“A Várzea Grande não é uma aldeia, e jamais será”, discursou o prefeito de Itacarambi contra os Xakriabá

Por Renato Santana, Cimi

“Gostaria que prestassem muita atenção no que eu vou falar, que é de muita importância pela liberdade, autonomia e futuro de Itacarambi”. Era feriado de 7 de setembro de 2015. O prefeito Ramon Campos Cardoso (PDT) iniciava dessa maneira um discurso (ouça aqui) para a população da cidade, no norte de Minas Gerais, contra o povo Xakriabá da aldeia Várzea Grande, atacada nesta sexta-feira, 23, a pauladas por cerca de 40 posseiros que tinham a intenção de destruir um Posto de Saúde – os posseiros passaram a semana passada em Itacarambi participando de atividades eleitorais e estiveram em uma reunião com o deputado federal ruralista Bilac Pinto (PR/MG) – leia abaixo.

Convocando a população a aderir a uma “causa” assumida por ele, o prefeito afirmou no evento comemorativo da Independência do Brasil que “estão querendo transformar Itacarambi numa grande aldeia” e que “a Várzea Grande não é uma aldeia, e jamais será, se Deus quiser”. Atacou a Fundação Nacional do Índio (Funai) como autora de “um laudo antropológico forjado para ferir de morte o povo de Itacarambi” e afirmou “que respeita o cidadão índio de cidades vizinhas (…) mas sou contra sim aqueles que querem se dizer índios usufruindo e ameaçando pessoas de bem”. O discurso ocorreu três dias depois de uma Audiência Pública na aldeia.

Parlamentares da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais estiveram no dia 4 de setembro em Audiência Pública com os Xakriabá da Várzea Grande. Saúde e violência foram os temas. A aldeia, antiga Fazenda São Judas, foi retomada pelos indígenas em 1º de setembro de 2013 e está inserida nos 43 mil hectares presentes no Relatório Circunstanciado de demarcação publicado pelo Ministério da Justiça em outubro de 2014. Na aldeia vivem 170 famílias Xakriabá, distantes 40 quilômetros da sede política do município de Itacarambi. Estão às margens do rio Peraçu, depositário de águas do Velho Chico e alvo de interesses do agronegócio.

“Lá em Itacarambi os políticos gostam de dizer que queremos tomar conta da cidade, ainda mais depois da retomada. O que o índio quer com a cidade? Nada. Queremos é viver bem na nossa terra. Nós não somos invasores, mas conhecemos os nossos direitos. Os fazendeiros acabam com tudo, enquanto nós queremos garantir a sustentabilidade das nossas próximas gerações”, afirmou João de Jovina Xakriabá durante a Audiência Pública noticiada pela imprensa da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. O indígena relatou que se alguma violência fosse cometida contra o povo, a responsabilidade seria da Prefeitura de Itacarambi que incita, ao lado de grandes fazendeiros, posseiros e a população não-indígena contra os Xakriabá.

“Temos mulheres grávidas com pressão alta que nunca conseguiram uma consulta com um médico em Itacarambi. Eu sei as obrigações do município na saúde, e eles não estão cumprindo com seus deveres. Peço a todos que aprendam a lutar pelos seus direitos e não se deixem mais enganar”, disse na Audiência Pública a presidente do Conselho de Saúde de Vargem Grande, a técnica de enfermagem Áurea Cristina da Silva. Meses depois, logo no início deste ano, os Xakriabá recuperaram uma instalação abandonada na aldeia da Unidade Básica de Saúde (UBS) e abriram o Posto de Saúde.

Audiência Pública: “irresponsável”, “criminosa”

Ramon Campos Cardoso sabia da Audiência Pública. Por conta disso, usou o palanque montado no feriado de 7 de setembro para atacar a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e o povo Xakriabá. Em trecho do discurso, o prefeito disse: “A Assembleia Legislativa de Minas Gerais, sem conhecimento de causa, está ignorando o direito do povo e do cidadão de Itacarambi, os direitos dos produtores rurais de Itacarambi, sejam eles pequenos ou grandes. A Assembleia Legislativa de Minas Gerais marcou uma Audiência Pública; ela deveria deveria ter consultado as autoridades eleitas legitimamente por esse povo (da cidade)”.

Para o prefeito, se tratou de uma atividade “eleitoreira” e “extemporânea, fora de hora”. A mensagem passada pela Audiência Pública seria “irresponsável” e “criminosa”. O fruto da “Audiência Pública sem anuência” foi a acusação de que a Poder Público municipal incita a violência contra os Xakriabá, considerada pelo prefeito como mentirosa. “Peço o apoio da população para desmanchar essa farsa (…) agradeço aos meus amigos vereadores que de forma unânime apoiam esta causa. A comunidade de Várzea Grande pertence a esta cidade e (quem lá vive) são bem tratados pela Saúde do município”, concluiu. Na fala, o prefeito afirmou ainda que continuará defendendo o povo dos “traidores da Funai”.

Posseiros se reuniram com deputado da PEC 215 antes de ataque

Os posseiros envolvidos no ataque ao Posto de Saúde da aldeia Várzea Grande chegaram a Itacarambi no início da semana passada, em dois ônibus, conforme revela os Xakriabá. A informação foi confirmada por quatro fontes consultadas. Participaram de atividades envolvendo as eleições municipais e se reuniram, ao lado do prefeito Ramon Campos Cardoso, candidato à reeleição, com o deputado federal Bilac Pinto (PR/MG). O parlamentar compõe a bancada ruralista e integrou a Comissão Especial que aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215.

A medida pretende transferir as demarcações de terras indígenas, quilombolas e a criação de áreas de conservação ambiental do Poder Executivo para o Congresso Nacional, cuja bancada a qual Bilac faz parte possui grande força por concentrar cerca de 200 deputados federais e senadores. No momento, a proposta segue aguardando votação na Câmara Federal. A PEC 215 é considerada uma ameaça pelas Nações Unidas (ONU) aos direitos dos povos indígenas no Brasil.

Ainda não se sabe a pauta do encontro entre o ruralista e os posseiros, que contou com a presença do prefeito de Itacarambi. Na página virtual do deputado ruralista, uma pequena nota com foto diz que ele esteve na cidade em virtude da campanha de reeleição do prefeito. Durante o ataque dos posseiros, porém, as vítimas identificaram também pessoas com livre trânsito nos gabinetes políticos da cidade. A ofensiva deixou um indígena com o braço quebrado, funcionários da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) com veículos depredados e um missionário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) só não se feriu porque escapou, com a ajuda de um grupo Xakriabá, enquanto sofria uma investida a pauladas e pedradas.

Imagem: Egon Heck

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