A Igreja acompanha de perto a política energética do MME

Maurício Corrêa, de Brasília — Paranoá Energia

O binômio Energia-Igreja só passou a ter um significado mais recentemente no Brasil. Energia todo mundo sabe o que é, mas Igreja deixou há tempo de ser aquela organização de atuação global que se preocupa apenas com a preservação de dogmas ou com a ida dos seus fiéis para o Céu. Hoje, a Igreja está muito interessada na política energética e acompanha de perto todos os passos dos agentes econômicos e do Governo, pois entende que o seu trabalho pastoral também está relacionado com o bem-estar dos seres humanos, o que representa defesa intransigente do meio ambiente, preocupação com a questão das mudanças climáticas, melhor qualidade do ar e preservação das nascentes e reservas de água.

Em entrevista exclusiva a este site, o presidente do Conselho Gestor da Cáritas no Estado do Paraná, Reginaldo Urbano Argentino, explicou que é possível buscar uma forma de desenvolvimento que seja solidário, inclusivo e sustentável, visando à superação não apenas das desigualdades sociais, mas, também, de impedir as situações que promovem a destruição da vida.

“O nosso trabalho na área de energia insere-se nesse contexto de evitar a exploração do homem pelo homem e também a destruição do ambiente. A política energética não pode estar voltada apenas para o interesse das grandes corporações. O ser humano está em primeiro lugar”, afirmou.

A Cáritas é um organismo da Igreja Católica, vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Tem uma coordenação nacional, mas atua de forma descentralizada. Reginaldo Urbano, por exemplo, é um católico leigo, de 42 anos de idade, terapeuta de profissão. Ele fica sediado em Umuarama, localizada a 650 km ao Noroeste de Curitiba, uma próspera cidade com população um pouco superior a 100 mil habitantes, mas a sua área de atuação na Cáritas abrange todo o Estado do Paraná.

Ele começou a se interessar pelos aspectos relacionados com a política energética por volta de 2013, quando ouviu falar na palavra inglesa “fracking” pela primeira vez. Este é o significado de “fraturamento hidráulico”, uma técnica que permite a extração de gás natural do subsolo, mas de forma extremamente agressiva ao meio ambiente e à saúde das pessoas e dos animais. No ano seguinte, o “fracking” já estava na agenda de trabalho da Cáritas.

“Percebemos imediatamente que o “fracking” era uma tremenda ameaça para as pessoas e os animais. Aqui no Brasil a discussão a respeito dessa técnica ainda é bastante nova e as pessoas, de modo geral, não estão antenadas para o que isso significa. Dentro da Cáritas temos consciência plena que lutar contra a adoção dessa técnica significa proteger a vida”, afirmou.

De fato, o “fracking” é muito polêmico. Basicamente, consiste na perfuração de um poço vertical, com 2 ou 3 mil metros de profundidade, no qual se injeta grande quantidade de água e substâncias químicas , sob alta pressão, para fragmentar as rochas e permitir que o gás seja extraído. Seus defensores alegam que o “fracking” permite retirar hidrocarbonetos que não seriam extraídos por outros meios.

Os adversários do fraturamento hidráulico, entretanto, listam vários inconvenientes, como a contaminação de reservas subterrâneas de água, contaminação das terras, efeitos terríveis para a saúde das pessoas e dos animais, sem contar o aumento de atividades sísmicas, que pode levar a terremotos.

Mas a Cáritas não combate o “fracking” de forma isolada. Preferiu uma forma de trabalho compartilhado, tanto que, hoje, é uma das organizações que integram a Coalizão Não Fracking Brasil (Coesus), fundada em 2013, e que tem como objetivo informar, pesquisar e combater a técnica do “fracking”.

A lista de integrantes da Coesus é muito ampla e reúne dezenas de sindicatos patronais rurais e de trabalhadores, acadêmicos, entidades voltadas para a área de energias renováveis, ambientalistas, parlamentares, prefeitos, empresários e juristas. No grupo da Coesus também se destaca a ONG 350 Brasil, uma organização não-governamental de atuação global, que guarda algumas semelhanças com o Greenpeace, embora voltada mais diretamente para o combate aos combustíveis fósseis.

“Já somos 5 milhões de pessoas dizendo não ao “fracking” e defendendo o desenvolvimento de uma economia de baixo carbono. Todos nós, na Coesus, acreditamos que é possível, sim, promover soluções energéticas que tornem as comunidades livres e independentes com bases sustentáveis e competitivas”, afirmou o dirigente da Cáritas no Paraná.

No seu Estado, o trabalho da Coesus explodiu de repente e a razão é fácil de entender. O Paraná é um dos principais produtores agrícolas do País, sendo possuidor de elevadas taxas de desenvolvimento humano mesmo em pequenas cidades do seu interior. Seus habitantes que tiram o sustento do trabalho na terra não querem nem ouvir falar de qualquer coisa que possa representar uma ameaça para as propriedades, as pessoas e os animais. A adesão dos ruralistas à Coesus foi praticamente imediata.

Por essa razão, a Coesus tem a singularidade de agrupar, numa espécie de frente ampla, agentes que em outros contextos não se caracterizam por um relacionamento civilizado. Assim é que, dentro da Coesus e visando o combate ao “fracking”, coexistem ruralistas, ambientalistas, religiosos e outros.

Afinal, o Paraná está no centro do chamado Aquífero Guarani, uma gigantesca reserva subterrânea de água que fica sob o Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. “O princípio da Igreja é preservar a vida, do início até o fim. O “fracking” traz doenças e mata as pessoas e animais. Então, combatemos o bom combate, de forma consciente”, justificou.

Segundo Reginaldo Urbano, há grande coerência entre o trabalho pastoral da Igreja e a preocupação com aspectos da política energética. “Nossa atividade está voltada para a Casa Comum, que é a Terra, a defesa da Natureza. Então, necessariamente precisamos nos envolver com as questões relacionadas com o clima e o uso da água. Antes, quando não havia consciência em relação ao uso compartilhado da água, ela pertencia totalmente às hidrelétricas. Agora é diferente, felizmente, e também existem os cuidados com a irrigação, o consumo humano e dos animais, etc. Os grandes grupos econômicos que são os donos das hidrelétricas já não podem fazer o que bem entendem”.

Ele explica que a visão da Igreja a respeito da política energética não é tão simplista quanto alguns críticos querem dar a entender. “Temos hoje um modelo de desenvolvimento energético que está a serviço unicamente de grandes grupos econômicos, os quais têm interesse unicamente na remuneração do capital investido e na distribuição de lucros aos acionistas. Mas nós, que integramos a Coesus, somos totalmente contra a exploração dos hidrocarbonetos fósseis, de forma ampla. Somos dependentes de um modelo irracional e aproveitamento inadequado das fontes energéticas. É lógico que em um país do tamanho do Brasil você não pode, de hora para outra, fechar todas as térmicas, a óleo, carvão ou gás natural, pois o sistema entraria em colapso. Entretanto, acreditamos que pode ser feita uma política que prevê um período de transição em direção a um modelo de eficiência energética”.

Reginaldo faz um paralelo com a sua atividade de terapeuta, na qual não se pode, de imediato, indicar para um paciente em tratamento que deixe de utilizar todos os medicamentos tradicionais, substituindo-os em bloco por outros que não prejudicam o ser humano. Essa mudança tem que ser feita aos poucos, pois, caso contrário, o paciente vai ter muitos problemas.

As questões do meio ambiente, segundo explicou, se enquadram na quinta urgência das diretrizes gerais da CNBB. De fato, um documento denominado “Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2015-2019”, de responsabilidade da CNBB, assinala que é necessário compartilhar as alegrias e preocupações dos trabalhadores por meio da presença da Igreja não apenas nos locais de trabalho ou nos sindicatos, mas, também, nas associações de classe e de lazer. ”Urge lutar contra o desemprego e o subemprego, a precarização do trabalho e perda de direitos, criando ou apoiando alternativas de geração de renda, assim como a economia solidária, a agricultura familiar, a agroecologia, a reforma agrária, o consumo solidário, a segurança alimentar, as redes de trocas, o acesso ao crédito popular, o trabalho coletivo, a busca do desenvolvimento local sustentável e solidário”.

Mais à frente, o mesmo documento revela que “importante campo de ação, hoje, é educar para a preservação da natureza e o cuidado com a ecologia humana, através de atitudes que respeitem a biodiversidade e de ações que zelem pelo meio ambiente. Entre essa ações, destaca-se a preservação da água, patrimônio da humanidade, evitando sua privatização, seu desperdício e cuidando da gestão do solo”.

Um dos livros de cabeceira de Reginaldo Urbano Argentino é a encíclica assinada pelo Papa Francisco “Laudato Si” (Louvado Sejas). Embora um jesuíta de formação, o Papa Francisco foi buscar nos ensinamentos de São Francisco de Assis as bases da encíclica, que trata dos cuidados com a Casa Comum, ou seja, com a preservação do meio ambiente.

Na “Laudato Si”, há um capítulo especialmente dedicado à questão da água. Nele, o Papa deixou claro que “em muitos lugares, os lençóis freáticos estão ameaçados pela poluição produzida por algumas atividades extrativas, agrícolas e industriais, sobretudo em países desprovidos de regulamentação e controles suficientes”. Só faltou dar nome e sobrenome ao “fracking”.

Uso correto dos recursos hídricos, combate ao “fracking” e aos hidrocarbonetos fósseis em geral. O trabalho da Igreja Católica vai nessa direção em termos de política energética. Mas, segundo o presidente do Conselho Gestor da Cáritas no Paraná, é fundamental fazer uma sintonia fina entre o que a Igreja prega e o mundo real da economia.

No dia dedicado a São Francisco de Assis, 04 de outubro, segundo Reginaldo, a Igreja Católica deu um grande passo na luta contra as mudanças climáticas. Nada menos do que sete instituições católicas de peso ao redor do mundo anunciaram globalmente sua adesão à campanha de desinvestimento do setor de combustíveis fósseis. Trata-se do maior anúncio conjunto feito pelo segmento religioso até o momento.

A Diocese de Umuarama foi uma das sete, a primeira do Brasil e da América Latina, a aderir à campanha de desinvestimento nas empresas que utilizam combustíveis fósseis no processo produtivo. As outras seis organizações que se comprometeram com o desinvestimento foram os Padres Jesuítas do Alto Canadá; a Federação das Organizações Cristãs para o Serviço Voluntário Internacional (FOCSIV), na Itália; a Congregação das Irmãs de Apresentação de Maria da Austrália e Papua Nova Guiné; SSM Saúde, nos Estados Unidos; a Sociedade Missionária de São Columbano, baseada em Hong Kong e com presença em 14 países; e o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, em Milão e Nápoles, na Itália.

“Os compromissos vão desde a retirada de investimentos em carvão, como é o caso da instituição SSM de Saúde dos Estados Unidos, até o redirecionamento dos fundos para energias limpas e renováveis, como a FOCSIV já anunciou”, afirmou Reginaldo, citando o próprio bispo da Diocese de Umuarama, dom frei João Mamede Filho, que disse:

“Como Bispo da Diocese de Umuarama, em comunhão com a Igreja Católica e atento aos apelos do Evangelho, compreendo com clareza as mensagens do Papa Francisco através da Encíclica Laudato Si, que nos convoca ao cuidado da Casa Comum por meio de iniciativas que defendam a vida como um todo. Não podemos nos acomodar e seguir permitindo que interesses econômicos que buscam o lucro antes do bem-estar das pessoas, destruindo a biodiversidade e os ecossistemas, continuem ditando nosso modelo energético, baseado nos combustíveis fósseis. Sabemos que o Brasil conta com fontes abundantes de energias limpas e renováveis que não agridem a nossa Casa Comum. Por isso, acredito que a proposta de tornar a Diocese de Umuarama de baixo carbono é um dos caminhos práticos para se alcançar o que propõe a Laudato Si”.

Esse movimento, que já é forte no Paraná e começa a se espalhar por outras partes do Brasil, também já existe na Argentina e no Uruguai. Aliás, na condição de membro da Coesus e coordenador para desinvestimento em hidrocarbonetos fósseis da 350.org no Brasil, Reginaldo Urbano participará, em janeiro de 2017, de um seminário em Roma, quando o Vaticano pretende afinar o discurso da Igreja na questão da campanha de desinvestimento das empresas que utilizam hidrocarbonetos fósseis em larga escala no processo produtivo e tratar da sua atuação diante das mudanças climáticas, de forma global.

“Nessa campanha, vamos tratar não apenas dos desinvestimentos institucionais da própria Igreja, que vai acelerar a política de não investir recursos próprios nesse tipo de empresa, como também vamos tratar da forma como levar essa orientação aos católicos, na condição de eventuais investidores. É uma política coerente e necessária”, complementou.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Juliano Bueno de Araujo.

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