Sobre nós, sobre os índios, sobre o Estado laico e sobre a Funai

“Um Estado que se pretenda justo age tratando igualmente a todos, em busca de igualdade formal, e desigualmente aos desiguais, em busca de igualdade material. Nesse contexto, as instituições públicas, enquanto espaços do povo, são – ou deveriam ser – para todos, não devendo ser aceitas no espaço público imposições de visões particulares de mundo”.

Quem escreve é Carolina Santana, servidora da Funai, num texto de elogiável lucidez, através do qual convoca seus colegas e a própria instituição à reflexão. Sobre o quê? Sobre a privatização do espaço público. Privatização que entre nós é cada vez mais recorrente e, nesse caso específico da Funai, assume ainda outro componente grave: o desrespeito à Constituição no que toca ao Estado laico. Num órgão que existe para garantir os direitos dos povos indígenas, respeitando suas culturas e tradições, pretender formar servidores a partir de feudos religiosos é no mínimo um contrassenso.

É possível (e esperamos!) que a decisão de utilizar material oficial de formação de servidores para proselitismo religioso não tenha sido do Departamento responsável pela organização do curso, mas sim resultado de ação arbitrária isolada. O resultado dessa ação, entretanto, é ‘coletivo’, o que torna imperativa uma atitude desse departamento em particular e da Funai como um todo.

Como diz Carolina a respeito de seu texto, “Não é fácil tocar em assuntos como esse, eu sei. É um tema delicado, gera rumores, ruídos de comunicação e atuações estratégicas de pessoas que querem desviar o foco do debate. Assim, gostaria de fazer uma explicação sobre o texto, caso ainda não tenha ficado claro: o debate é sobre Estado laico e a interferência de linhas de pensamento religiosas na esfera pública. O texto não é, nem nunca foi, sobre a Coordenação de Desenvolvimento de Pessoal da Funai. Esta Coordenação, aliás, é de extrema importância para Funai, possui servidores qualificados e deve, cada vez mais, ser valorizada e receber condições de organizar cursos de capacitação para os servidores. Essa é uma pauta que tenho defendido há tempos. A crítica direciona-se a quem, como o texto diz, deliberou, arbitrariamente, por colocar essas mensagens no material oficial do curso -, o que, quero muito crer, não equivale à totalidade de servidores da CODEP. Assim, diante de rumores equivocados sobre o texto, coloco os pingos nos is e aproveito para reiterar tudo o que eu já disse. O assunto é grave e não é um caso isolado de privatização do espaço público em nossa instituição”.

Segue o texto. Aguardemos a ação da CODEP e da Funai.

***

Por Carolina Santana

Os dicionários definem “público” como sendo algo relativo ao povo, algo que se destina à coletividade e que é do uso de todos. As instituições do Estado brasileiro são, por definição, públicas, ou seja, são – ou deveriam ser – destinadas ao povo brasileiro. “Povo” é um conceito bastante flutuante, eu sei, e mil significantes caberiam nesse significado.

Engessar significantes – ainda mais o de “povo” – não é a melhor forma de se iniciar um texto que fale, também, sobre os indígenas, considerando os esforços homogeneizantes de estruturação do povo brasileiro e as violências físicas e simbólicas que se cometeram sob essa bandeira. Preciso, porém, de um significante que me permita problematizar o uso privado do espaço público (embora esse espaço público ainda não seja tão público quanto gostaríamos). Talvez eu possa buscar a saída em Wittgenstein, para quem “o significado de uma palavra depende do seu uso”, e considerar que o uso que estou buscando – nesse momento – é o de “povo” inserido na estrutura do Estado.

Acho que, então, já que me proponho a falar de Estado e de princípios jurídico-administrativos, lançarei mão do sentido filosófico-social de povo, com referências no pensamento clássico da antiguidade, berço do Direito Ocidental. Cicero, Santo Agostinho e Tomás de Aquino, afirmavam que “povo não é qualquer reunião de homens de qualquer modo, mas é a reunião de uma multidão ao redor do consenso do direito e dos interesses comuns”, cabendo ao Estado harmonizar esses vários interesses. Um Estado que se pretenda justo age tratando igualmente a todos, em busca de igualdade formal, e desigualmente aos desiguais, em busca de igualdade material. Nesse contexto, as instituições públicas, enquanto espaços do povo, são – ou deveriam ser – para todos, não devendo ser aceitas no espaço público imposições de visões particulares de mundo.

Essa semana começou o curso de redação oficial da Funai. Ao receberem o material oficial do curso os alunos foram acolhidos com mensagens de boas vindas de teor religioso. Entre outras frases, as pastas contendo o material estavam munidas de mensagens como “Somos irmãos na fé, abençoados por Deus” e trechos bíblicos como João 14-27 e João 14-1, devidamente assinadas pela Coordenação de Desenvolvimento de Pessoal da Funai, setor responsável pela capacitação de pessoal.

Foi uma acolhida simpática para quem crê no Deus cristão. Para quem crê em outro ou em outros deuses foi uma acolhida antipática e excludente.

Todos sabemos que o Estado brasileiro é – ou deveria ser – um Estado laico, o que significa dizer que ele comporta o respeito a toda confissão religiosa na esfera privada. Não há, em um Estado laico, apoio ou oposição a qualquer religião, além de haver, também, o respeito ao direito à descrença religiosa. O Estado laico, portanto, não condena atitudes religiosas no espaço privado, mas age com a crítica necessária e separadora da interferência da religião na vida pública das sociedades contemporâneas. Assim, em um Estado laico deve haver ausência de envolvimento religioso em assuntos públicos.

As palavras escolhidas para a acolhida dos alunos do curso de redação oficial da Funai não são apenas palavras. As palavras formam discursos e vão muito além de seus significados óbvios. A linguagem é um fato social e as palavras, sobretudo as que remetem à religião, trazem relações de poder em seus significantes, trazem um ideal de vida, um ideal de homem, de mulher, de ser humano etc. Assim, as palavras estão dizendo, ao serem inseridas como material oficial do curso, que somente serão bem vindos naquele local os que acreditarem no Deus cristão ou, na melhor das hipóteses, que estes serão mais bem vindos que os descrentes.

As pessoas que organizaram o curso e que, arbitrariamente, deliberaram por colocar essas mensagens nas apostilas, quiseram conferir à instituição, muito equivocadamente, um caráter cristão. Isso já seria grave se fosse em qualquer instituição pública, mas na Funai, além de grave, é triste e vergonhoso.

Triste porque o histórico do Estado brasileiro – sozinho, sem as práticas de proselitismo religioso – com os povos indígenas já é triste, por negar-lhes seus costumes e tradições, por negar-lhes que também nos colonizem, por negar-lhes o direito à diferença. Mais triste ainda, porque o histórico dos povos indígenas com as instituições religiosas é trágico, doloroso e injusto. Agora se somem os dois históricos, tragam a religião para dentro do Estado e reflitam… Não lhes parece grave?

O que poderia ter sido feito? Naturalmente, que poderiam ter sido usadas palavras de boas vindas sem cunho religioso. Mas em se querendo conferir religiosidade às boas vindas o princípio da impessoalidade somado ao do Estado laico exigiria que todas as religiões fossem contempladas. Ficaria uma coisa mais ou menos assim: “Somos irmãos na fé, abençoados por Deus, por Oxalá, pelo pai Tupã, por Krishna, por Alá, pelos encantados das matas, pela Mãe Tríplice, pelo Deus Cornífero, etc, etc, etc, não necessariamente nessa ordem, e somos irmãos, também, daqueles que não têm fé.” Estranho né? Então, o melhor é não fazer e seguir na pegada da impessoalidade. “Sejam todos muito bem vindos e tenham um ótimo curso”. Tá lá na Constituição, artigo 37, cumprir o combinado não sai caro.

Espero que o ocorrido seja tratado com seriedade pela Instituição. A Funai, uma das instituições mais antigas do Estado brasileiro é, talvez, uma das mais carentes na institucionalização de suas práticas. Não podemos fechar os olhos ou minimizar práticas de proselitismo religioso – de qualquer natureza – dentro das instituições públicas e, menos ainda, na Funai. Se for para “humanizar” as relações pessoais e as instituições públicas, que seja pela pluralidade, e não pela imposição de visões de mundo particulares. Que as instituições públicas, parafraseando um dos meus grandes ídolos, se pintem de índio, de mulher, de pobre, de negro… E não que se fechem em conceitos eurocêntricos embolorados sob o signo da humanização dos espaços. Humanização para quem? De qual conceito de humano estamos falando?

Exagero? Genocídios indígenas causados por contatos irresponsáveis de missionários religiosos, milhares de terreiros queimados pela estupidez, docilização dos corpos femininos em nome do deus cristão, crucifixos nas paredes dos tribunais… entendem?

Finalizo deixando-lhes uma música linda e um pedido por reflexão:

“… um homem não é mais que um homem/ E se há deus, assim ele quis/ o mesmo solo que eu piso seguirá e eu terei ido/ Não há doutrina que não se vá e não há povo que não acredite ser o povo escolhido”.

O etnocentrismo talvez seja a coisa mais universal do mundo.

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Comments (1)

  1. Sobre a negativa que se vive todos os dias quanto ao direito ao estado laico. O texto da amiga gerou compreensões diversas, mas queria colocar a minha. O estado laico hoje vem sendo atacado por todos os lados. De minha parte, quando vou à escola PÚBLICA do meu filho, a diretora obriga a todas a orar o Pai Nosso. Numa prova da escola do meu filho, um versículo bíblico. Em um dos departamentos da Funai que trabalhei, a concentração era impossível pois as músicas de adoração cristã eram tocadas o dia todo, no volume máximo. Falei com minha chefe e ela fez de conta que nada acontecia. Às quintas-feiras espaço especial para os cristãos ficarem gritando no térreo da Funai. Na Câmara dos Deputados, os deputados cristãos começam as sessões com orações. Me lembrei do Cunha de mãos dadas com a Aline Barros. Entretanto, fui criada em família cristã e sei mais que tudo que não há ‘boa vontade’, o que realmente existe é Marcos 16:15: “E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura.” E assim, sobre uma ordem divina se perde a ética, se perde o respeito, se perde o amor, se o objetivo for a conversão do próximo. Nós da Funai vemos a uma associação criminosa como a ATINI pregar pelo Brasil, como fizeram nas paraolimpíadas, que todos os índios são violentos e assassinos. E muitos cristão seguem a ATINI cegamente. Sabe por que? Marcos 16:15! Como se a ordem divina estivesse acima da ética, acima da proteção aos povos indígenas. Já vimos isso milhares, milhões de vezes.
    Claro que amo muitos os cristãos de minha vida, mas me consome ver como outras religiões são tratadas como demoníacas, como falsas, em oposicão à ‘religião verdadeira”.
    Assim, queria dizer aos amigos da Funai e de vida. Quando sou obrigada a conviver com a religião alheia em um espaço que deveria ser laico, ME SINTO VIOLENTADA. Quanto vejo os missionários em terras indígenas usando a falta de política pública para converter indios com comida e roupas, ME SINTO VIOLENTADA. O que foi colocado no curso da Funai não diz respeito a ‘boa vontade’. Isso diz respeito unica e exclusivamente a Marcos 16:15. A CODEP É O LUGAR MAIS IMPORTANTE DA FUNAI. Mas o que foi feito, foi feito sem ética alguma e de forma deliberada. ME SINTO VIOLENTADA!

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