os Yanomami chamam de xawara as epidemias associadas às mercadorias e à ganância dos brancos e seus chefes, cujo pensamento Kopenawa reproduz em seu livro: “Somos poderosos. Somos donos de toda a floresta. Que morram seus habitantes. Estão morando nela à toa, num solo que nos pertence”.
Foram pelo menos 8.350 indígenas mortos entre 1946 e 1988, segundo a CNV, provavelmente muito mais. As palavras que Kopenawa atribui aos chefes brancos são repetidas quase que literalmente da boca de parlamentares como Luiz Carlos Heinze, que diz que os índios são tudo que não presta, de Alceu Moreira e Jair Bolsonaro, que convocam os fazendeiros a se armarem contra os índios. São eles que incitam o ódio que culminou no assassinato recente do kaiowa-guarani Cloudione Rodrigues Souza, são eles que querem colocar Peternelli na Funai para voltar ao tempo dos militares.
Quando se diz que é golpe, não são todos que se dão conta de que para as populações mais vulneráveis o que se passa hoje com o ilegítimo Governo Temer é sim comparável ao que se passou durante a ditadura. Diante de tantos ataques, o que os povos indígenas precisavam era o fortalecimento institucional da Funai, voltado para a efetivação dos direitos sedimentados na Constituição Federal, especialmente a demarcação e proteção de suas terras. A indicação de Peternelli, entretanto, é parte de um projeto de restrição brutal dos direitos indígenas, intensificado no Governo golpista, que trabalha para um desmonte da Funai, com cortes substanciais de estrutura e orçamento pelo Ministério da Justiça, e sinalizações de recuo em demarcações de terra já publicadas.
Como sempre fizerem, porém, os povos indígenas vão resistir, pois retroceder nos direitos conquistados em 1988 significa o aprisionamento no tempo do genocídio que nunca parou, no tempo da xawara, a epidemia mortal das mercadorias e da ganância dos brancos.
*Antropólogo e foi colaborador do Grupo de Trabalho sobre povos indígenas da Comissão Nacional da Verdade.