A importância de Moro e da Lava-jato para a democracia e para as garantias do Processo Penal no Brasil

Por Bheron Rocha*, no Justificando

Alerta-se à partida que, apesar do título, não se trata de um artigo que busque justificar o endeusamento dado por setores da sociedade e da grande mídia ao citado Juiz ou a blindagem da famosa operação que este preside e comanda – a despeito da (suposta) separação de funções em um sistema (dito) acusatório vigente (?) no Brasil. Portanto, leia até o final para fazer a correlação entre título e artigo.

Sou Defensor Público há 10 anos e atuo na Justiça Criminal por igual período, mormente no último quinquênio, quando assumi a titularidade da 5ª Defensoria Pública Criminal de Fortaleza. Neste tempo, tenho substituído colegas junto a outros juízos na Capital e no interior, feito júris, lido (e atuado em) mais de dois mil processos.

Durante anos e anos, ao que converso com colegas defensores públicos e advogados, as absurdidades com as quais nos deparamos em nosso mister se repetem em todos os rincões do Brasil, com frequência diária e à luz do dia, contra os clientes preferidos do sistema: os drogados, os filhos sem mãe nem pai, os analfabetos, os negros, os favelados, os espoliados, os pobres, os prostituídos, os fedidos, a escória, os marginalizados, isso, os que vivem à margem deste grande rio de prosperidade chamado Brasil.

Defensorar, nestas condições, é um ato de resistência contra as ditaduras: do senso comum, da grande mídia, do conservadorismo, dos “homens de bem”, da justiça divina contra o pecado. O defensor é o único que se coloca ao lado do suspeito/réu, e, muitas vezes, entre ele e a turba que clama por sangue. Contra o investigado/acusado existe

“Toda a estrutura do Estado-administração, via polícia, que necessita encontrar culpado (é sua função); contra ele, tem-se toda a estrutura do Estado-acusador que, em tempos de populismo punitivo, necessita fazer presente, seja do jeito que for, a perseguição penal; contra ele, tem-se toda a estrutura da grande maioria dos integrantes do Poder Judiciário que entendem que o judiciário faz parte integrante do aparato repressivo do Estado: contra ele, tem-se a imprensa sensacionalista que necessita do espetáculo infantilizante da busca do “mau”; contra ele, tem-se toda a sociedade que sonha se vingar”[1].

Defender também pode ser um ato completamente solitário, que não conta nem mesmo com a ajuda do acusado, nem se sabe quem é, nem onde está, nem a sua versão para os fatos.

Muito é feito em nome da celeridade, porque “a sociedade acostumada com a virtualidade não quer esperar pelo processo”[2], há a premente necessidade de deixar o espetáculo prosseguir com o triunfo do bem (juiz, promotor de justiça, a polícia, o empresário de sucesso vítima do crime, “os homens de bem”) sobre o mal (o desempregado, o favelado, o bandido, até o “defensor de bandido”), onde os direitos e garantias fundamentais são percebidos como obstáculos à punição [3].

A busca da celeridade processual se exterioriza normalmente no indeferimento da produção de provas ou diligências requeridas pela defesa, pois vige quase que uma “presunção de intenção protelatória”, sendo dispensado pelo julgador uma maior fundamentação da decisão o que faz com que a “ausência de um conteúdo mínimo que balize as decisões equipara os conceitos de discricionariedade com o de arbitrariedade”[4]. 

Na contramão, enquanto se exige demasiadamente da defesa a demonstração de necessidade e pertinência das provas requeridas, relativamente àquelas solicitadas pela acusação há um certo afrouxamento de exigências, mesmo quando adentram profundamente as reservas de liberdade do acusado, com a restrição de seus direitos fundamentais, hipótese em que deveria haver, na verdade, uma fundamentação reforçada, com expressa identificação dos elementos probatórios que estabeleçam o vínculo entre a medida excepcional e o caso concreto, além da pertinência subjetiva [5].

O Processo Penal tem a natureza política de contrapoder frente ao Estado, e a tipicidade das formas é uma garantia para as partes, a ser observada. Assim, resta inexplicável que, em relação aos atos realizados sem a devida pertinência com as prescrições processuais, os Tribunais Superiores enalteçam o pas de nullité sans grief, exigindo-se da defesa provas indemonstráveis de prejuízo, pois, para tanto, ter-se-ia que adentrar a discorrer sobre uma realidade alternativa em que se houvesse produzido a prova como e quando requerido. Com fundamento nos Princípios-Garantias tão duramente conquistados e elencados na Constituição e Convenções Internacionais (presunção de inocência, devido processo legal, contraditório, ampla defesa) deveria haver, contrariamente, uma inversão de sinais, em que a presunção “normal é que tal atipicidade gere prejuízo”[6] ao acusado, se este não deu causa.

Infelizmente a inobservância das prescrições processuais penais muitas vezes é perpetrada pelo próprio fiscal da lei ou, quando não, com a sua aquiescência. Assim, o Ministério Público, em sua função custus legis, entende que a obediência à lei processual penal, garantia constitucional contra o arbítrio do Estado, não é essencial, muitas vezes provocada pelo próprio Parquet enquanto parte. O Poder Judiciário, nestes casos, deveria ser o último bastião para garantir as normas do próprio jogo, e evitar o doping processual[7].

O julgador fecha os olhos para a realidade em que vive a quase unanimidade dos “clientes do sistema penitenciário brasileiro”, cercado por todo um plexo de dificuldades, o que os torna multivuneráveis:

Insuficiência de recursos econômicos, óbices geográficos, debilidade de saúde, desinformação pessoal, desconhecimento sobre as leis, dificuldade de compreensão da técnica jurídica, ausência de defesa técnica, deficiência de atuação probatória, incapacidade de organização, etc.” [8]

Neste cenário, as situações processuais penais que causam frisson no meio acadêmico e rendem inúmeros artigos de juristas nos mais diversos meios (internet, revistas), por violação às Garantias previstas na Constituição e em detrimento das mais comezinhas disposições legalmente expressas, não causam espécie a quem está acostumado às lides diárias nas varas criminais país a fora.

De fato, ler o Acórdão do Supremo Tribunal Federal que entendeu que a execução provisória da condenação proferida em grau de apelação, ainda que sujeita a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência (com o que discordamos frontalmente em outro artigo), não causa furor diante das inúmeras vezes em que os acusados são “obrigados” a requerer eles mesmos a execução provisória para que façam jus ao regime semiaberto ou aberto fixado em suas sentenças em lugar do “regime fechado” em que são submetidos pela prisão preventiva mantida nestas mesmas sentenças, não obstante a completa desproporcionalidade com a pena concretamente imposta.

Assim é que tomar conhecimento do despacho (e lê-lo) em que o Juiz da Lava Jato determinou a condução coercitiva do ex-presidente Lula sem recusa imotivada, olvidando os dispositivos expressos do CPP, não incute surpresa para quem, nas lides diárias, se depara com as prisões para averiguação, ou conduções para as delegacias meramente porque o abordado tem “ficha suja”.

Tomar notícia e ler o despacho do juiz Sérgio Moro determinando a manutenção de escuta telefônica obtida ilegalmente não causa nenhuma surpresa para quem lê nos processos o “pé na porta” sem mandado e sem nenhuma suspeita razoável.

Tomar notícia pela imprensa e ler parecer do procurador da república Manoel Pastana em que a utilização da Prisão Preventiva para os investigados da operação Lava Jato se dá em vista da “possibilidade de a segregação influenciá-los na vontade de colaborar na apuração de responsabilidade”, não causa espanto para quem lê nos processos a abordagem policial obtendo confissões e provas mediante a prática de torturas.

Tomar conhecimento e ler a denúncia contra Lula que, além da pirotecnia e espetáculo dantesco (que certamente figurariam no cortejo de Damiens descrito por Foucault em Vigiar e Punir se àquela época houvesse esses meios), não tem o lastro suficiente, mas fora recebida, não admira quem vê sentenças condenatórias sem provas produzidas em juízo e sem pedido de condenação pelo Ministério Público.

Tomar conhecimento e assistir em interrogatório da Lava Jato informações serem negligenciadas porque não interessam à acusação, mas apenas à defesa, não surpreende a quem atua todos os dias em processos de acusação de porte de arma ou de roubo majorado pelo uso de arma, em que esta é apreendida e não há a preocupação em realizar o obrigatório laudo pericial do artefato, muitas vezes inoperante, quebrado, mas não interessa à acusação, pois há uma “presunção” de efetividade suficiente para condenar o (ou agravar a pena do) réu.

Tomar conhecimento pelas informações de juristas e ler a sentença (e o acórdão em HC que denegou a nulidade) em que a decisão condenatória foi prolatada antes de ouvir as alegações finais de defesa do acusado, não causa espécie aos defensores que acaso já ouviram magistrados dizerem que não precisavam de diligências (art. 402) porque iriam condenar de tal ou de tal forma, sem alegações finais sequer do Ministério Público (Ministério Público para que? Já há acusadores o suficiente).

Tenho presenciado, me indignado e me contraposto a muitas situações processuais inquisitórias: pessoas presas sem nenhuma necessidade; sentenças condenatórias baseadas em provas fugidias; provas de tortura policial negligenciadas pelos demais atores; provas ilícitas acostadas ao processo e ainda servindo como suporte para condenações; negligência na colheita de prova e a utilização desta lacuna para presumir fato contrário ao acusado e consequente acusação; sentenças prontas antes mesmo de a defesa se manifestar em suas alegações finais; penas exasperadas além do razoável para que os crimes não prescrevam; penas exasperadas além do razoável para que a detração do tempo da prisão provisória não opere a fixação de regime mais brando ou para que o tempo de prisão provisória não seja superior à própria pena; etc, etc e etc.

Entretanto, enquanto o chicote cantava no pelourinho ou na senzala, longe dos olhos das ruas e das indumentárias de linho ou de seda importada, longe dos ouvidos embalados pela Così Fan Tutte tocada no salão da Casa Grande, a abafar os gemidos dos crioulos, o mundo girava feliz.

A importância de Moro e da Lava-jato para a Democracia é desvelar esse processo penal inquisitorial de fazer corar Kramer e Sprenger, de levar ao extremo as exceções, de distender, esticar, levar à ruptura institucional (rupturas institucionais), não apenas sob a conivência dos Tribunais, mas com sua chancela explícita, uma vez que a Lava Jato não precisa seguir “ao regramento genérico, destinado aos casos comuns”. Tal e qual ocorria na ditadura, claro que, conforme alerta o Prof. Afranio Silva Jardim, “ao menos, nas ditaduras, não há este cinismo.

Antes, os casos de grande repercussão eram cercados por uma aparência de respeito às garantias e ao devido processo legal, que nos fazia acreditar que, de fato, teríamos deixado os ranços autoritários e caminhávamos para um processo democrático. A quimérica visão de que as exceções retratavam a regra geral: ledo engano. Foi assim com as liminares em Habeas Corpus deferidos em questão de horas, no meio da noite e “per saltum” pelo próprio STF. Na vida real os Tribunais de Justiça negam quase todas as liminares em HCs por excesso de prazo, ainda argumentando que “liminar não está prevista na lei”, e julgam seis meses depois, muitas das vezes não reconhecendo o excesso de prazo. Também ilusórias as rejeições de denúncias, como sói ocorrer nos casos de réus ricos, patrocinados por grandes bancas, e não com os pobres e indigentes das varas criminais. Também a anulação de ações por colheita ilícita de provas é fenômeno raro, que se prestava à miragem de que o sistema penal obedecia aos ditames da Constituição e que a transgressão dos limites das garantias individuais, a promoção de vazamentos e fomento do espetáculo penal pelos agentes públicos seriam de fato punidos.

O Processo Penal brasileiro não é este dos livros, não é este bem construído e emergente com o fulgor da Constituição de 1988, não é civilizado, não é este exaustivamente discutido pela academia, não é este cantado nos seminários internacionais, não é este das teses e dissertações, não é este asseado e lustroso dos artigos científicos. O processo penal brasileiro é a inquisição dos calabouços, o processo penal das delegacias lotadas e malcheirosas, o processo penal dos presídios dominados por facções, o processo penal do espetáculo, processo penal do inimigo, processo penal da exceção.

O processo penal brasileiro da realidade (letras minúsculas mesmo) mudou bem menos e mais devagar do que o processo penal da doutrina, malgrado a Constituição de 1988 ou as reformas subsequentes.

Minto, mudou.

Hoje se prende sem condenação muito mais que antes.

Hoje, com a atuação combativa da Defensoria Pública, levando os casos dos pretos, pobres e putas aos Tribunais Superiores, há um movimento de crescente limitação à utilização dos Habeas Corpus.

Neste ponto de ruptura, qual será o posicionamento dos Tribunais? Aquiescerão com o regime de exceção processual, permitindo instrumentalismo para o combate à criminalidade e os fins utilitaristas de obtenção das punições a qualquer preço? Permanecerão como meros observadores do influxo civilizatório que nos remeterá, irremediavelmente, ao tempo da inquisição?

A Resistência continua.

Jorge Bheron Rocha é Defensor Público do Estado do Ceará. Mestre em Ciências Jurídico-criminais pela Universidade de Coimbra.

[1]Nietzsche e o Direito. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris. 2013. p. 21/22[2] LOPES JR, Aury. Fundamentos do Processo Penal. São Paulo: Saraiva. 2ª Edição. 2016. p. 53.
[3] CASARA, Rubens. Processo Penal do Espetáculo. Florianópolis: Empório do Direito. 2015. p. 13.
[4] MELQUIOR, Antônio Pedro. Direito à Prova Defensiva e os Limites à Discricionariedade do Julgador. In Processo Penal e Garantias. Florianópolis: Empório do Direito. 2016. p.127
[5] PRADO. Geraldo. O Dever de Fundamentação Reforçada das Decisões no mbito das Medidas Cautelares Penais. In Verdade e Prova no Processo Penal. Brasília: Gazeta Jurídica. 2016. P 146.
[6] BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 4ª Edição. 2016. p. 795.
[7] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. 3ª Edição. 2016. Florianópolis: Empório do Direito. p. 191 e ss.
[8] TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense. 2012. p. 189 e ss.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

quatro + quatro =