Por Luciano Bernardi
Na foz do rio São Francisco em Sergipe, Sergipanos/as , Baianos/as, e de outros estados limítrofes, ligados/as ao trabalho das Pastorais do campo, unindo Conselho Pastoral dos pescadores (CPP), Caritas Regional NE III, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conselho Indigenista Missionário (CIMI) foram acolhidos. num encontro inédito, pelo Movimento dos pescadores e pela Articulação Francisco Vivo e outros Movimentos Sociais de Sergipe, como o MPA (Movimento Pequenos Agricultores) e o “Levante da Juventude”…, na Comunidade de Resina (município de Brejo Grande – SE), nos dias de 28 a 30 de outubro de 2016. Partilhamos aqui, algumas centelhas das luzes que vimos iluminar a noite, neste “momento escuro” imposto ao nosso país e ao seu povo e às suas classes populares.
Com os agentes das pastorais do campo, misturaram-se homens, mulheres, jovens e crianças das comunidades tradicionais de Sergipe. Éramos cerca de 60 pessoas.
O povoado de Resina (município de Brejo Grande -SE), situado num lugar com seus pescadores e pescadoras, camponeses e artesãos nascidos e criados aí, foi o anfitrião que acolheu a todos de braços abertos, como verdadeiros parentes de longa data.
Pelos sinais que vimos e experimentamos, Resina e suas comunidades próximas estão imbuídas da vivencia do chamado “bem viver e da terra sem males”. Mesmo sem utilizar estas expressões já consagradas por antropólogos e teólogos, são essas as duas grandes “utopias indígenas”, respectivamente, das regiões andinas (Bolívia e Peru) e da nossa e Terra/Continente chamado Brasil.
Mesmo obrigadas a conduzir uma vida dura e preocupada pelo ganha pão de cada dia e pelas ameaças dos empreendimentos capitalistas de turismo consumista que, ainda hoje, não deixam de persegui-las, querendo expulsá-las de lá, para construir seus resorts de massa (estruturas moderna que propagandeia hospedagem, recreação e divertimento, para pessoas em gozo de férias de luxo), essas comunidades resistem e, sobretudo, querem projetar e construir seu futuro com autonomia.
Elas guardam, na sua cultura pesqueira, uma grande riqueza de tradições culturais e vivem relações humanas tão profundas, que se transformam, com a maior naturalidade, silenciosa, discreta mas alegre, em solidariedade e partilha gratificantes; a gente chega a se perguntar se não serão estas comunidades a nos convencer a mudar cabeça e coração para uma maneira de viver humanizada e integrada com o ambiente paradisíaco que elas cuidam habitando-o como sua casa comum e servindo-se dele para alimentar sadiamente suas vidas e a vida de seus filhos. Como já acenado, estas impressões revelam que, neste litoral sergipano e em outros análogos, o “bom viver” dos indígenas andinos e da “terra sem males” dos Guaranis, ainda são uma realidade e um projeto de vida.
Contrariamente à primeira onda evangelizadora, o povo morador deste Sergipe que não esqueceu a memória do cativeiro dos negros e indígenas, hoje, desde os tempos de dom José Brandão, bispo missionário e corajoso da vizinha Propriá (nos anos 80), sentiu e sente que pode contar com vários apoios das Pastorais do campo, em especial dos Pescadores, e da organização da Caritas representada ali pela presença e ação animadora de padre Isaias e de outros animadores/as. Cabem-nos, também fazer memória do fato que este povo já contou até duas décadas atrás, – e a saudade ainda vem a tona – com a CPT de Bahia e Sergipe que estava enraizada em Propriá desenvolvendo seu serviço solidário.
– e a saudade ainda vem à tona –
Nestes dias do intercâmbio, fluíram diálogos acalorados com e entre os e as representantes das comunidades que seu coagulam nas margens do rio São Francisco. Os diálogos em grupos organizados que trocaram ideias e experiências de iniciativas libertadoras e cidadãs. Todas as comunidades contaram sua história de resistência e de luta corajosa para não perder este paraíso doado pelo Criador e, sobretudo não se desviar de um modelo de vida e de bem estar que não pode e não poderá ser, jamais, fruto da espoliação e destruição das relações humanas e com a natureza exuberante em que nasceram e se criaram.
Todos os presentes sentiram que, nas últimas décadas, estão sendo atingidos pelo furacão do “olho gordo” dos empreendimentos capitalistas turísticos – industriais a fim de lucro para poucos. Na ocasião deste intercambio que foi pontual, mas poderá se tornar um inicio de uma formação permanente, aqui e em outros lugares, veio natural um intenso programa de formação recíproca, na base das rodas de conversas entre os grupos que se formaram. Com um roteiro preparado anteriormente, trocaram-se histórias reais, ideias e experiências sobre: terra, água, pesca produção, ecossistemas, cultura, lazer, identidade, modo de viver, luta e resistência no enfrentamento dos conflitos, moradia, educação, saúde e, como numa síntese total, Rio São Francisco, o Velho Chico que alargou seus braços para nos acolher a todos/as. Cansado, mas alegre, ele continua nesta sua foz aqui, desaguando no mar. Se os empreendimentos humanos capitalistas, travestidos de falso progresso o permitirem.
Apertou o coração de todos, sermos informados pelos pescadores e pescadoras que já há momentos em que a água salgada do mar chega até 50 km rio adentro e que, na maré baixa, permanece nas lagoas, onde seu sal prejudica os peixes de água doce e o cultivo de um arroz que era de primeira e agora fica enfraquecido até morrer.
Quem, vai, como quem escreve estas anotações, neste local, pela primeira vez, sente a atração da natureza que o obriga a momentos de silenciosa contemplação, de olhos abertos. Aqui o vento do Espírito sopra sempre na direção certa. Todos sentiam isso durante as chamadas “místicas” que se celebraram neste encontro. A eucaristia, por exemplo, presidida pelo bispo de Propriá, dom Mario Rizieri que fez questão de estar presente e de parabenizar a todos, propiciou a participação de muitos que, nas missas oficiais, nem sonham de fazer ouvir sua voz : crianças que levaram ofertas, adolescentes que dançaram músicas afro com paixão e arte etc dentro de um clima de autenticidade sóbria e natural em que todos se sentiam a vontade em fazer expandir seu coração como quando Rosimeire líder popular do quilombo Rio dos Macacos da Bahia, humilhada e espancada, várias vezes, pela Marinha de Guerra, informou que já escreveu para papa Francisco e pediu a dom Maria sua intervenção contra os horrores que a Marinha continua fazendo, construindo o muro para impedir acesso à água da comunidade.
Muito forte também o momento em que homens, mulheres, jovens e crianças presentes renovaram seu compromisso com o Rio São Francisco. Às 5.30 da manhã, pescadores e pescadores nos levaram, em 7 barcos, ao ponto crucial da foz onde a água do Velho Chico tem dificuldade de irromper no grande oceano. O gole d’água oferecido ao rio e a prece que foi levantada como um grito ao céu, recolheu a energia dos ancestrais, dos mortos pela violência racista e escravagista e dos jovens, e fez voltar todos e todas, com força redobrada para continuar luta. Isso ressoou no grito “mboooraaa” que foi como dizer: na luta! Sem temer e com esperança!
Esta era a mesma força que era infundida em todos pelos alimentos sadios e generosos, preparados e oferecidos com alegria pela equipe local das pescadoras que se esmeraram em temperos apreciadíssimos… Comer, brincando e se alegrar por estar juntos! Isso também é início da terra sem male e bem viver!
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MENSAGEM DOS PARTICIPANTES: Carta de Resina
Ressoou entre nós, na região da Foz do Rio São Francisco, lugar por onde passaram inúmeros negros acorrentados pela escravidão este grito popular ´MBOOORA GEEENTE! Este foi o grito, que marcou a resistência do povo deste lugar, RESINA, situado no Território Quilombola Brejão do Negros na Foz do Velho Chico que nos hospedou nos dias 28 a 30 de outubro de 2016. Éramos cerca de 60 pessoas, dos Movimentos Sociais, Pastorais Sociais do Campo, da Bahia, Alagoas e Sergipe e Povos e Comunidades Tradicionais (Indígenas, Quilombolas, Camponeses, Pescadores e Pescadoras Artesanais, Marisqueiras, Ribeirinhos). Neste intercâmbio vivenciamos dores e alegrias e dividimos publicamente esta mensagem de resistência, esperança, força e fé.
Num contexto de graves consequências provocados pelo golpe no Brasil, denunciamos os entraves para impedir a demarcação dos territórios tradicionais, indígenas, quilombolas, pesqueiros e camponeses como sinais de ditadura e violência. Avança o agro e hidro negócio, a criminalização dos movimentos sociais, bem como, são constituídos os PECs com mudanças constitucionais de morte, que visam intensificar a fragilidade social dos Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil. Contudo, aqui reafirmamos nossas esperanças, nossas identidades que historicamente resistem aos interesses do capital e às artimanhas da mídia golpista e burguesa. Elas continuam aliadas e porta vozes dos interesses de um modelo de desenvolvimento predador, concentrador de terra, água e poder.
Nesta esperança, mesmo num cenário de desinteresse de reconhecer, legalizar e promover a vida nestes territórios, desta irrupção ditatorial que enfraquece nossa democracia, de ameaças de direitos, não queremos e não podemos renunciar aos sonhos dos nossos ancestrais de proteger os nossos territórios e construir um bom viver numa terra sem males. Herdamos esta visão dos protagonistas que estão sendo vitimados por autêntico genocídio: indígenas, quilombolas, pescadores, ribeirinhos e camponeses dão uma contribuição de cuidados com a natureza, seu modo de vida tradicional que se contrapõe ao capitalismo voraz e desumano.
Convocamos todos à Resistência, intensificando o trabalho de base como construção direta da democracia participativa do poder popular, do uso criativo dos instrumentos de comunicação alternativos para denunciar a morte e celebrar a vida, da formação e informação crítica, libertadora e das garantias dos direitos.
Que a seiva da Natureza e da nossa fé traga a força para as crianças, jovens, mulheres, velhos e adultos, desde o caminho de Abrão até o ânimo dos cultos dos nossos ancestrais – do batuque Africano ao toque do Maracá; que se preserve em nós, a coragem de lutar!
Participantes do primeiro intercambio de comunidades tradicionais em Resina – Sergipe
Foz do Rio São Francisco
28-30 de outubro de 2016
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Haroldo Heleno.