Jornalistas do Voz da Comunidade são presos e agredidos pela Polícia Militar por fazer jornalismo

Por Daiene Mendes e Cecilia Olliveira, no The Intercept Brasil

Dois jornalistas do veículo independente Voz da Comunidade foram detidos na manhã deste sábado (01) quando cobriam a violenta remoção da Favelinha da Skol, no Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro. Rene Silva e Renato Moura, claramente identificados como repórteres, não cumpriram a ordem dos policiais militares de desligar os equipamentos e foram enquadrados por desacato e desobediência e levados para 45ª Delegacia.

Os policiais estavam retirando moradores que tinham reocupado o terreno onde suas casas foram demolidas pelo estado, depois de pararem de receber o aluguel social que foi acordado para que saíssem da área. No vídeo do Voz da Comunidade é possível ver os soldados botando fogo nos pertences dos moradores. Uma testemunha não nomeada relata que os policiais bateram nos moradores e usaram gás de pimenta durante a remoção. Questionados pelo The Intercept Brasil sobre a truculência da ação a PM respondeu que “após rápida negociação, as pessoas se retiraram sem a necessidade de uso progressivo da força e ou armamento não letal”, mas se recusou a informar se tinham mandado de reintegração de posse.

Logo depois, policiais irritados com a presença dos jornalistas e com a insistência destes em cumprir o que lhes é garantido pela lei de liberdade de expressão — e imprensa —, deram um tapa no celular de Rene Silva, no momento em que ele realizava uma transmissão ao vivo pela página do jornal. A denúncia da prisão foi feita ao vivo na página de Facebook do Coletivo Papo Reto.

“Eu sabia que não estava fazendo nada de errado. O policial jogou o meu celular no chão, com um tapa, e depois ficou com o aparelho. No momento que eu tentei pegar meu telefone para continuar a transmissão ao vivo, ele me deu voz de prisão por desobediência e me algemou. Quando eu já estava imobilizado, um outro policial disparou spray de pimenta na direção dos meus olhos”, conta Silva ao The Intercept Brasil.

A prisão dos jornalistas foi totalmente arbitrária e mostra que a polícia vem usando desta tática para coibir que seus atos ilegais sejam veiculados, nota o advogado Luan Cordeiro, que vem atuando junto à manifestações populares desde 2013. “Os policiais militares deram voz de prisão aos jornalistas sobre a justificativa de desobediência e desacato”, relata Cordeiro. “O que na verdade ocorreu, foi uma clara violação à dois direitos essenciais em uma democracia: o da liberdade de expressão, das pessoas que estavam protestando contra a desocupação e é o da liberdade de imprensa que cobria a operação da Polícia Militar.”

Outros jornalistas que estavam no local e continuaram gravando na hora em que Silva e Moura foram detidos não foram presos. Após quatro horas, os dois foram liberados.Rene Silva e Renato Moura vão responder por crime de desobediência e serão investigados por esbulho possessório (invasão de propriedade), conforme o relato do delegado Fábio Asty, titular da 45ª DP, ao jornal O Globo.

Logo após a liberação dos jornalistas, a tensão no lugar voltou, com a polícia jogando gás de pimenta e usando balas de borracha para dispersar as pessoas. Carlos Coutinho, videojornalista e membro do Coletivo Papo Reto, foi atingido por duas balas de borracha, uma na perna e outra na costela, de acordo com ele, por um policial que tinha o ameaçado em frente à delegacia, quando ele filmava a soltura dos detidos.

“Quando chegamos na delegacia, alguns policiais, tanto da militar quanto da civil, perguntaram se a gente era do Coletivo [Papo Reto], se trabalhávamos com o Raull [Santiago]”, disse Silva, que fundou o Voz da Comunidade há 11 anos e atua como editor-chefe.

Há poucos mais de duas semanas o jornalista que gravou a detenção de Silva e Moura, Raull Santiago, descia uma rua no Complexo do Alemão quando viu uma blitz da PM. Um ônibus foi abordado e os policiais pediram algumas pessoas para descer do veículo. “De repente um dos PMs começou a agredir um dos jovens e os outros PMs vieram na minha direção, por eu estar ali com o celular acompanhando a abordagem. Pediram minha identidade e queriam me levar de testemunha”, explicou Santiago em um post no Facebook. Disse ainda ter sido questionado se era advogado para querer observar ações da polícia e o porquê da filmagem.

Santiago, que ficou conhecido por cobrir violência e violações de direitos diárias no Complexo do Alemão, afirmou ainda ter sido ameaçado. “Vai filmar bandido, porra! Tu mora ali na [rua] sem saída, bem no beco”, ouviu o jornalista, que neste momento diz ter sido filmado um policial enquanto outro o acusava de atrapalhar seu trabalho. “Pode me filmar e denunciar, não vai dar em nada! No máximo eu volto pro 9º Batalhão”, ouviu ele no momento em que outro agente disse: “Passa uma moto a paisana, te pega e ninguém vê”. Santiago estava junto com Luciano Garcia, que testemunhou a descrição.

Uma hora depois, o jornalista foi avisado de que policiais faziam uma busca para “prender os meninos do tráfico”, deixando claro que a informação foi passada por Raull Santiago. Informações sobre denúncias são delicadas e podem colocar a vida do denunciante em risco. Exatamente por isso são feitas anonimamente, através do Disque Denúncia ou 190. Santiago nega ter passado qualquer informação do tipo.

“Me senti muito mal em ter que sair da minha casa, com minha família, sofrendo ameaças do estado, através da PM, por estar denunciando a violência institucional da corporação e lutando por garantia de direitos para nós, da favela. É urgente frear essa situação bizarra de perseguição à quem atua nos campos da comunicação independente e direitos humanos. É inaceitável a polícia abordar pessoas de forma aleatória e perguntar se conhecem ou trabalham comigo. O que querem? Porque isso? Simplesmente opressão e perseguição a nós, ativistas da favela”, diz Santiago que é também defensor de direitos humanos da Front Line Defenders e trabalhou na campanha Jovem Negro Vivo, da Anistia Internacional.

Devido à gravidade das ameaças, ele ficou temporariamente fora da comunidade. “É de conhecimento público o relato do midiativista Raull Santiago, do coletivo Papo Reto, sobre as ameaças que recebeu por parte de policiais, devido ao seu trabalho de documentação e denúncia de violações de direitos humanos pela polícia no Complexo do Alemão”, explicou Àtila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil. Questionados sobre as ameaças, a Polícia Militar não respondeu ao The Intercept Brasil.

Fazer jornalismo de peso no Brasil pode ser extremamente perigoso e repórteres de pequenos veículos correm ainda mais risco. O país caiu para a 104ª posição no ranking anual de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras, em parte, devido ao “nível muito preocupante de violência contra jornalistas”. Nesta semana, Edvaldo Oliveira, idealizador do jornal Voz das Cidades foi baleado no ombro enquanto distribuía o jornal em Franco da Rocha, cidade satélite de São Paulo. Conhecidos relatam que ele foi alvejado por causa de seu trabalho que “passou a incomodar muita gente” e já tinha recebido ameaças e intimidação há quatro meses, segundo TV SBT. De acordo com a Comitê para Proteger Jornalistas, em 2015, o Brasil foi o país mais mortífero para a imprensa na América do Sul. Desde 1992, 39 jornalistas foram assassinados em serviço.

 

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