“Eles chegaram atirando mesmo”, lembra sobrevivente do Massacre do Carandiru

Por Elaine Patricia Cruz, repórter da Agência Brasil

David Orestes, um ex-detento do Pavilhão 9 do Carandiru, passou 20 anos de sua vida no complexo, entre 1974 e 1994, preso por assalto, e é um dos sobreviventes do Massacre do Carandiru, ocorrido em 1992, que completa 24 anos neste domingo (2). Depois de cumprir o resto da pena, em 2005 David passou a trabalhar em uma comunidade religiosa na cidade de Osasco e a dar aulas de violão e hoje vive com uma pensão paga pelo governo por meio do Benefício da Prestação Continuada, previsto na Lei Orgânica de Assistência Social (Loas).

Ao contrário do presidente da 4ª Câmara do Tribunal do Júri de São Paulo, desembargador Ivan Sartori, que, junto com dois magistrados, anulou esta semana o julgamento dos policiais militares condenados pela ação e defendeu que os agentes agiram em legítima defesa, David disse que o ocorreu no Carandiru naquele ano foi sim um massacre.

“O que eles fizeram foi um massacre. O massacre é o penúltimo crime da humanidade. Acima do massacre, só o crime contra a humanidade. O massacre é uma coisa muito forte e muito cruel. Esse pessoal aí deve ser punido, não sei como, se é cumprindo pena. A Justiça é quem vai dizer. Não posso dizer: ‘eu quero que condene’. Eu quero dizer que acompanho a opinião do povo”, disse.

Segundo David, os detentos não ofereceram resistência aos policiais. “Houve mesmo o massacre. A alegação era de que havia pessoas [detentos] armadas, que algum de nós estariam armados lá dentro. Mas não tinha ninguém com armas. Não há como uma pessoa reagir e enfrentar 10 mil soldados que entraram lá, sem nada, nu. Todos eles foram mortos e, os que foram mortos, todos [estavam] despidos”, contou.

“Foi um massacre. Não tem tribunal que possa absolver dizendo que não, que foi em legítima defesa. Eles mataram mesmo. Eles chegaram atirando mesmo, em pessoas nuas, sem roupa, despidas, e foi o que aconteceu”, lembrou o sobrevivente da ação policial que deixou 111 mortos Na tarde do dia 2 de outubro de 1992.

A lembrança daqueles dias, segundo o ex-detento “já está bem distante”, mas durante muitos anos o perseguiu até em sonhos.

“Nos primeiros anos, eu estava sempre lembrando. Às vezes eu sonhava. Cheguei até a cair da cama sonhando com esse massacre. Foi muito sangue, muita gente morta. Hoje já estou bem melhor. Mas, no começo foi difícil, porque a gente sai de lá e a gente perde o humor. O humor da gente sai bem baixo. Difícil se adaptar com as pessoas aqui fora que têm outro modo de vida”, contou.

Busca de respostas

David disse à Agência Brasil que, assim como ele cumpriu sua pena pelo crime cometido, os culpados pelo massacre também deveriam ser punidos. “Como eu fiquei muito tempo lá no Carandiru, eu cumpri 30 anos de pena, juntando com a liberdade condicional. O que eu acho é que existe certa injustiça. Acredito que vai ser difícil eles [responsáveis pelo massacre] cumprirem pena em um presídio”, reconheceu.

“Só posso agora esperar o que vai acontecer. E se der tempo, porque já passei dos 70 anos e já estou no fim da carreira. Acredito que mais uns dez anos e esse processo ainda vai rolar no tribunal”, acrescentou David, que vai completar 71 anos daqui a dois meses.

Para o assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional, Paulo Malvezzi, a decisão do Tribunal de Justiça paulista demonstra que “o sistema de Justiça e o Judiciário acabam por funcionar de forma a acobertar as violências praticadas pelo Estado.”

Segundo Malvezzi, em geral, em crimes cometidos pelo Estado ou por agentes do Estado, poucas vezes há responsabilização. “Até hoje há pouquíssimas iniciativas de responsabilização restritas à esfera penal”, comentou, citando exemplos os Crimes de Maio de 2006 e a Chacina de Osasco, em 2015. “É uma sequência de massacres e de violência do Estado que parecem não ter freio. E temos pouca esperança de que o Judiciário vai trazer alguma resposta para o Carandiru e essas outras situações”, ressaltou.

O secretário estadual de Justiça e da Defesa da Cidadania Márcio Fernando Elias Rosa, disse que a punição dos responsáveis é fundamental para não penalizar novamente as vítimas e suas famílias com a injustiça. “Até para não revitimizar e expor ainda mais aqueles que são acusados, o Estado de São Paulo e a sociedade paulista mereciam algum fim para esse episódio. Daí porque a decisão [de anular a condenação] me soou inusitada e tecnicamente, na minha avaliação, equivocada por maior que seja o respeito que eu tenha pelo Poder Judiciário”, analisou.

A organização de direitos humanos Justiça Global também lamentou a falta de respostas e de responsabilização pelo massacre, principalmente após a anulação dos julgamentos. “Olhando todo o volume de evidências que foram colhidas no caso, não apenas contra os policiais que entraram no Carandiru, mas também contra as autoridades que autorizaram a entrada da polícia militar, é vergonhoso o papel da Justiça, especialmente por considerar legítima defesa em uma ação contra homens encurralados e desarmados”, disse Sandra Carvalho, coordenadora da Justiça Global, por meio de nota. “O Brasil certamente não é o país da impunidade, mas sim da seletividade penal”, acrescentou.

Na sexta-feira (30), em Genebra, a Organização das Nações Unidas (ONU) também criticou a decisão do Tribunal de Justiça paulista dizendo que a anulação “manda uma mensagem preocupante de impunidade” e apelou para que as autoridades condenem os responsáveis.

Edição: Luana Lourenço

Massacre na casa de detenção teve início após uma briga entre dois detentos; ao todo, 111 foram mortos no episódio. Foto: Mônica Zarattini /Estadão Conteúdo /19.02.2001.

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