No Taqui Pra Ti
Familiares, alunos e amigos o estão pressionando para se candidatar a vereador. Criei até o slogan da campanha: “Acorde, vote em Totode”. Ou um mais ousado: “Não phode, vota em Totode”. Isso caso ele decida assumir o apelido de infância adquirido em circunstâncias que revelo aqui aproveitando o clima de delação premiada. Foi assim.
Manaus. Meio-dia. Macaco assovia, panela no fogo, barriga vazia. Um sol quente de agosto, daqueles capazes de cozinhar cérebro de turista. O Colégio Dom Bosco começa a despejar centenas de alunos famintos nas calçadas da Epaminondas. Entre eles, o nosso herói, de 8 anos, que espera a sua condução cercado de colegas da mesma sala.
Pais apressados e molhados de suor param em fila dupla e tripla, disputando com ônibus e carros um pequeno espaço para recolher seus filhos. De um deles, salta a nossa heroína, “a mãe”. Olha para um lado, para o outro. Seus olhos brilham quando no meio daquele formigueiro humano consegue localizar o nosso herói. Parte pra cima dele, se derretendo toda:
-Tadê a toisa mimosa ta mamãe? Tá tum fominha, Totode, tá?
O “Toisa Mimosa” ficou gelado, petrificado. Empalideceu. Fingiu que não era com ele. Olhou para trás na vã esperança de encontrar outro filho, um “Totode” qualquer disposto a assumir aquela deslumbrada maternidade. “A mãe”, acreditando que ele não havia ouvido, insistiu, quase gritando, desta vez ainda muito mais tatibitate:
– Tchá tchum fominha, Tchotchode, tchá?
Diferentemente de Michel Fora Temer quando foi buscar na escola o Michelzinho Forinha Temer, ela se aproximou e deu-lhe uma bitoca escandalosa na bochecha, que estalou tão tragicamente identificadora quanto o beijo de Judas em Cristo. Agora não havia mais dúvidas. Todo mundo tinha a certeza certa de que “Totode” ou “Tchotchode” era ele. Começava o seu calvário. “Pai, se é possível, afasta de mim essa mãe” – ele pensou. Mas seu pai, no volante do carro, não podia atender ao apelo.
Toisa Mimosa
Três mortes ocorreram naquele momento, sem esperanças de ressurreição. O “Totode” estava sim, morrendo de fome. Mas antes disso, morreu de vergonha, porque todos os seus colegas morriam de rir dele.
No dia seguinte, não teve um minuto de descanso. A canalha encarnou no que hoje seria considerado bullying, mas na época era mera sacanagem que se tirava de letra. Durante as aulas, circulou um papel com a frase: “Tá tum fominha, Totode, tá?”. A turma inteira gozava o nosso herói. A professora tomou o papel de um do alunos pensando que fosse “cola”. Leu a frase em voz alta. Perguntou:
– Quem é Totode?
Todos os olhares convergiram para ele, que foi obrigado a se identificar uma vez mais.
Já em casa, procurou o irmão mais velho, de 10 anos, para uma conversa séria.
– Paulinho, maninho, dá um toque na mamãe. Fica feio, morro de vergonha. Diz pra ela falar direito como a mãe de quase todo mundo. Basta perguntar discretamente: “Meu filho, você está com fome, está?”. Meu apelido no Colégio ficou sendo Totode. Quando querem debochar ainda mais chamam Tchotchode ou “Toisa Mimosa”.
Advertida, a mãe nunca mais repetiu a dose. O “Totode” continuou “tum fominha”, mas perdeu o apelido, cresceu sem traumas, jamais precisou de analista, defendeu tese de doutorado na UNICAMP, publicou livros e hoje é brilhante professor da Universidade do Federal do Amazonas. Ele me autorizou a contar a história, mas preservo sua identidade, já que Totode não figura sequer como verbete no Dicionário de Amazonês. Será que ele chama publicamente as filhas Clara e Marina de “toisinhas mimosas”? É bem capaz, porque todo Totode é um cronópio enrustido.
Cronópio Júnior
Totode é universal, atravessa gerações e está espalhado por muitos países. Na Argentina, por exemplo, existem Totodes com outros nomes como escreve Julio Cortazar, em relato curto intitulado “Educação de Príncipe”, publicado em “Histórias de Cronópios e Famas”. Ele dividiu os seres humanos em três categorias: os cronópios, sonhadores e sensíveis; os famas, caretas e arrogantes e as esperanças, amarguradas e medrosas. Inventou nova linguagem, em que esses seres se cumprimentam dizendo:
– Boas salenas!
Cronópios não costumam ter filhos, mas quando os têm enlouquecem e agem de forma estranha, embevecidos e fascinados, vivem paparicando Cronópio Júnior que para eles é beleza pura, gênio da raça, obra de arte e poesia. Então, os cronópios se inclinam e lambem a cria com elogios, encômios e loas.
O Cronopinho, que na escola brinca feliz durante toda a manhã com outros pequenos cronópios, famas e esperanças, longe do pai e da mãe, começa a ficar apreensivo à medida que o meio-dia se aproxima, porque sabe que seu pai o estará esperando na hora da saída e que ao vê-lo levantará os braços e dirá frases como:
– Boas salenas, Cronopinho, a criança mais lindinha, mais crescidinha e mais meiguinha do planeta, a mais graciosa, mimosa e talentosa do mundo, a toisinha fofa do papai.
Os famas e as esperanças se dobram de tanto rir na beira da calçada, gozando a cara do Cronopinho que, por isso, é claro, odeia saudavelmente seu pai e se vinga dele fazendo muita merda entre a primeira comunhão e o serviço militar. Mas os cronópios não sofrem por causa disso, porque também eles em algum momento odiaram os pais e até parece que esse ódio é o outro nome da liberdade ou do vasto mundo – escreve Cortázar.
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P.S. – Crônica publicada originalmente em A CRÍTICA (08/01/1996) com o título de “A fominha do Totose”. Depois, “a mãe” me corrigiu esclarecendo que é Totode. Foi modificada e atualizada no DIÁRIO DO AMAZONAS (21/08/2016), mas conservamos aqui as duas notas da época.