Com vistas a consolidar, rapidamente, o novo projeto político-social anunciado à sociedade brasileira em outubro de 2015, por meio do documento “Ponte para o Futuro” do PMDB, o Governo Temer tem adotado um conjunto de estratégias que passa pela construção/aprovação de um novo marco legal, inclusive por meio de emendas constitucionais, e a formação de um ambiente que privilegia a atuação da iniciativa privada na prestação dos serviços públicos.
A “Ponte para o Futuro”, após o golpe de Estado pela via institucional, prevê a reorientação da atuação do Estado no campo das políticas públicas e sociais, o que inclui o saneamento básico. O documento preconiza o que pode ser chamado de um neoliberalismo subalterno e subordinado ao rentismo e ao mercado. Dentre as previsões de tal documento, pode-se destacar:
executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos e retorno a regime anterior de concessões na área de petróleo, dando-se a Petrobras o direito de preferência (FUNDAÇÃO ULYSSES GUIMARÃES; PARTIDO DO MOVIMENTO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO, 2015, p. 18, grifo nosso).
Desde sua posse como presidente interino, Temer tem comandado apressadamente diversas inciativas para fazer avançar a “Ponte para o Futuro”. Na área de saneamento básico o cenário é de profundas mudanças no marco legal, no papel das instituições e no financiamento. No campo legal merecem destaque:
- a MP 727 editada no mesmo dia (12/05) da posse de Temer como interino e convertida na Lei n. 13.303/2016 (ou seja: tudo estava preparado, mesmo antes do golpe). A Lei estabelece o estatuto jurídico das empresas públicas, sociedades de economia mista e de suas subsidiárias (estatais), fortemente questionada por atropelar as competências dos entes federativos; por pretender disciplinar todos os tipos de empresas estatais (concorrência ou monopólio, sob o regime de direito privado ou de direito público), dentre outros;
- a Lei n. 13.334/2016, que cria o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), prevendo um conjunto de medidas e dispositivos para fortalecer a interação do Estado com a iniciativa privada, retomando, inclusive, o Programa Nacional de Desestatização (Lei n. 9.491/1997) do governo Fernando Henrique Cardoso, amplamente questionado pelos prejuízos que trouxe à nação com a venda do patrimônio público à iniciativa privada, a exemplo da Vale do Rio Doce, sendo considerado por Antônio Biondi o maior assalto ao patrimônio nacional;
- a PEC n. 65/2012, aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado e a ser apreciada pela Câmara Federal, a qual define que, a partir da simples apresentação de um Estudo Impacto Ambiental (EIA) pelo empreendedor, nenhuma obra poderá mais ser suspensa ou cancelada. Se aprovada, na prática, os procedimentos previstos na Lei da Política Nacional de Meio Ambiente e em toda a legislação ambiental aplicada atualmente em processos de licenciamento de obras públicas serão duramente fragilizados.
Mas, outras estratégias de desconstrução das políticas públicas de saneamento básico estão em curso a despeito e à revelia das intensas discussões entre os diversos segmentos da sociedade ao longo de, no mínimo, três décadas, na esteia da redemocratização do País, do processo Constituinte, dos debates sobre a Reforma Sanitária e a Reforma Urbana. Tal estratégia está registrada no documento intitulado “Diagnóstico Saneamento”, de 14 de setembro de 2016, da Casa Civil da Presidência da República (BRASIL, 2016).
Para dar legitimidade às propostas apresentadas o documento informa que foram ouvidos representantes da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Água e Luz (sic), ou seja, Esgoto (Abcon), Instituto Trata Brasil, Ministério das Cidades, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e a Associação Brasileira dos Engenheiros Sanitaristas (sic), ou seja, de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes). A análise do conjunto de entidades convocadas permite constatar que foram representados na reunião da Casa Civil os setores empresariais e os que defendem os seus interesses. Cabe pontuar que o Instituto Trata Brasil, uma Oscip, vem há quase dez anos construindo as bases para ser o grande interlocutor da área e o disseminador do ideário neoliberal para as políticas de saneamento básico no Brasil, legitimando-se por meio da divulgação de um conjunto de pesquisas e documentos que disseminam suas ideias e dos grupos que representa, a exemplo Acqualimp, Aegea, Amanco, Braskem, Cab Ambiental, Coca-Cola do Brasil, GS Inima Brasil, Pam Saint Gobain, Solvay Indupa, Tigre, dentre outros.
O documento apresenta 13 propostas que em seu conjunto visam:
- alterar o marco legal do saneamento básico (Lei n. 11.445/2007, Lei n. 11.107/2005 dos Consórcio Públicos, – principalmente nos artigos que permitem a dispensa de licitação na celebração de contrato de programa com ente da federação ou com entidade da sua administração indireta para a prestação dos serviços públicos por meio de gestão associada – e a legislação ambiental, a exemplo da Lei de Crimes Ambientais e resoluções do Conama), visando introduzir novas diretrizes para possibilitar/facilitar a participação privada;
- ampliar a participação privada na prestação dos serviços “no mercado de saneamento” (BRASIL, 2016,7) por meio de concessões, abertura de capitais e PPP, em abastecimento de água, esgotamento sanitário e resíduos sólidos;
- atribuir funções relacionadas ao saneamento básico à Agência Nacional das Águas, fortalecendo a regulação via diretrizes regulatórias federais, gerenciando sistemas de informação, capacitando as empresas de saneamento para gestão de contratos e orientando municípios na elaboração de planos municipais de saneamento básico. Tal estratégia dá centralidade à regulação e fragiliza o planejamento e o poder local;
- revisão das competências das instituições do governo federal, com destaque para a Fundação Nacional de Saúde que deixará de atuar nos municípios de população menor que 50.000 habitantes e transferência da “maior parte das competências (e orçamento) para o Ministério das Cidades” (BRASIL, 2016, p. 5).
- revisão do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), considerado um “Plano Panfleto”, visando introduzir a participação privada nas diretrizes e propostas;
- criação de linhas de crédito especiais no BNDES e Caixa para viabilizar Parcerias Público-Privadas e acordos com acionista para garantir interesses dos sócios minoritários;
- dar segurança jurídica aos investimentos em áreas irregulares consolidadas e avaliar as soluções provisórias para as não consolidas, demostrando um tratamento econômico e normativo/legal para uma questão relacionada à problemática da segregação sócio-espacial das cidades brasileiras.
O conteúdo “Diagnóstico Saneamento” espelha não só as propostas expressas na “Ponte para o Futuro”, mas também o modus operandi do grupo no poder: construir propostas que dialogam e atendem aos interesses dos setores privados, consolidando o mercado do saneamento básico no Brasil; e promover, rapidamente, a desconstrução das políticas públicas de saneamento básico por meio da revisão açodada do marco legal, contando com a participação dos segmentos sociais ligados ao setor privado e excluindo a participação social.
Está em curso no Brasil uma grande operação de apropriação do patrimônio do povo brasileiro, representado não só pelas empresas estaduais e autarquias municipais de água e esgoto, mas também pela parcela dos recursos do Orçamento Geral da União e do BNDES e da Caixa, estes últimos constituídos por fundos dos trabalhadores, que na última década possibilitaram ampliar de forma significativa os investimentos em saneamento básico no Brasil.
Nenhuma nação do mundo universalizou o saneamento básico sem que o Estado, como ente que deve assegurar o bem-estar coletivo, tivesse forte participação. Ainda hoje, avaliando os modelos de prestação dos serviços, constata-se que a matriz é pública. A “Ponte para o Futuro” do Governo Temer ao propor a privatização dos serviços públicos de saneamento básico no Brasil se coloca na contramão da história já que há um movimento em todo o mundo de remunicipalização dos serviços, dado o reconhecimento dos limites da atuação privada em um segmento que se constitui em um monopólio natural, um serviço essencial, um direito social e humano que impõe investimentos significativos e não permite o diálogo com à lógica do capital já que a sua lucratividade está condenada à cobrança de tarifas altas, qualidade dos serviços declinantes, exclusão das populações com baixa capacidade de pagamento, manutenção das desigualdades de acesso, problemas contratuais para fazer frente as situações de risco, quer seja econômico como ambientais e de obsolescência dos sistemas, dentre outros.
Diante do cenário de desconstrução da política de saneamento básico no Brasil, a sociedade brasileira e os grupos organizados devem buscar pautar em suas lutas na defesa intransigente do saneamento público e o controle estatal e popular dos serviços.
Salvador, 24 de outubro de 2016
Observatório de Saneamento Básico da Bahia (OSB-BA)
Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental/Seçao Bahia (ABES/BA) Central de Movimentos Populares (CMP)
Coletivo de Luta pela Água-SP
Comisión Nacional en Defensa del Água y la Vida (Uruguai) Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM)
Confederação Nacional dos Urbanitários (CNU)
Espaço de Formação Assessoria e Documentação (SP) Federação Nacional dos Urbanitários (FNU)
Federación de Funcionarios de O.S.E. (FFOSE, Uruguai) Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social
Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental (FNSA) Grupo Ambientalista da Bahia (GAMBÁ) Observatório da Mulher
Rede de Olho nos Mananciais (SP)
Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente no Estado da Bahia (SINDAE)
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Foto: Caco Konzen/ Ag. RBS.
Enviado para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.