Após uma trajetória conturbada de preparação ao longo dos últimos sete anos, os Jogos Rio 2016 devem ficar marcados por transformações positivas e negativas em função de obras e mudanças trazidas pelo evento.
A BBC Brasil percorreu diferentes pontos do Rio e conversou com cinco cariocas para identificar alguns dos contrastes que ilustram a relação entre o megaevento e a população. Apesar das diferenças, eles têm em comum a percepção de que os Jogos serão uma festa para a qual não se sentem convidados.
1. Praça Mauá X Jovens da região portuária: “Foi tudo feito para os gringos”
Matheus Anderson Alves de Araújo tem 16 anos, está no segundo ano do Ensino Médio e sempre morou na região portuária do Rio, no Morro da Conceição. Recentemente mudou-se com a família para o Morro da Providência, no centro da cidade. Ele diz que já mergulhou diversas vezes na baía de Guanabara, no ponto onde hoje está o Museu do Amanhã – um dos símbolos do projeto de revitalização da região, conhecido como Porto Maravilha e tido pelo prefeito Eduardo Paes (PMDB) como o grande cartão postal do Rio olímpico.
“Nunca tive problema nenhum em mergulhar aqui, mas agora faz um tempão que não pulo na água. A Guarda Municipal tem proibido. Eles não deixam porque dizem que a gente vai se afogar”, diz. Matheus já entrou no Museu do Amanhã, cuja entrada é gratuita às terças-feiras, mas não aprovou a novidade. “Entrei só uma vez, mas não gostei muito não.”
Para ele e os amigos, a nova Praça Mauá, que recebeu o Museu do Amanhã, Museu de Arte do Rio (MAR) e por onde passa o VLT (bonde moderno) tornou-se “point de paquera”. “A gente tem vindo aqui de noite. Vem gente de muitos bairros do Rio. É um lugar para se encontrar, paquerar. Virou point mesmo”, diz.
Ele conta que esta foi a principal alteração na região que foi percebida como positiva pelos jovens. “A gente vai até a Pedra do Sal, onde tem samba, baile charme. Depois passamos aqui pela praça Mauá. Já virou lugar de encontro, cheio de gatinhas”, diz.
Matheus não vê benefícios diretos para ele por conta da Olimpíada. “Para mim não vai ser bom. Não vou poder assistir a nada. Não tenho como pagar o ingresso. Vou ver tudo de casa”.
Questionado sobre as mudanças para a cidade e os cariocas, o jovem diz não identificar vantagens. “Conheço vizinhos e amigos que vão trabalhar na segurança e na limpeza da Olimpíada. Para eles, foi um emprego, mas é temporário, logo acaba. Não vi mudanças diretas na minha vida não. Foi tudo feito para os gringos”, conta.
2. Maracanã X UERJ: “Cedemos nossa casa para a festa mas não fomos convidados”
Lia Rocha tem 39 anos e para ela, que é professora de Ciências Sociais e presidente da Associação de Docentes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a população do Rio está se dando conta de que “o custo de sediar os Jogos foi muito alto”. Para ela, a sensação é de que o carioca está de fora das comemorações. “Cedemos nossa casa para a festa mas não fomos convidados”, diz.
Desde março deste ano em greve, a UERJ é um dos maiores símbolos da crise econômica que assola o Estado do RJ. Atualmente os professores podem voltar a qualquer momento, mas, segundo a representante dos docentes, não há condições de voltar às aulas por falta de verbas e por conta das interrupções de acesso geradas pela proximidade com o Maracanã, a menos de um quilômetro do campus.
Dada a proximidade, um setor do estacionamento da universidade foi cedido pelo Estado ao Comitê Olímpico Internacional (COI), o que Lia não viu com bons olhos. “É como se eles esfregassem na nossa cara, é muito simbólico. A universidade está toda suja, sem dinheiro para pagar limpeza, mas as vagas onde os carros do COI vão ficar foram limpas, foi tudo varrido, e a UERJ não ganha nada com isso”, diz.
“Eles chegam como se fossem donos de tudo. Usam o terraço para transmissões de TV, entram nos laboratórios, colocam guimbas de cigarro em plantas e experimentos. Eles têm chancela do governo para fazer o que quiserem aqui.”
A BBC Brasil procurou o Comitê Rio 2016 para esclarecimentos sobre o estacionamento, mas até o fechamento desta reportagem não houve resposta. O Governo do Estado do RJ informou que “mesmo em meio à gravíssima situação financeira vem mantendo os repasses à UERJ” e que entre os dias 17 e 26 de julho foram repassados R$ 12 milhões para pagamento de serviços e manutenção com fornecedores e que no total, entre janeiro e julho deste ano, já foram repassados R$ 125 milhões relativos ao custeio da universidade.
3. Vila dos Atletas X Favela Vila União de Curicica: “Passaram por cima de nós como tratores, ficou uma terra arrasada”
Daniel Ferreira Campos tem 61 anos e é natural de Camaçari, na Bahia. Quando chegou ao Rio, em 1969, foi morador de rua e chegou a fugir dos militares para não ser enquadrado na “lei de vadiagem”, vigente durante a Ditadura Militar. Para ele, é um absurdo que a favela Vila União de Curicica, por onde passou o BRT Transolímpica, que removeu mais de 870 das 1.500 famílias que moram no local, tenha sido deixada sem saneamento básico e com muitos problemas deixados pela obra.
Ligando o bairro de Deodoro à Barra, o corredor expresso de ônibus foi uma das obras responsáveis pelo maior número de remoções nos preparativos para os Jogos. Para Daniel, a diferença com comunidades como a Vila Autódromo, vizinha ao Parque Olímpico, é que Curicica foi esquecida. “Fomos abandonados pelo Estado e pela mídia. Ninguém quis contar a nossa história para o mundo. Luto sozinho”, diz.
“Essas Olimpíadas são só para inglês ver. Quem lucra são os ricos. Olha aqui esse esgoto a céu aberto, as fezes chegam totalmente in natura. Você pode ver como as ruas ficaram esburacadas pela passagem dos caminhões das obras. Não tem escoamento de água, quando chove, alaga tudo. Largaram tudo assim”, diz. Ele conta que a comunidade tinha construído pontes de concreto que atravessavam o valão de esgoto, por conta própria, e que estas foram derrubadas pelas obras mas não foram reconstruídas.
Daniel mostra ainda placas do viaduto por onde passam os ônibus cedendo por conta de problemas na fundação. “Isso aqui é um perigo. As crianças brincam o dia todo aqui embaixo, e o negócio está cedendo. A gente está aqui ao lado da Vila dos Atletas, que vai virar condomínio para os ricos, e veja como ficamos”, diz.
Para ele, os grandes muros do viaduto que passa pelo meio da comunidade e agora a divide em duas partes é símbolo dos contrastes trazidos pelos Jogos. “Lá no Porto Maravilha derrubaram o elevado da Perimetral porque ficava feio para a nova praça Mauá. Aqui, derrubaram as casas de quase 900 famílias e construíram esse viaduto, esse muro da vergonha. Se lá ficava feio, por que aqui ficaria bonito?”, questiona. “Passaram como trator por cima de nós. Isso aqui ficou uma terra arrasada”, conta.
A Prefeitura do Rio de Janeiro foi procurada para esclarecimentos mas até o fechamento desta reportagem não respondeu às solicitações.
4. Parque Olímpico X Vila Autódromo
Sandra Maria de Souza tem 48 anos e Maria da Penha Macena tem 51 anos. As duas moram há décadas na comunidade Vila Autódromo, vizinha ao antigo autódromo de Jacarepaguá, onde hoje está o Parque Olímpico, e após décadas de luta e diversas tentativas de remoção, ressaltam o fato de terem ficado em duas das 20 casas recentemente construídas no lugar onde já viveram mais de 600 famílias.
A comemoração, no entanto, é agridoce. Enquanto faziam a mudança, as moradoras revelaram que não há muito o que celebrar. “Sim, foi uma vitória. Lutamos até o final, e conseguimos ficar. Mas nossa luta não era por isso. Não era por essas 20 casinhas. Era pelas nossas casas que construímos com nosso suor, pela nossa identidade, nossa história”, diz Sandra, que conversou com a reportagem diante da sua antiga casa, ainda de pé. Seis casas permanecem de pé enquanto os moradores fazem a mudança para as casas novas. Depois serão derrubadas.
Para Penha, que ficou conhecida como uma das ativistas mais determinadas da Vila Autódromo e chegou a receber uma medalha de reconhecimento da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), o cenário no entorno do que um dia já foi a comunidade vizinha ao antigo autódromo de Jacarepaguá é simbólico dos impactos dos Jogos para os cariocas. “Olha ao redor. De um lado o viaduto novo, o BRT. Do outro, o Parque Olímpico. Minha casa, onde eu morei por mais de 20 anos, virou um estacionamento dos ônibus deles. Era toda a minha história, mas para eles não é nada”, conta.
Ela diz que acha interessante o país receber o evento esportivo, mas que teria sido mais útil se o legado tivesse incluído trazer jovens de favelas para interagir com os atletas e se o esporte tivesse sido mais inserido nas comunidades pobres. “Sinceramente, eu não vejo legado nenhum. O próprio BRT é superlotado, porque eles tiraram as linhas de ônibus alimentadoras, dos bairros. O legado verdadeiro é para os ricos, para quem construiu tudo isso e vai lucrar em cima”, diz.
A Prefeitura do Rio de Janeiro foi procurada para esclarecimentos mas até o fechamento desta reportagem não respondeu às solicitações.
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Imagem: Entrevistados têm em comum a percepção de que ficaram de fora da festa olímpica – DANIEL RAMALHO/BBC BRASIL