Patricia Fachin – IHU On-Line
A denúncia de homicídio qualificado feita pelo Ministério Público Federal – MPF à Samarco por conta do desastre envolvendo o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais, evidencia e contextualiza “a relação de promiscuidade que existe entre o estado de Minas Gerais e a atividade privada das mineradoras no estado”, diz Apolo Heringer Lisboa à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone. Segundo ele, a denúncia feita pelo MPF demonstra o “passo a passo que gerou o desastre”, inclusive, casos de “negligência por parte da empresa e do Estado”, envolvendo a concessão de “ad referendum à Samarco pela Secretaria do Meio Ambiente, desrespeitando decisões legais anteriores”.
Na entrevista a seguir, Lisboa comenta e critica as relações de subordinação da Secretaria do Meio Ambiente de Minas Gerais à Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais – FIEMG. Segundo ele, a FIEMG “sempre indicou os secretários de meio ambiente” do órgão estadual como uma forma de “assegurar” que as questões ambientais não interfeririam nos projetos a serem desenvolvidos pelas empresas.
Apolo Heringer Lisboa é formado em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e é o idealizador do Projeto Manuelzão de despoluição do Rio das Velhas, em Minas Gerais. Atualmente é professor da UFMG, e consultor e conferencista. Seu site é wwww.apoloheringerlisboa.com
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que consiste a denúncia do MPF em relação ao desastre da Samarco, em Mariana, na qual foram denunciados 22 dirigentes da Samarco, da Vale, da BHP Billiton e da VOGBER?
Apolo Heringer Lisboa – A denúncia do Ministério Público foi muito importante porque contextualizou a relação de promiscuidade que existe entre o estado de Minas Gerais e a atividade privada das mineradoras no estado. Além disso, a denúncia explica o desastre que aconteceu em Mariana, quando houve o vazamento de lama de rejeitos da mineração por todo o vale do Rio Doce. Agora, está claro, na denúncia do MP, o passo a passo que gerou o desastre: houve negligência por parte da empresa e do Estado, e foi concedido ad referendum à Samarco pela Secretaria do Meio Ambiente, desrespeitando decisões legais anteriores. A denúncia, inclusive, cita nomes de pessoas que atuaram nesse processo e menciona prazos que não foram cumpridos. É uma denúncia muito séria, muito profunda.
IHU On-Line – Como o MP explica o passo a passo que culminou no desastre de Mariana?
Apolo Heringer Lisboa – Tradicionalmente, desde que foi criada a Secretaria do Meio Ambiente de Minas Gerais, a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais – FIEMG, que tem uma liderança também sobre o agronegócio na região, sempre indicou os secretários de meio ambiente. Essa é uma forma que a indústria em Minas – incluindo a mineração – tem de assegurar que não terão “problemas” na gestão ambiental. Então, sempre soubemos disso e as figuras eram conhecidas: funcionários das mineradoras, consultores da FIEMG que assumiam a Secretaria do Meio Ambiente. Sempre soubemos que a questão ambiental depende de uma política econômica; agora, se a política econômica já está dada e se já se sabe que não tem como ultrapassar esses limites, todo o trabalho realizado na área ambiental não avança e a participação nos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente e no Conselho de Recursos Hídricos vira um ritual inócuo.
A denúncia do MP está deixando bem claro que todo o trabalho que desenvolvíamos nos Conselhos estaduais não tinha como avançar, porque estava submetido à decisão de algumas pessoas. Um ex-diretor da área de meio ambiente da Samarco [Vitor Feitosa], que contribuiu para que fossem construídos os minerodutos, que levam água e minério de Minas Gerais até o Espírito Santo e o Rio de Janeiro, hoje é diretor do Conselho de Administração da Agência do Comitê de Bacia Hidrográfica de todo o Rio São Francisco, que abrange sete unidades da Federação. Essa pessoa não tem nenhuma visão ecológica, ao contrário, tem uma visão de fazer com que as empresas não paguem pelo uso da água bruta. Vitor Feitosa foi diretor de Meio Ambiente da Samarco, da Anglo American e também da MMX, do Eike Batista. Hoje ele exerce uma função na Agência de Bacias do São Francisco, que domina o comitê de bacias. Na verdade, o comitê é completamente dominado pela agência, assim como a Agência Nacional de Águas – ANA domina todos os demais comitês federais do Brasil.
A outra pessoa que está nesse jogo é o senhor Shelley de Souza Carneiro, também consultor da FIEMG. Ele foi secretário-adjunto do Meio Ambiente, em 2007, ficando no cargo por oito anos, e o papel dele era ser um funcionário da FIEMG e das grandes empresas. Para atender aos interesses das empresas, ele não respeitava as reuniões do Conselho Estadual de Política Ambiental – COPAM e nem do Conselho de Recursos Hídricos. Basta ver que foi feito um ad referendum no dia 23 de dezembro, antevéspera do Natal. Então, o doutor Shelley de Souza Carneiro e o senhor Vitor Feitosa são os cabeças desse sistema. Tem ainda uma figura que não aparece, mas que é central também, que é uma advogada, Patrícia Boson, a qual representa as empresas no Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama. Esse trio executa as políticas ambientais da indústria, desrespeitando o meio ambiente, sem nenhuma visão ecológica, apenas para não pagarem pela água bruta que a indústria, o agronegócio e a mineração utilizam.
Para termos uma ideia, o agronegócio paga um centavo por mil litros d’água, dividido por 1/40 avos, que é uma concessão feita ao agronegócio. Logo, se multiplicarmos um centavo por 1/40 avos, veremos que é um milionésimo de real por mil litros d’água.
IHU On-Line – Qual valor deveria ser pago pelo uso da água? Como é feito o cálculo?
Apolo Heringer Lisboa – No caso do Comitê do Rio São Francisco, é feito um cálculo padrão de um centavo por mil litros d’água. Mas as mineradoras não pagam pela água do mineroduto, porque dizem que a água está sempre retornando à natureza, portanto elas consideram que não estão usando a água. No entanto, estão tirando a água subterrânea e a água dos rios, e não pagam por essa utilização.
Só quem paga pela água e, mesmo assim, é um centavo por mil litros d’água, é o setor de abastecimento humano, que, pela lei, teria prioridade no uso da água. As empresas de saneamento na Bacia do São Francisco pagam quase 50% do que é recolhido nos comitês de bacia na Agência. Então, quem está pagando por essa mixaria, mesmo assim, é o consumidor doméstico, que paga quase 50% do que é arrecadado pela Agência, com base nessa tarifa praticamente simbólica. A outra parte, quase 50%, o Comitê São Francisco cobra da Agência Nacional de Água pela futura transposição do São Francisco, que também ainda não aconteceu, mas é um “cala a boca” no comitê, que ficou neutralizado. E menos de 5% é pago por todas as indústrias e por todo o agronegócio que usam a água da Bacia do São Francisco, que tem uma área de 640 mil quilômetros quadrados. Imagina o tamanho dessa área, que passa em sete Unidades da Federação.
Outro exemplo de uso indevido da água é o projeto Jaíba, um dos maiores projetos de irrigação da América Latina. Esse projeto paga 35 milhões de reais por ano à CEMIG pelo uso da energia elétrica e paga apenas 240 mil reais por ano pelo uso da água. A mesma situação acontece em Pernambuco, no projeto de irrigação Nilo Coelho, na região de Juazeiro, onde há produção de frutas, vinhos e outros produtos. O Ministério do Meio Ambiente – MMA não diz nada, ao contrário, tem uma política de amizade com as grandes lideranças ambientais que têm algumas ONGs, financia o trabalho deles e ganha a cumplicidade desses setores.
IHU On-Line – Existe uma legislação dos Comitês que determina quais Serviços Ambientais precisam ser pagos?
Apolo Heringer Lisboa – A legislação determina que haja cobrança, ou seja, se abre essa possibilidade, mas não se estipula um valor; essa é uma decisão do Comitê.
IHU On-Line – A quais crimes ambientais e penais a Samarco terá que responder?
Apolo Heringer Lisboa – A empresa vai responder por homicídio qualificado pela morte de quase 20 pessoas. O acidente aconteceu durante o dia, mas se tivesse acontecido à noite, o desastre teria sido muito maior, porque no local do acidente existia um povoado. A empresa também vai responder pela destruição de monumentos históricos, porque em Bento Rodrigues existia um povoado antigo, da idade de Ouro Preto e Mariana. Abaixo de Mariana existe a usina de Candonga, que está acumulando grande parte da lama. Com os próximos períodos de chuva previstos, a preocupação do Ibama é de que pode haver uma ruptura de Candonga. Até hoje a Samarco não realizou nada de fundamental. Foi ordenado que ela retirasse a lama de Candonga, mas isso não foi feito.
IHU On-Line – A Samarco justifica a não realização da obra?
Apolo Lisboa – Alega dificuldade técnica. A Samarco e a Vale estão agindo de uma maneira negligente de propósito, porque as empresas não se importam de pagar a multa se o valor dela é inferior ao ganho. Portanto, elas agem de uma maneira cínica e perversa, porque preferem pagar a multa, dado que esse valor é muito menor do que teriam que pagar para fazer uma obra e retirar a lama de Candonga.
O governo federal aplicou uma multa à Samarco de aproximadamente 20 bilhões de reais. À época, Luís Inácio Adams, que era advogado geral da União, esteve na região com o governador Pimentel e com os diretores da Samarco, e eles decidiram que o valor da multa ficaria a cargo da própria Samarco, que aplicaria esse valor para recuperar os danos ambientais por meio da criação de uma Fundação da Samarco. Então, a Fundação está com esse valor para, ela própria, gerir a aplicação da multa. Mas isso não implica um prazo, porque a empresa vai adiando e sabe que sempre terá lucro em não cumprir o que é cobrado.
IHU On-Line – Qual é, em geral, a situação dos atingidos pelo desastre em Mariana? Eles foram ressarcidos?
Apolo Heringer Lisboa – Até agora a Samarco está dando cesta básica para algumas famílias e está negociando a compra de um terreno que os moradores escolheram, no qual será reconstruído o povoado onde eles moravam. Após meses de debate, foi escolhida a área, mas a empresa ainda está negociando a compra do terreno.
Essas empresas não respeitam o licenciamento ambiental e é por isso que o MP está pegando pesado com elas, mas mesmo assim parece que elas têm um poder tal, que não existe um governo nem uma lei que consiga enquadrá-las. Como a maior fonte de renda de Minas Gerais é oriunda da mineração, os governadores não querem que a mineração pare, e quem decide sobre isso é o governo federal. Diante das irregularidades, o MP tem o poder de multar, de acusar, mas ninguém foi preso, e está comprovado que houve corrupção, que muitos políticos estavam beneficiando as empresas na construção de minerodutos, tudo à revelia dos técnicos. Isso configura um caso grave de formação de quadrilha, mas ninguém foi preso, e aqui não existe um Sérgio Moro para agir no caso da mineração, por isso que a situação continua desse jeito.
IHU On-Line – Qual é a atual situação do Rio Doce?
Apolo Heringer Lisboa – Nada foi feito no Rio Doce, que não seja pela própria natureza. Foi repassado um valor de 5 milhões de reais para o Sebastião Salgado, que aproveitou seu nome para pegar esse dinheiro para a sua ONG, a qual, por sua vez, está recuperando a propriedade privada da sua família, que está numa região que não tem mais produção. Foi dito que ele iria recuperar o Rio Doce, mas nunca mais se ouviu falar nisso.
A experiência na fazenda do Sebastião Salgado não é replicável para toda a bacia do Rio Doce, porque na bacia tem plantação de canavial e assoreamento. A conservação da bacia do Rio Doce passa por uma economia sustentável e não por criar um parque na fazenda dele. E essa economia sustentável passa por subordinar os métodos da produção econômica aos limites ecológicos. Não se pode ter monocultura extensiva numa cultura sustentável, porque ela é insustentável por definição. A grande questão é: O Brasil vai assumir uma política econômica sustentável ecossistêmica ou vai ficar fazendo um discurso da sustentabilidade, que não leva a nada?
Meio ambiente virou uma equação química de carbono, e não se discute mudar o modelo econômico. Essa é uma questão que as ONGs ambientalistas não discutem. Muitas ONGs estão fazendo o maior estelionato ambiental, usando o nome do meio ambiente para fazer carreira política e respaldar a política do PMDB, do PSDB e do PT. É fundamental que haja uma proposta econômica para o Brasil, que seja sustentavelmente ecossistêmica.