Por Weez, no Voyager
Nos últimos 40 anos, os brasileiros assistiram ao crescimento exponencial do número de protestantes de matriz pentecostal no país. São 18% de pentecostais entre a população nacional segundo o Datafolha. Mas afinal, o que há nessa religião que atrai tanta gente num país marcado pela gritante desigualdade econômica e pela violência social diária?
A resposta está exatamente na pergunta. O Brasil é o décimo quinto país mais desigual do mundo, segundo o Banco Mundial. Também é o décimo quinto com maior número de homicídios por 100 mil habitantes. Além disso, 4 em 10 domicílios não possuem saneamento básico, sendo que a coleta de esgoto deixa de estar presente para metade da população do país. 6% da população vive em moradias subnormais (nome fofinho para favela) e 25% sobrevive de trabalho informal. Dos que possuem carteira assinada, grande parte concentra-se em empregos de até dois salários-mínimos e alta rotatividade, ou seja, contrata-se e despede-se com extrema facilidade no Brasil. Ser pobre é triste, mas ser pobre no Brasil é o inferno.
Os frágeis socialmente sob a vigília do Espírito Santo
E o que tudo isso tem a ver com o Espírito Santo? Tudo. Na crença pentecostal da prosperidade, o Espírito Santo é a manifestação de Deus na vida diária das pessoas. O Espírito Santo tem poder no dia a dia daquela que é chamada de “ralé”. O Espírito Santo ajuda a conseguir um emprego, o ES ajuda casais em crise a se reconciliarem, o ES ajuda o doente sem convênio médico a se curar, o ES ajuda o filho da pobre a ir bem na escola e no ENEM, o ES ajuda o pobre a não levar um tiro enquanto volta para casa do trabalho, etc.
Contudo, o Espírito Santo pede em troca que o fiel seja diligente na sua vida diária. Ele deve zelar pela moralidade. Deve pregar a palavra. Deve, em resumo, respeitar o contrato que estabeleceu com a divindade. “Faça sua parte, que eu faço a minha”, assim diz o ES ao fiel. É uma relação contratual e de lealdade.
Além disso, a Igreja Evangélica cria relações de ajuda mútua aos que pouco têm. Existe uma comunidade religiosa que presta auxílios de todo tipo aos que dela fazem parte. Ninguém se converte ao pentecostalismosó porque é ingênuo. Existem relações concretas de benefício mútuo e reciprocidade. Para o fiel, dar 10% do seu parco salário é um preço pequeno a se pagar para se sentir seguro dentro da fraternidade pentecostal. Lembrem-se: o pobre no Brasil é esculachadodiariamente. Todo dia, seu comportamento e seus gostos são apresentados como inferiores. Sua aparência é motivo de chacota na mídia. A cor da maioria dos pobres, negra ou parda, é objeto de discriminação diária. A classe média brasileira apoia o extermínio de uma gente que ela imagina não ter nem o direito de viver. Contudo, na igreja, o pobre pode finalmente escutar que Deus tem um plano para ele, que ele não é um lixo. Pode finalmente sentir-se parte de algo importante, maior do que ele, maior do que sua miséria diária. Alguém que não experimenta as privações do dia a dia pode sentir-se confortável para falar que isso é só ilusão, que é melhor encarar o mundo como ele é. Mas isso se chama falta de empatia cognitiva, ou seja, a incapacidade de entender o que o outro sente. E também falta de empatia afetiva, não ser capaz de se colocar no lugar do outro.
O Espírito Santo como o escudo contra um mundo hostil
O Brasil é um país marcado pelas chamadas moralidades de rapinagem e sobrevivência. Os ricos brasileiros, os banqueiros, latifundiários, grandes comerciantes e industriais são guiados por um comportamento do “preciso ganhar todo o lucro que posso hoje”. Não possuem um projeto de desenvolvimento nacional. Getúlio Vargas reclamava que não era ouvido ao dizer aos empresários que as leis trabalhistas eram necessárias para que não houvesse uma Revolução socialista no país. “Quero salvar seus pescoços da multidão, mas eles não entendem”, reclamava o velho ditador trabalhista à sua filha Alzira.
Essa moralidade de rapinagem da oligarquia brasileira não é exclusiva da mesma. Ela, na verdade, faz parte da necessidade capitalista de fazer os lucros crescerem sempre. Todavia, entre os herdeiros da exploração do pau-brasil, café, cana-de-açúcar, tabaco, etc; ou seja, entre os herdeiros dos extrativistas escravocratas, essa visão de que o trabalhador é apenas um pedaço de carne feito para que o lucro cresça mais e mais se apresenta com muito mais força do que nos países europeus, por exemplo. Basicamente, a oligarquia brasileira nunca se importou com o desenvolvimento do país.
Para lidar com essa elite abutre, os pobres brasileiros desenvolveram o que eu chamo de moralidade de sobrevivência. Deixando claro que não concordo com a visão de que os brasileiros teriam uma propensão maior à pessoalidade e a entregar-se aos afetos e emoções em comparação a anglo-saxões e germânicos (sendo esses mais propensos à impessoalidade e à disciplina). Mas penso que haveria no Brasil uma moralidade de sobrevivência, a qual seria uma reação ao total descaso com que a maioria da população sempre foi tratada pelo Poder Público. Na época colonial, o poder pessoal do senhor de engenho era praticamente o Poder Público. Ele mandava e desmandava. Ele rapinava e tratava todos à sua volta como propriedade pessoal.
Mas ora, os países germânicos e anglo-saxões também experimentaram essa personalização do que é público. Quase todos experimentaram em graus variados ou o poder absoluto e patrimonialista dos monarcas, ou o poder rapinador do burguês sem escrúpulos e amparado pelas forças estatais, ou o voto de cabresto, ou a instituição da escravidão e servidão pessoais, etc. Claro, todos passaram por processos modernizadores, mas o Brasil também passou ao longo do século XX.
Pode-se argumentar que o processo modernizador aconteceu com antecedência nos países centrais. Mas, como mostra Ha-Joon Chang, muitas das instituições modernas das nações centrais – como burocracia impessoal, voto secreto e universal, direito civil moderno – só se cristalizaram no começo do século XX na Europa e Estados Unidos. Voto de cabresto era comum em diversos países da Europa Ocidental, e mesmo nos EUA, no começo do século XX, contemporâneo ao voto de cabresto da República Velha no Brasil. A questão é que enquanto o Estado avançou nesses países para proteger o cidadão comum de forma ampla, fornecendo políticas de welfare, no Brasil e na América Latina – apesar de avanços ao longo do século XX – o Estado de Bem-Estar Social sempre se apresentou de maneira deficiente e deficitária ao povo pobre. Ora essa, a um povo que não dispõe de saúde, educação, saneamento, emprego, proteção jurídica, etc. de qualidade, só resta apelar às relações pessoais ou, como acontece hoje em dia, ao Espírito Santo. O “você sabe com quem está falando?” personalista e tão utilizado no Brasil pelos poderosos, não aconteceria com tanta frequência se o pobre soubesse que dispõe de proteção jurídica de qualidade. Mas é ingenuidade imaginar que nos EUA o “você sabe com quem está falando” não ocorra e que isso é comum no Brasil, por conta de algum tipo de deficiência atávica que herdamos da nossa “inferior” cultura latina ou por sermos biologicamente inferiores e mais propensos ao sentimentalismo. Se o pobre tivesse acesso à ampla proteção civil, então com certeza o “quem você pensa que é?” seria muito mais [in]comum no Brasil. Logo, se tivesse um padrão de vida de qualidade, provavelmente o Espírito Santo não teria tanto poder.
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Para saber mais
• SOUZA, Jessé de – A Ralé Brasileira.
• Negro Belchior – O que a Esquerda Deveria Aprender com os Evangélicos
• Holanda, S. Buarque – Raízes do Brasil (O Homem Cordial)