Para que serve hoje, no Brasil, a previsão de direitos sociais em lei?

Jacques Távora Alfonsin* – Estado de Direito

As perspectivas futuras dos direitos humanos fundamentais sociais, previstos na Constituição brasileira, à luz dos novos rumos políticos do governo chamado de interino, podem ser avaliadas como manifestamente infringentes do consagrado princípio jurídico de proibição do retrocesso social.

A histórica defesa dos direitos sociais à terra, trabalho e teto (os famosos três t’s), repetida pelo Papa Francisco em sua visita à Bolívia, estão servindo de alvo para a arrancada governista em direção contrária, por tudo o quanto se tem visto até aqui. Há uma justificada e crescente preocupação das/os trabalhadoras/es com inciativas que estão sendo tomadas com o intuito claro de desmontar espaços institucionais importantes, conquistados no passado para defesa desses direitos.

A extinção do MDA, por exemplo, somada à intenção tornada pública pelo próprio novo chefe do Executivo, de revogar as restrições à aquisição de terras por estrangeiras/os, previstas na Constituição Federal, serve de aviso tanto às/aos agricultoras/es sem-terra sobre o interesse do governo em impedir a reforma agrária, quanto sua disposição entreguista do nosso território.

O acesso aos sites da maioria dos sindicatos e ONGs dedicadas aos direitos sociais também estão mostrando como os projetos gestados por iniciativa do governo pretendem reduzir obrigações patronais previstas na CLT, e alcançar logo a possibilidade de promover a terceirização do trabalho. A reforma da previdência, igualmente,  e as muitas dúvidas pendentes sobre a continuidade ou não de políticas sociais, inclusive as urbanas inclusivas, seguem alarmando quem acredita na função social da propriedade e das cidades.

Já não cabe mais dúvida de o país estar sendo submetido a um retrocesso social politico-jurídico, em flagrante prejuízo do povo pobre e trabalhador. Se tais juízos se devessem apenas a conveniências ideológicas da oposição, poder-se-ia julgar como carentes de legitimação, desmentidas por fatos.

Comparados com lições de quem vive o dia a dia dos conflitos administrativos e judiciais causados por ameaças e violações dos direitos sociais, a conclusão é bem diferente.

Em 2012, os conhecidos Cadernos IHU Idéias do Instituto Humanitas da Unisinos, nº 180, publicou um estudo do jurista Afonso Maria das Chagas sobre “Limites e desafios para os direitos humanos no Brasil.” Vencidos mais de três anos, o seu diagnóstico sobre a eficácia desses direitos nem parece ser de ontem.

Ele criticava os desdobramentos sociais daquela discutida alavanca inspiradora da globalização econômica, na esteira do que se convencionou chamar de Consenso de Washington:

“Uma nova ideologia de mercado re-concebeu as relações de produção, de consumo e de pensamento. À metáfora de “um mundo sem fronteiras”. vincula-se outra, a de um mundo em rede (Casstells, 2010), interligado. Ao lado de benefícios iniludíveis (avanços tecnológicos, descobertas no campo da saúde, da comunicação), vimos coincidir dramas e ameaças tornadas imprescritíveis (milhões de famintos pelo mundo, milhões de refugiados ambientais e das guerras disseminadas, ameaças naturais, degradação do planeta, etc.) Abundância e desperdício, superconcentração de riquezas e miséria e condições subumanas. O referencial social de inclusão humana foi ditado e editado por outro imperativo: “eu consumo”, e pode-se dizer ainda {..} “eu ostento”. Nesse contexto, é claro que se faz imperativo a produção e constante ressignificação de sentido através de um discurso ideológico forte, com capacidade de fabricar consensos. Nunca a ideia fixa da uniformidade, do pensamento único, foi tão exigida”.

Cultivando a contradição

Um retrato fiel da principal contradição ideológica do neoliberalismo, agora cultivado no Brasil pelos seus novos condutores políticos. Sua defesa da liberdade de pensamento e iniciativa desmentida pela exigência do seu discurso totalitário:  “crê ou morre”.

Um estudo de Rosângela Tremel, disponível na internet (co-autora do livro “Lei de Responsabilidade fiscal”), comentando o princípio de proibição do retrocesso, lembra duas lições muito atuais, também,  para se julgar os deméritos de qualquer política, seja pública ou privada, de apoio explícito ou implícito ao retrocesso social. Lembrando um alerta de Ingo Wolfgang Sarlet :

“Negar   reconhecimento   ao   princípio   da   proibição   do   retrocesso   significaria,  em  última  análise,  admitir  que  os  órgãos legislativos  (assim  como  o  poder  público  de  modo  geral),  a  despeito  de  estarem inquestionavelmente   vinculados   aos   direitos  fundamentais   e   às   normas   constitucionais   em   geral,   dispõem   do   poder   de   tornar   livremente suas decisões mesmo em flagrante desrespeito à vontade expressa do Constituinte”.

Lembrando Luiz  Roberto  Barroso: “Por  este  princípio,  que  não  é  expresso,  mas decorre  do  sistema  jurídico -constitucional,  entende-se  que  se  uma  lei,  ao  regulamentar  um  mandamento  constitucional,  instituir  determinado  direito,  ele  se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser absolutamente suprimido”,  demonstrando,  assim,  a  sua  aplicabilidade  no  sistema  jurídico  constitucional brasileiro.”

Patrimônio jurídico da cidadania. Como isso deve soar estranho aos ouvidos do novo governo do país, se o encaminhamento das suas novas premissas políticas for avaliado por quem é titular de direitos humanos fundamentais sociais. Toda/o brasileira/o nessa condição trate de seguir o conselho dado pelo Papa, na referida visita à Bolívia: “Vocês, os mais humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podem e fazem muito. Ouso dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, em suas mãos, em sua capacidade de organizar-se e promover alternativas criativas, na busca cotidiana dos três T (trabalho, teto, terra). Não se intimidem!”

*Advogado Popular, membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares-RENAP e fundador da Acesso- Cidadania e Direitos Humanos.

Foto: Fábio Pozzebom/Agência Brasil

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Rodrigo de Medeiros Silva.

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