‘Parecia que parte de mim estava morrendo’: o quilombo que perdeu cemitério de escravos para a Rio 2016

Em janeiro de 2014, Adilson Batista de Almeida voltou do trabalho para sua casa na Estrada do Camorim, em Jacarepaguá, zona sul do Rio, e notou a derrubada de árvores centenárias em um terreno próximo.

“Liguei para os órgãos de fiscalização e descobri que ali seria um condomínio. Mas só em março consegui falar com um engenheiro da obra e descobri que era para receber a imprensa na Olimpíada”, disse à BBC Brasil.

O terreno fica a cerca de 3 km do Parque Olímpico e aos pés do Parque Estadual do Maciço da Pedra Branca – uma das maiores florestas urbanas do mundo. Para Adilson, no entanto, o local também é parte da herança de sua família.

Ali ficavam as ruínas de uma casa-grande, os alicerces de um engenho, um cemitério de escravos e restos de um tronco onde eles eram torturados. Fugindo dali, escravos teriam criado um dos primeiros quilombos do Estado do Rio, dentro da floresta.

“Foi uma sensação muito ruim ver aquela destruição ali. Parecia que uma parte de mim estava morrendo. Cheguei em casa chorando, entrei em desespero”, relembra.

Posse

A Fundação Cultural Palmares, órgão ligado ao Ministério da Cultura, reconheceu que parte da comunidade do Camorim se autodefine como remanescente de quilombos.

Hoje, os descendentes chamam também o terreno da antiga casa grande e do engenho de “quilombo”, já que tanto os vestígios na floresta quanto os do local onde trabalharam os negros – trazidos, em sua maioria, de Angola – foram importantes para o reconhecimento oficial.

Conhecido como “Mestre Guerreiro” pelos seus alunos de capoeira, Adilson, que hoje é guia de ecoturismo no parque e presidente da Associação Cultural do Camorim (Acuca) é o responsável por mobilizar a comunidade.

No terreno onde hoje está a Vila de Mídia – que será transformada em condomínio de alto padrão após os Jogos – ele pretendia construir um centro cultural para manter vivas as tradições africanas.

“Queremos esse território para a preservação da nossa história, que é também a história do Brasil. Foram os meus antepassados que construíram o Rio de Janeiro”, afirma.

A comunidade quilombola reivindicou também o título de posse das terras de valor histórico e cultural, que é concedido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ligado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário.

A BBC Brasil teve acesso ao relatório de um antropólogo do Incra, de 2009, atestando que há vestígios do quilombo e do engenho na região.

O processo do Camorim começou a tramitar no órgão em 2009 e os moradores ainda aguardavam uma decisão final.

Procurado pela BBC Brasil, o Incra, no entanto, afirmou que o processo foi arquivado em 2014, por entender que “as áreas pleiteadas não se tratam de regularização de território indispensável para a garantia da reprodução física, social e econômica da comunidade reconhecida como remanescente de quilombo”.

O órgão diz ter notificado a comunidade, mas Adilson nega ter recebido qualquer notificação. Ainda é possível, segundo o próprio Incra, pedir o desarquivamento e o reinício do trâmite.

O condomínio, chamado Verdant Valley Residence, é de responsabilidade da construtora Living Amparo Empreendimentos Imobiliários, do grupo Cyrela.

Por e-mail, a Living disse à BBC Brasil que “não tem conhecimento de qualquer reivindicação da área pela comunidade quilombola”.

Comprovação

Segundo Adilson Almeida, os primeiros vestígios dos “escravos fujões” do engenho estão dentro da floresta do Maciço da Pedra Branca – são louças, garrafas e enxadas encontradas em grutas próximas, além de fundações de casas que datam dos anos 1600 e 1700.

A reivindicação dos quilombolas, no entanto, não engloba o parque estadual, e, sim, a área onde ficava o Engenho do Camorim e a capela de São Gonçalo do Amarante, hoje na praça central do bairro.

Um dos desafios para o reconhecimento das comunidades quilombolas é o fato de que seus registros históricos costumam ser orais, diz o advogado Luiz Peixoto, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB, que colabora com os quilombolas do Camorim no pedido de posse do território.

Foi esse, por exemplo, o primeiro contato de Adilson Almeida com seus antepassados.

“O bisavô do meu pai foi capitão do mato aqui e capturava seus irmãos, açoitava e levava para o engenho. É algo que me entristece muito, nem gosto de falar. Mas tenho que falar porque está dentro da história.”

Mas isso não quer dizer que não sejam necessárias provas concretas de suas origens.

“No processo de reconhecimento e demarcação das comunidade quilombolas, segundo a lei, faz-se um levantamento não só arqueológico, mas cultural da comunidade, para comprovar a descendência dos escravos. Tudo isso já foi feito no Camorim”, explica Peixoto.

“O pedido de posse assegura, por si só, a proteção daquela terra. Construir ali significa causar um dano irreparável ou de difícil reparação.”

Ao receber, pela BBC Brasil, a notícia de arquivamento da reivindicação dos quilombolas, Peixoto afirmou que pretende retomar o processo.

“A demanda pelo terreno existe e é comprovada. Eles estão lá e vivem lá desde a época da escravidão.”

Floresta ‘no quintal’

Peixoto defende ainda que a obra viola o direito ambiental, por ter sido erguida próximo à àrea do parque, ter causado a derrubada de árvores centenárias e o aterro de nascentes fluviais.

A construtora Living e a prefeitura do Rio afirmam, no entanto, que o condomínio não está dentro da área protegida e que todas as licenças ambientais necessárias à obra foram obtidas.

No site da Living, o projeto do Verdant Valley Residence diz ser um “condomínio-clube”.

Em conversa com um corretor responsável pela venda dos apartamentos, a reportagem ouviu que o local terá salão de festas para 300 pessoas, quadras esportivas em tamanhos oficiais e até uma van privativa que levará os moradores até a Barra.

“Você terá uma floresta eternamente sua, seu quintal será uma floresta”, afirmou.

A construção do condomínio no terreno do antigo engenho carrega também uma ironia. Em novembro de 2015, 11 operários foram resgatados da obra em condições degradantes, consideradas análogas ao trabalho escravo (AQUI).

A construtora assinou um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) e se comprometeu a resolver o problema.

Procurada pela BBC, a prefeitura do Rio disse que o empreendimento imobiliário foi construído em terreno particular e seguindo os parâmetros urbanísticos determinados para o local. Mas não quis comentar a reivindicação dos quilombolas.

O advogado Luiz Peixoto, no entanto, esclarece que, de acordo com a Constituição, a propriedade dos quilombolas, por ser anterior, se sobreporia a qualquer outra.

Resgate

Atualmente, o bairro do Camorim tem cerca de 20 mil moradores, mas apenas 20 famílias – pouco menos de 100 pessoas – se identificam como descendentes de africanos escravizados.

Em 2009, quando teve início o processo de reconhecimento, os autodenominados quilombolas eram 80 famílias.

A queda drástica na identificação das famílias, segundo Adilson, se relaciona com a conversão dos moradores a religiões neopentecostais.

“Muitos, quando começam a ir para a igreja, acham que ser quilombola é vergonhoso, deixam de lado a capoeira e as danças que ensinamos. Na minha família mesmo aconteceu isso”, lamenta.

Para ele, este é um motivo a mais pelo qual a manutenção do sítio arqueológico no local é importante.

“Queremos resgatar ao menos uma parte do terreno para manter lá a nossa memória, além de fortalecermos os projetos sociais que existem no Camorim.”

Os projetos incluem aulas de capoeira, danças e jogos africanos, uma horta coletiva e educação ambiental para crianças.

“Tenho fé que vou conseguir esse espaço. Vou até a última instância.”

Foto: Felipe Barceloos, BBC.

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