O clamor das ruas*

Por Chico Whitaker

O Brasil vive hoje mais um episódio de ruptura política de sua longa transição rumo a uma sociedade igualitária. A Casa Grande retomou as rédeas de nossa vida política, aproveitando-se da fragilização do um governo democraticamente eleito.

O absurdo social das senzalas, que o país viveu durante três séculos, só foi questionado quando os comerciantes ingleses passaram a impedir o livre curso dos navios negreiros, interessados que estavam em aumentar o número de “homens livres” que se tornassem consumidores, para expandir os negócios de suas indústrias nascentes. Mas foi a partir da abertura de nossas portas, no século XIX, para a imigração europeia e japonesa, que começaram a surgir classes médias em nosso país. Elas foram incorporando, vagarosamente, os antigos moradores das senzalas, mas o país mantém até hoje um quadro de escandalosa desigualdade social, herdado do regime escravocrata e consolidado pelo regime militar de 64.

Foi em reação a esse quadro que se formou no Brasil um setor social de esquerda política, em luta mais consistente pela igualdade, que chegou a algo que pareceria inalcançável: eleger um Presidente da República, que veio a se tornar famoso em todo o mundo por suas qualidades mas muito especialmente porque vinha do mundo operário, composto em grande parte por egressos das senzalas. Os “explorados” tinham ganho maior consciência de seus direitos e se organizaram politicamente, aliados a membros da classe média que também lutavam contra a desigualdade com diferentes motivações – recusa da injustiça, razões religiosas ou simples bom senso. Entre estes havia até intelectuais nascidos na Casa Grande, que com seus estudos e livros contribuíam a que mais gente compreendesse nossa história.

A derrubada da esquerda do poder que conquistou foi o resultado de um longo processo – com a ajuda de profissionais em psicologia social e em política de resultados, de dentro e de fora do país – cujo primeiro impulso se apoiou na insatisfação da própria esquerda, cujas organizações sociais questionavam decisões dos governos que elegeu. Tal insatisfação se tornara mais visível com o “clamor das ruas” de junho de 2013 – que deixou perplexa a “classe política” de esquerda e de direita, e que foi o primeiro “estouro” social de dimensão significativa depois dos muitos anos de medo imposto pela ditadura militar. Mas a direita logo subiu na garupa dessas manifestações e pouco a pouco as redirecionou à luta contra a corrupção, que é endêmica no país e na qual a classe dominante surfa com a tranquilidade de quem manda, e passou a apresentá-la como um desvio inaceitável da esquerda.

Para isso a Casa Grande usou em ampla escala a grande mídia, controlada por ela e que já vinha divulgando episódios anteriores de corrupção. Estes já tinham fragilizado a esquerda por causa do apoio de membros mais pragmáticos do governo a “esquemas” de corrupção, e pelos casos de submissão de quadros partidários menos principistas ao deslumbramento do poder ou à tentação das vantagens fáceis. Colocou-se então no centro das atenções nacionais a triste visão dos intestinos sujos da máquina política, revolvidos pela ação de instituições alentadas justamente pelos próprios governos de esquerda. Na verdade o povo honesto não podia e não pode senão se revoltar com a descoberta, que se pretende que continue, de cada vez maior número de assaltos ao dinheiro público. Ora, esse conjunto de fatores acabou afetando negativamente, muito, a imagem da esquerda como guardiã dos interesses sociais.

Para completar seus desígnios, a direita abrigada na Casa Grande combinou uma variedade de iniciativas, sem precisar usar a força, como nos golpes de Estado tradicionais. Aplicando em sua ação política muito dinheiro, que é o seu forte, ela facilmente levou à rua multidões de insatisfeitos da classe média, que crescera no país e não tinha conseguido aceitar os resultados das eleições que levaram a esquerda ao poder, e que temia que lhe fossem tirados os privilégios que começava a degustar. Dispondo de uma maioria parlamentar, a direita usou então o Legislativo – pressionado pelo novo “clamor das ruas” – para imobilizar o Executivo, negando-lhe as leis de que necessitava para agir ou aprovando outras que lhe criavam mais dificuldades. E a criação desse quadro de incertezas, somadas a problemas na conjuntura internacional, levou a “classe proprietária” a desativar seus investimentos, criando no país um quase caos econômico, que fez surgir milhões de desempregados. Foi quando aqueles que conduziam politicamente o processo decidiram apressá-lo, ao se darem conta de que as denúncias de corrupção, que se multiplicavam, iriam necessariamente alcançá-los, “igualando-os” aos membros do Partido da Presidente que estavam sendo apresentados como corruptos.

A Presidenta Dilma Rousseff foi então destituída não por um crime de responsabilidade – exigido pela Constituição no presidencialismo – mas por causa da corrupção de que seu partido era acusado e pelo fato do “conjunto da sua obra” provocar uma “desconfiança”, como se ela fosse o primeiro-ministro de um regime parlamentarista. Teve-se no entanto o cuidado – e a sutileza, para legitimar a ruptura institucional necessária para que a Casa Grande voltasse ao poder – de levar o Presidente da mais alta instância do Judiciário a dirigir de forma “equilibrada” os trabalhos de um Júri parlamentar com prejulgamento declarado.

Consumado o golpe parlamentar no Senado da República, em 31 de agosto, mais um “clamor das ruas” começa a tomar conta do país, agora para se opor ao novo poder político instalado – que está tentando ir ao pote com o ímpeto de uma sede represada há mais de uma década, para reverter no mais breve prazo possível as “conquistas” dos que sonham com a igualdade social. Resta saber como, e durante quanto tempo, se conseguirá mobilizar quem deseja um país justo. A luta será difícil, exigindo muita persistência e organização. Conta-se, para as mobilizações, com os setores de classe média “aliados” aos explorados, mas seu número é menor do que o dos seus setores insatisfeitos com a esquerda, e o “povo da senzala” tem mais dificuldade em deixar sua longínqua “periferia” para participar de manifestações.

Deve-se levar em conta também que enquanto esteve no poder a esquerda perdeu a oportunidade de dar continuidade ao que estava na raiz de seu sucesso: a elevação do nível de consciência política dos moradores da senzala em torno de seus direitos e na crítica ao sistema econômico que os explora, bem como sua organização, juntamente com seus aliados de classe média. E para complicar estamos em tempos em que a “teologia da prosperidade” tomou o espaço de expansão da “teologia da libertação”, e o “sonho de consumo” foi introduzido nas mentes até dos mais pobres, com a ajuda de imensas maquinas publicitárias e TVs com espetáculos e massa de informações que não dão às pessoas tempo para pensar.

Temos que buscar caminhos novos. Tentando superar também a principal dinâmica motora do capitalismo, que o leva a dominar hoje todo o mundo, mas que, incorporada à atuação da esquerda, a divide recorrentemente: o espirito competitivo. Temos que substitui-lo pelo espirito de cooperação, que permitiu a sobrevivência na senzala, apesar dos ferros e da força bruta que a Casa Grande sabia usar, e hoje alimenta a ajuda mutua com que os pobres contam para viver. Estamos em tempo de diálogo e de humildade. Para conseguirmos reduzir ao mínimo possível este triste interregno na longa luta pela igualdade social no Brasil.

11 de setembro de 2016 (dia para nos inspirarmos em Allende, mártir da luta pela igualdade).

* Artigo escrito para o Boletim Rede de Cristãos, publicado pelo Centro Alceu Amoroso Lima, número de setembro de 2016.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.

 

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