Secundaristas inauguram novas práticas políticas. Entrevista especial com Rosemary Segurado

Patricia Fachin – IHU On-Line

A ocupação de escolas no país tem sido inspirada na ideia de que “o público não é do Estado”, ao contrário, “o público é da sociedade” e, nessa perspectiva, a escola é vista como um espaço da sociedade, diz Rosemary Segurado, cientista política, que tem acompanhado algumas ocupações nas escolas paulistas. “A ocupação dos secundaristas foi uma novidade nas escolas. Lembro de uma frase, em uma das escolas, no ano passado, que dizia: ‘Ocupamos o que é nosso’. (…) E, ao ocupar esses espaços, o que vemos é a sociedade se colocando no processo de gestão, no processo de cuidado, de trazer esse espaço como um espaço que deve ser cuidado pela sociedade”, avalia.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Rosemary comenta que as manifestações demonstram a “rejeição” dos estudantes e dos diversos movimentos sociais em relação ao atual modelo político representativo. “Esse é um dos dramas dos processos globais, porque esse modelo de representação já esgotou suas possibilidades de atuação; ele já teve seu papel, sua importância, mas hoje é insuficiente, porque vemos, cada vez mais, um abismo entre representantes e representados, não só no parlamento, não só nos governos, mas em muitas entidades, como nos sindicatos, nos movimentos estudantis, nos movimentos sociais tradicionais”, frisa.

Para Rosemary, as manifestações dos secundaristas podem ser compreendidas como “novas práticas políticas”, que querem “romper com a imagem do movimento que tem um presidente, um vice, um secretário geral e um tesoureiro. Precisamos compartilhar mais as decisões, o desenvolvimento, compartilhar mais as formas de cooperação na organização das lutas sociais. Essas práticas da ocupação são formas de criar redes mais amplas de participação, envolver mais os diversos segmentos e os diversos setores da sociedade. É muito interessante pensarmos que ocupamos o que é nosso: isso é meu porque sou cidadão, porque contribuo com impostos, a escola pública é tão minha quanto de qualquer outra pessoa da sociedade. É uma consciência política recente, nova”, ressalta.

Rosemary Segurado é graduada, mestra e doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professora do Departamento de Política e do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da mesma universidade.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como está analisando o atual momento político brasileiro e por quais razões chegou-se a esse momento de crise?

Rosemary Segurado – Primeiro, não dá para descontextualizar a situação brasileira da de outras partes do mundo. Vimos, recentemente, o resultado das eleições americanas, e ainda estamos todos perplexos pelo crescimento dessa onda conservadora, que observamos aqui e em outros lugares – estou mencionando os Estados Unidos, mas também poderia falar de países europeus. É um momento muito delicado em que vemos que essas forças conservadoras e, inclusive, de certa forma, até reacionárias, vêm ganhando corpo na sociedade. É importante que nós, que defendemos princípios democráticos e progressistas, possamos discutir com a população, em nossos locais de trabalho, escolas e universidades, o significado disso, que pode causar um retrocesso muito grande na nossa democracia.

IHU On-Line – A que atribui o crescimento do que chama de forças conservadoras? O que isso diz sobre a atuação política da esquerda no Brasil?

Rosemary Segurado – No caso brasileiro, esse avanço faz parte de uma cultura política muito arraigada em nosso país. Se formos olhar, verificaremos que temos períodos democráticos muito curtos na nossa história, e o que estamos vivendo nos últimos 30 e poucos anos é o mais longo. Claro que a mudança de cultura política demora muito em uma sociedade, particularmente numa sociedade em que a questão escravocrata e a questão racial são muito fortes até hoje. Sabemos, por exemplo, que a população negra, em nosso país, ainda enfrenta desigualdades muito grandes.

Essas questões relacionadas à cultura política nos fazem pensar que as forças progressistas, especificamente as forças de esquerda, precisam retomar o diálogo com a sociedade, porque parece que deixaram isso de lado nos últimos anos. O pensamento de esquerda e o pensamento crítico devem ser redobrados para que possamos evitar que cenários ainda mais complicados do que esse do golpe, que vivemos recentemente, se repitam no nosso país. Quem defende a democracia tem o dever de lutar para que isso não aconteça.

IHU On-Line – Como a senhora está acompanhando o movimento das ocupações dos secundaristas? Em que contexto político e social essas manifestações emergem no país?

Rosemary Segurado – As ocupações começaram a ocorrer no ano passado e estão comemorando um ano. Os jovens secundaristas adotaram a tática da ocupação dos espaços públicos como uma tática que pode fazer parte do movimento social. É interessante que o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST fazem isso há bastante tempo, e nós aprendemos, de certa forma, com eles.

De todo modo, a ocupação dos secundaristas foi uma novidade nas escolas. Lembro de uma frase, em uma das escolas, no ano passado, que dizia: “Ocupamos o que é nosso”. Então, eles têm essa ideia de que o público não é do Estado; o público é da sociedade, a escola pública e a praça pública são espaços da sociedade. E, ao ocupar esses espaços, o que vemos é a sociedade se colocando no processo de gestão, no processo de cuidado, de trazer esse espaço como um espaço que deve ser cuidado pela sociedade. Além disso, os estudantes estão protestando contra a PEC 241, que agora está no Senado sob o número 55, que congela os investimentos não só para educação, mas para as outras áreas sociais. Com essas manifestações, os estudantes estão querendo dizer que não aceitam isso, e que a sociedade não pode aceitar isso que está sendo imposto a ela. No caso específico das ocupações das escolas públicas, os jovens também protestam contra a medida provisória de Reforma do Ensino Médio, que foi lançada sem haver uma discussão com a sociedade, com professores e com estudantes. Logo, parece uma forma muito autoritária, da mesma maneira como havia sido colocada no estado de São Paulo a reorganização das escolas, em que 94 escolas seriam fechadas e os estudantes seriam deslocados, gerando um impacto familiar muito grande naquele momento.

É um campo de disputa que está colocado aí. É importante a sociedade ver que este movimento é um movimento para que consigamos defender, no caso, a educação pública de qualidade e um Estado que aplique verbas para aqueles que mais necessitam.

IHU On-Line – Estabelece alguma relação entre as ocupações das escolas e Junho de 2013?

Rosemary Segurado – É curioso porque as Jornadas de Junho de 2013 estavam inseridas em um ciclo global de manifestações: 15M na Espanha, Primavera Árabe em vários países do Oriente Médio, Occupy Wall Street nos Estados Unidos. Isto é, são formas de protestos que vão ocupar o espaço público para expressar um descontentamento com os sistemas políticos. Portanto, o que estamos vendo é um esgotamento de uma democracia representativa, e isso não é só uma característica do Brasil, nós estamos vendo isso em outras partes também. Esses movimentos criticam a estrutura extremamente verticalizada dos partidos políticos, que são cheios de “caciques” e “donos”. A sociedade está dizendo que esse modelo se esgotou e que ele não serve mais.

Ouço muita gente dizendo que as Jornadas de Junho colocaram os movimentos conservadores e de direita na rua. Quando movimentos progressistas e de esquerda estão na rua, a direita também está e nós vimos isso em várias partes. Então, é fundamental que as forças progressistas e as forças de esquerda também olhem e pensem que têm de estar ali, disputando esse espaço, fundamentando nossas ideias, fundamentando a defesa do que acreditamos. Alguns desses setores deixaram isso de lado ou não fizeram o enfrentamento necessário, e essas forças cresceram, e cresceram também no Brasil – temos que dizer – com forte apoio dos meios de comunicação, que realmente têm dado uma demonstração de falta de pluralismo. Apesar disso, muitos coletivos de ação política, de ação cultural foram criados depois das Jornadas de Junho, mostrando uma sociedade se empoderando também por esse outro lado.

IHU On-Line – A partir da sua experiência ao acompanhar as ocupações dos secundaristas, pode nos descrever como as ocupações são realizadas e o que é feito durante as ocupações?

Rosemary Segurado – Há muitos anos olhávamos para escola pública como aquele lugar a se evitar, porque é um lugar que só tem violência, onde agridem os professores e depredam o patrimônio público. E, aos poucos, a classe média foi deixando e abandonando esse lugar. Mas as ocupações nos proporcionaram, inclusive para nós da sociedade civil, também como mães e como cidadãs, olhar essa juventude e ver o seu enorme potencial. Por exemplo, a forma como os jovens se organizaram: eles organizaram uma assembleia na escola, discutiram os acontecimentos, falaram da medida governamental em relação à educação, se posicionaram contrários a ela e a partir daí fizeram várias manifestações.

A ocupação foi um último recurso para se tentar um processo de negociação. Em São Paulo, particularmente, tivemos várias manifestações de ruas, manifestações inclusive espontâneas, com famílias falando que a escola do seu filho iria fechar. Então, famílias iam para as ruas, se organizavam no bairro. Os estudantes foram vendo esse movimento e foram vendo como poderiam se organizar. Foi então que realizaram uma assembleia e a escola foi ocupada. Quem quer ficar na ocupação, fica, quem não quer, sai e todos são bem-vindos nesse processo. Essa foi a primeira etapa. Após o término da assembleia, eles organizaram comissões para pensar o dia a dia das ocupações. Então, existe a comissão de cozinha, que decide quem vai cozinhar, a comissão de limpeza, que cuida da limpeza dos banheiros, por exemplo, a comissão de informação, que conversa com a imprensa e com a sociedade, a comissão de segurança etc.

Eles também organizam oficinas, discutem o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, quais são seus direitos. Ou seja, eles passaram a gerir a escola e a demonstrar que também podem participar da gestão; deram uma aula de cidadania para toda a sociedade. Toda essa organização foi baseada no manual das ocupações que ocorreram em 2006 e 2011 no Chile. Esse manual foi trazido por estudantes e adaptado, obviamente, à realidade brasileira.

IHU On-Line – Como o manual é elaborado? Ele tem apenas orientações práticas ou fundamentações teóricas também?

Rosemary Segurado – Ele é dividido em algumas partes, e tem especialmente um plano de ação e de organização da ocupação. No plano de ação, a definição da assembleia aparece como o ato mais importante da ocupação. Eles discutem, por exemplo, “por que vamos ocupar?”, “o que está em jogo?”, “o que significa a PEC 55 para educação?”, “o que significa a reorganização do Ensino Médio em São Paulo?”. Além disso, organizam atividades na escola, que vão desde atividades recreativas até de formação política: discutem a história da política e as propostas de educação existentes no país. Depois da organização da assembleia, eles definem, basicamente, cinco comissões. Uma delas é a comissão responsável pela comida, que envolve desde a organização do processo de alimentação, até a organização de coleta do que está faltando nas redes de apoio. Essa comissão organizou a coleta de doações de alimentos e de água, para que eles não passassem nenhuma privação alimentar. Outra comissão é a de segurança, que faz ronda 24 horas na escola.

Em algumas escolas ocupadas, houve ameaças das forças policiais para entrarem na escola, enquanto em outros locais tivemos problemas com o tráfico de drogas, que não queria as escolas ocupadas porque isso atraía muitos policiais para a região. Há também uma comissão responsável por se comunicar com a imprensa, para verificar o que seria veiculado, quais informações seriam transmitidas etc. Existe ainda uma comissão de relações externas com entidades da sociedade civil e com apoiadores do movimento.

Nas ocupações que ocorreram em São Paulo, os estudantes diziam algo muito pertinente: “Nós não somos um movimento de moradia que ocupa para ficar, ao contrário, somos um movimento que está reivindicando o diálogo sobre a proposta educacional que está em debate e queremos ser atendidos, queremos a escola para a sua finalidade, que é educar”. É muito interessante mostrarmos como esse processo foi trabalhado por eles. E o manual tinha essa característica de dar orientações gerais e, claro, em cada escola ele era adaptado para uma realidade própria.

IHU On-Line – Os partidos políticos têm tentado se aproximar do movimento das ocupações, assim como fizeram no início das manifestações de junho de 2013?

Rosemary Segurado – Isso também existe. É óbvio que quando vemos um movimento efervescente como esse, é evidente que um conjunto de oportunistas vai querer aparecer. Tem muita gente em rede de apoio, como parlamentares, mas têm muitos que querem se aproveitar do movimento para capturá-lo. Inclusive, os estudantes estavam muito preocupados com isso, porque se dizem apartidários, apolíticos, um movimento horizontal. Eles afirmam que nenhum partido poderá se apropriar da luta deles e roubar o protagonismo deles desse processo. Por isso que muitas vezes eles têm essa defesa muito forte do movimento, alegando que a ocupação é horizontal e autônoma, e não foi organizada por nenhuma entidade estudantil e nenhum partido político.

Quando o governo quer deslegitimar o movimento, ele associa os jovens à manipulação dos partidos políticos. É uma tremenda de uma mentira, é um processo claro de deslegitimação. Se o governo estivesse próximo das ocupações, veria que é exatamente o oposto. A defesa da autonomia do movimento é uma defesa muito forte e presente. Quando o governo faz isso, ele quer levar essa disputa para a disputa político-partidária que é dele, mas que não é do movimento. Assim, o governo presta um desserviço, uma desinformação à sociedade.

IHU On-Line – Por que e em que sentido as ocupações podem ser vistas como novas práticas políticas? O que esse tipo de manifestação tem de diferente em relação a manifestações do passado, inclusive realizadas por estudantes, como a UNE?

Rosemary Segurado – Retomando o gancho das manifestações de 2013, isso que falei do ciclo global de manifestações que estamos observando nessa última década, a primeira questão é mostrar que as formas de organização – não estou me referindo somente ao sistema político-partidário, mas também às formas de representação do movimento social e estudantil – não conseguem mais dialogar com essa realidade. Tanto é que as ocupações foram organizadas, em São Paulo, por um movimento autônomo, de estudantes que não faziam parte de nenhum partido político e de nenhuma dessas organizações estudantis.

Há uma rejeição, não só por parte dos estudantes, mas por muitos movimentos, dessa ideia de “alguém que fala por mim”, “alguém que me representa”. Esse é um dos dramas dos processos globais, porque esse modelo de representação já esgotou suas possibilidades de atuação; ele já teve seu papel, sua importância, mas hoje é insuficiente, porque vemos, cada vez mais, um abismo entre representantes e representados, não só no parlamento, não só nos governos, mas em muitas entidades, como nos sindicatos, nos movimentos estudantis, nos movimentos sociais tradicionais.

Desse modo, quando falamos em novas práticas políticas, em horizontalidade, estamos querendo romper com a imagem do movimento que tem um presidente, um vice, um secretário geral e um tesoureiro. Precisamos compartilhar mais as decisões, o desenvolvimento, compartilhar mais as formas de cooperação na organização das lutas sociais. Essas práticas da ocupação são formas de criar redes mais amplas de participação, envolver mais os diversos segmentos e os diversos setores da sociedade. É muito interessante pensarmos que ocupamos o que é nosso: isso é meu porque sou cidadão, porque contribuo com impostos, a escola pública é tão minha quanto de qualquer outra pessoa da sociedade. É uma consciência política recente, nova.

Temos visto, em outros países, movimentos em defesa da água. A água é de quem? A água é um bem público, geral, comum à sociedade. Mas o que vemos do ponto de vista das empresas, do capitalismo, é a privatização desse recurso, para ser acessado somente por quem tem recursos financeiros para isso. Quando falamos de novas práticas políticas, é desse lugar que estamos falando, é dessa possibilidade de construir formas diferentes das que nós vivemos atualmente em relação ao sistema político, partidário e de organização de movimentos sociais, que estão se afastando cada vez mais da sociedade. Então, as novas práticas precisam colocar o indivíduo, os sujeitos e os cidadãos nesse envolvimento com as questões que lhes dizem respeito, que dizem respeito à sociedade.

IHU On-Line – Que tipo de rearticulação política imagina que será possível a partir de agora?

Rosemary Segurado – Existem pautas comuns que podem, de alguma forma, produzir momentos de unificação e de movimentação. O resultado das eleições municipais em São Paulo, e no Brasil como um todo, demonstra que essas forças de esquerda abandonaram ou deixaram de lado o debate com a sociedade e perderam nesse campo. Evidentemente existe um processo de criminalização ao qual estamos assistindo com as investigações da Lava Jato. Parece que a corrupção foi inventada nos últimos 10 anos, o que não é verdade. Então, não se trata de um processo de criminalização somente do Partido dos Trabalhadores, é um processo de criminalização das forças progressistas, das forças de esquerda. Os movimentos sociais e os partidos políticos de esquerda, se entenderam esse processo, vão criar fóruns e frentes de atuação para poderem resistir a isso porque, caso contrário, nós podemos ter, em 2018, um efeito [Donald] Trump no Brasil – não vou nem dizer o nome da pessoa que pode ocupar esse lugar.

Acredito que temos dois anos para nos organizarmos para impedir esse crescimento, porque isso seria, realmente, um retrocesso muito grande. Quero chamar a atenção para um recrudescimento muito grande das forças policiais. Em São Paulo, é assustador o nível e a ilegalidade com que as forças policiais têm atuado. A recente invasão por parte da Polícia Civil na Escola Florestan Fernandes, a escola do MST, sem um mandado, com uma truculência enorme, mostra o caminho para um estado de exceção, que não combina com uma sociedade democrática.

Precisamos ver quais são os pontos que nos aproximam e através dos quais podemos, de alguma forma, tentar construir esse polo de resistência para que o que está em curso seja freado, seja impedido, para que essas forças retrógradas não cresçam na nossa sociedade.

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