”Caro Sakamoto, queria educadamente te fazer uma pergunta. Se sua mãe ou seu filho tivessem sido mortos por um bandido, você provavelmente iria querer vê-lo morto também, não? Então por que você insiste?”
Recebi muitas mensagens de leitores com o teor desta acima na última semana por conta da minha crítica à anulação do julgamento do Massacre do Carandiru. Nada de novo, mas acho importante responde-la.
Meu caro, você tem razão. Em momentos de intensa emoção e de profundo desespero, ao ver uma pessoa amada ou um familiar gravemente ferido ou assassinado, é bem possível que qualquer um de nós esqueça regras e normas e queira fazer justiça com as próprias mãos. Devolvendo, assim, parte da dor e do sofrimento que alguém nos causou.
E é exatamente por causa disso e para evitar que entremos um ciclo de vingança sem fim trazido pelo olho por olho, dente por dente, parente por parente, vida por vida, linchando inocentes no meio do caminho, que transferimos para o Estado o poder de apurar um crime e fazer Justiça.
Que nem sempre ocorre, deixemos bem claro. Principalmente se você é pobre. Desembargadores que chamam massacres – em que 111 morrem de um lado e ninguém do outro – de ”legítima defesa” estão aí para nos provar isso. Mas as instituições que criamos ao longo de milênios, com todos os defeitos, ainda é nossa melhor alternativa.
Quando uma turba resolve fazer Justiça com as próprias mãos, partindo para o linchamento de uma pessoa acusada de cometer um crime, usa – não raro – o discurso de que as instituições públicas não conseguiram dar respostas satisfatórias para punir ou prevenir. Afirmam, dessa forma, que estão resolvendo – como policial, promotor, juiz, júri e carrasco – o que o poder público não foi capaz de fazer, baseado em um entendimento do que é certo, do que é errado e do que é inaceitável. Mesmo que, ao final de um espancamento, isso os transforme em criminosos mais vis do alguém que comete um furto, por exemplo, uma vez que a vida vale mais que a propriedade e não existe pena de morte no Brasil. Em tese, claro.
Ao se criticar execuções públicas de pessoas que estão presas, sob o controle do Estado, não defendemos ”bandido”, mas sim o pacto que os membros da sociedade fizeram entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia. Em suma, não entregamos para o Estado o poder de usar a violência como último recurso a fim de proteger os cidadãos para que ele a use como padrão de solução de todos os conflitos. Se for para isso, não precisamos de um Estado, muito menos de governantes.
A polícia, um dos braços armados do Estado, deve seguir as leis e não usar os mesmos métodos dos bandidos sob a pena de gerar filhotes monstruosos. Como as milícias brotadas no seio da polícia carioca ou paulista e que mantém o poder político ou econômico em comunidades, tornando-se piores que outras formas de crime organizado.
Parte da população, cansada da violência, apoia desvios de Justiça por parte do Estado. O problema é que o impacto desse apoio se faz sentir no dia a dia do país. E nem estou tratando da forma como a polícia trata manifestações ou protestos, mas das periferias das grandes cidades e dos grotões da zona rural, em que o Estado aterroriza parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica).
A justificativa que damos para nós é a mesma usada nos anos da última ditadura: estamos em guerra contra aqueles que querem destruir nosso modo de vida. Ninguém explicou, contudo que essa guerra é contra os valores que nos fazem humanos e que, a cada batalha, vamos deixando um pouco para trás.
O Brasil vive um clima em que, no afã de combater crimes que lesam os cofres públicos ou a dignidade humana, atores públicos acreditam que podem passar por cima das leis. Mas leis estão acima de governantes, parlamentares e juízes e não abaixo deles. Nenhuma exceção pode ser aberta com a justificativa de erradicar um crime sob o risco de limarmos as liberdades individuais e os direitos fundamentais nesse processo.
Muitos podem não acreditar nisso. Mas continuo insistindo em trazer esse debate aqui. Pois a alternativa é a mais completa barbárie.
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De acordo com a polícia civil, um rapaz havia tentado assaltar um bar em São Luís (MA), quando foi rendido, amarrado nu em um poste e agredido até a morte com socos, chutes, pedradas e garrafadas pelo moradores no ano passado. Foto: Biné Morais