Donald Trump travestiu-se de ”salvador da pátria” na crise pela qual passa a democracia representativa tradicional, que facilita a vida dos autoproclamados ”gestores” que fazem política negando a política. Surfou entre os órfãos da globalização e do Consenso de Washington, que amam comprar quinquilharias importadas, mas têm saudades de seu emprego – exportado para a periferia do mundo. Encontrou espaço entre os mais ricos e brancos que clamam pelos valores tradicionais e os preconceitos de uma América Profunda por eles criada, enquanto percebem que vem se tornando minoria diante de negros e hispânicos.
Grupos sociais se viram acuados diante do discurso de que muito do que lhes foi ensinado no que diz respeito aos seus direitos, deveres e limites estava errado. Acreditam que o mundo passou por uma revisão politicamente correta recentemente e, agora, ações comuns do seu cotidiano deveriam ser motivo de vergonha. Ou seja, a visão de mundo sobre a qual fundamentaram sua vida agora, sob um novo paradigma, precisa ser revista para acomodar outros atores antes excluídos.
Ao mesmo tempo, milhões de operários norte-americanos não se sentiram beneficiados pelas políticas liberais dos últimos 25 anos. Viram as economias crescerem, ricos ficarem mais ricos e sua parte de felicidade da festa do capital nunca vir do tamanho prometido. Pelo contrário, trabalhadores perderam empregos e viram as fábricas em que batiam ponto serem transferidas para outros países e cidades inteiras transformarem-se em regiões fantasmas.
Com isso, grupos entre ricos e pobres passaram a acreditar fácil no discurso que culpa o ”outro”, o ”de fora”, o ”diferente”, por isso. E o desconhecimento do outro, tornou-se medo, que deságuou em ódio.
Mas não é só isso. Trump sabe, como poucos, se comunicar.
Alguns discursos de Trump eram pensados para serem imediatamente desmembrados em tuítes. Cada linha, uma mensagem com menos de 140 caracteres, de pensamento raso, mas completo, que era disparada e viralizava nas redes sociais.
Escrevi aqui, no começo do ano passado, que ele era um sério candidato à Casa Branca. Na época, muitos amigos disseram que eu estava alucinando.
Trump, pertencente à fauna novaiorquina, e já tendo, inclusive, sido próximo de figuras importantes do partido democrata, como o casal Hillary e Bill Clinton, tem uma cabeça mais plural do que o pessoal do Tea Party, a ala mais conservadora do Partido Republicano. Donald é tosco. Mas menos do que seu ”personagem” Trump quis aparentar ser.
Do meu ponto de vista, ele é pragmático, não dogmático. Fez de tudo para chegar lá, dizendo o que seus eleitores queriam ouvir e não necessariamente o que ele pensa – e olha que ele pensa muita porcaria.
Vale lembrar que, na internet, ”verdade” é tudo aquilo com a qual eu concordo e ”mentira” e tudo aquilo do qual eu discordo. Deve ser delicioso concordar com um candidato que pensa exatamente como a gente, que parece tirar as palavras da nossa boca, mesmo quando essas palavras vem carregadas de preconceito, não?
Pessoas como Trump falam o que falam porque sabem que muita gente irá aplaudi-los por isso. Contam com recursos para se fazerem conhecidos e ventilar suas ideias. Tem o aparente frescor de um produto novo – mesmo que sua narrativa esteja no poder desde que os brancos chegaram ao continente americano. Sabem conversar com um público que quer saídas rápidas e fáceis para seus problemas econômicos e que precisam de alguém que lhes entregue uma narrativa consistente para poderem tocar suas vidas – narrativa que os Partidos Republicano e Democrata solaparam em oferecer.
Para quem duvida do papel de candidatos com projeção midiática, vale lembrar que os deputados federais mais votados na última eleição das duas maiores cidades brasileiras fizeram carreira no rádio ou na TV ou entendiam muito bem a lógica da cobertura política. E, produzindo factóides, surfaram nessa lógica, mantendo-se constantemente em evidência e se reelegeram. Os três primeiros colocados para a eleição de deputado federal em São Paulo – Celso Russomanno (7,26% do total de votos), Tiririca (4,84%) e Marco Feliciano (1,90%) – bem como os três do Rio de Janeiro – Jair Bolsonaro (6,10%), Clarissa Garotinho (4,40%) e Eduardo Cunha (3,06%) – têm uma característica em comum: sabem se beneficiar da exposição midiática.
O mesmo vale para João Dória e Marcelo Crivella, prefeitos recentemente eleitos de São Paulo e Rio de Janeiro, que dominam o microfone e o púlpito televisivo.
Não tenho dúvidas que ele não cumprirá boa parte do que prometeu. Por ser impossível. Pelo sistema de pesos e contrapesos da política norte-americana não permitir. Pela dificuldade de implantar determinadas bandeiras para trazer empregos ”de volta” (hoje, a saúde econômica da China depende da dos EUA e vice-versa). Pela reação de grupos sociais que podem ir às ruas.
Claro que continuará causando estragos e, simbolicamente, representando uma espécie de salvo-conduto para que um bando de malucos soltos por aí, não só nos Estados Unidos, mas ao redor do planeta, aprofundem a ignorância humana.
A meu ver, ele fez um discurso para ganhar, não para governar. E essa realidade vai colocar à prova, diariamente, sua capacidade como comunicador, bem como a paciência de seus eleitores, dos não-eleitores e do resto do mundo.