Uma história inspiradora

Xavante de Marãiwatsédé lançam plano de gestão no Rio de Janeiro dando exemplo de sucesso das lutas indígenas em um contexto político cada vez mais difícil

Por Andreia Fanzeres – Amazônia Nativa / CPT

A 710 metros de altura, as orações diante dos braços abertos do Cristo Redentor costumam ser um ato emocionado de muitos dos visitantes do principal atrativo turístico do Rio de Janeiro. O banho de mar em um dia ensolarado de primavera nas águas cristalinas do Leme também é um presente a quem quer conhecer a cidade. Mas, no final do mês de novembro, o mar foi tingido de urucum e o Pai-Nosso e a Ave Maria foram rezados na língua Akwén, do povo Xavante, por cerca de 30 representantes da Terra Indígena Marãiwatsédé, que retornaram até o Rio para o lançamento de seu plano de gestão territorial.

A história de luta do povo Xavante pelo direito ao usufruto de seu território tradicional, do qual foram expulsos há exatamente 50 anos, criou entre o Rio de Janeiro e Marãiwatsédé uma importante ligação. Durante a Rio 92 (em 1992), lideranças Xavante receberam ali a promessa de que sua terra seria devolvida por empresários da Agip Petroli, que, à época, eram os proprietários de parte da área que um dia foi o maior latifúndio do mundo, a Fazenda Suiá-Missu. Na Rio+20 (em 2012), cerca de 13 Xavante voltaram ao Rio para cobrar do governo federal e da Justiça brasileira urgência na desocupação de seu território, invadido e desmatado intensamente nos 20 anos anteriores.

Agora, em 2016, os Xavante foram ao Rio para agradecer e demonstrar que, quase quatro anos após a desintrusão de Marãiwatsédé – resultante da pressão nacional, internacional e da grande visibilidade da sua trajetória na conferência das Nações Unidas – eles não só reocuparam totalmente a área demarcada e homologada com a abertura de novas aldeias e trabalhos de recuperação ambiental, como reafirmaram que sua luta continua. Afinal, 48 mil hectares identificados como território tradicional aguardam a demarcação desde os anos 90.

Segundo a antropóloga Iara Ferraz, que participou da fundação do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e do processo de identificação de Marãiwatsédé, a decisão de reivindicar a demarcação de parte do território tradicional nos anos 90 foi feita com a intenção de acelerar o trâmite administrativo na Funai, depois de tantos anos desde a expulsão dos indígenas dali em 1966. “Era estratégia pedir apenas a área da fazenda naquela hora porque ela estava totalmente desocupada. Então, pensamos que seria possível demarcar e indenizar num segundo momento as pessoas de boa-fé que estavam no território tradicional no começo dos anos 90”, explicou.

No entanto, às vésperas da Eco 92, após a divulgação na imprensa de que a área seria devolvida aos Xavante, uma grande mobilização local envolvendo a gerência da fazenda da Agip Petroli e os principais políticos mato-grossenses foi responsável pela a invasão de Marãiwatsédé, que, em razão disso, acabou detendo o título de terra indígena mais devastada da Amazônia. “O desafio do plano de gestão que está sendo lançado hoje é fazer a gestão desta terra e daquela que ficou de fora”, considerou Ferraz, no evento realizado no Museu do Índio.

Com recepção impecável, o Museu, que está fechado desde a invasão e a depredação que ocorreram às vésperas das Olimpíadas do Rio, abriu as portas excepcionalmente para o lançamento do plano de gestão, com cerca de 120 convidados. E a alegria não foi só dos indígenas, mas também dos funcionários, animados por verem novamente o Museu cheio de vida. “A primeira parceria cultural do Museu do Índio em 1986 foi com o povo Xavante e, desde então, temos realizado diversos trabalhos de documentação, registro audiovisual, entre outros”, disse na mensagem de boas-vindas, Arilza Almeida, chefe do Serviço de Atividades Culturais do Museu do Índio.

Para Vera Olinda, da Coordenação Geral de Gestão Ambiental e Territorial Indígena da Fundação Nacional do Índio (CGGAM/Funai), o plano de gestão de Marãiwatsédé tem força interna e riqueza singular. “Este trabalho tem valor para vocês como povo, mas também para a humanidade. Nós percebemos na Funai a importância social e ambiental de Marãiwatsédé. Isso aumenta a responsabilidade de proteger aquele território, dando condições para recuperá-lo”, reforçou a servidora. “Estamos dispostos a apoiar ações estratégicas e articulações mais amplas para a implementação do plano, apesar do nosso orçamento reduzido e de condições mais difíceis para trabalhar”.

As lições deste sonho

Conhecidos como o povo do sonho, ao longo de toda a sua trajetória pela retomada de seu território tradicional, os Xavante sempre mostraram força, união e disposição para lutar até o fim, até nas condições mais adversas. Esta também tem sido a postura de seus principais parceiros. Por isso, mesmo aqueles que não estavam no Museu foram lembrados com honradez, como as incontáveis contribuições de Dom Pedro Casaldáliga, em São Félix do Araguaia e a pressão internacional da Campanha Norte Sul coordenada por Mariano Mampiere. “Sabemos que há hoje pouco dinheiro e muitos inimigos contra os direitos indígenas, mas temos aqui pessoas que, com suas histórias, nos ensinam que é possível lutar e vencer porque dentro e fora do governo elas fazem a diferença”, disse o coordenador geral da OPAN, Ivar Busatto.

Por uma combinação de ingredientes ímpar, Marãiwatsédé se tornou um caso emblemático dentro da luta indígena no Brasil não apenas pelas nuances históricas e pela dimensão do desafio de enfrentar as principais forças políticas ruralistas do país, mas por tudo isso ter tido um desfecho favorável aos Xavante dentro do governo Dilma Rousseff.

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Apesar do desempenho pífio no reconhecimento de terras e direitos indígenas, assim como no apoio dispensado às causas socioambientais, foi possível construir vontade política e grupos de trabalho articulados para a desintrusão de Marãiwatsédé dentro do governo. Paulo Maldos, ex-secretário nacional de Articulação Social da Secretaria Geral da Presidência da República, contou, por exemplo, que em dado momento o ex-ministro Gilberto Carvalho disse à ex-presidente Dilma Rousseff que aquela era uma questão central para a vida dele e que, sem a desintrusão, ele deixaria o governo. “Toda a estrutura política de Mato Grosso, Câmara, Senado, estavam todos mobilizados. Mentiras sobre a desintrusão eram notícia na imprensa diariamente. Todos os aliados estavam sendo criminalizados. Estávamos batendo de frente no elo central do latifúndio. Eles não acreditavam que isso pudesse ser realizado”, descreveu Maldos, valorizando ainda o fundamental apoio do Ministério Público Federal, de peritos e procuradores que se envolveram de corpo e alma com esta causa. “A partir do momento em que os agentes de Estado se deram conta de que se tratava de uma causa justa, todo o trabalho fluiu. Imagine servidores de diversos ministérios juntos, até coronéis, todos fazendo um trabalho bem feito dentro do governo, na ponta, mantendo a resistência, ampliando as alianças. Era um prazer estar com equipe tão empenhada”, lembrou.

Todas essas lições ficam para o movimento indígena e para a resistência frente aos retrocessos nos direitos constitucionais dos brasileiros. “Tudo que a gente fez na ditadura, vamos ter que fazer agora. A política indigenista está paralisada. Vemos uma agressividade no legislativo. Mais da metade dos congressistas são formalmente filiados à frente parlamentar agropecuária, e têm como objetivo aprovação de projetos como a PEC 215 e a PEC 241 (PEC 55/Senado)”, disse Paulo Maldos. “Esse governo interino não mereceu o nosso voto. Eles querem acabar com a nossa vida. Eu vi na viagem de ônibus até aqui que no Brasil tem muita terra de um dono só. E os pobres ficam na beira da estrada. Eles não têm dó de nós”, falou corajosamente Carolina Rewaptu, que se tornou a primeira cacique mulher entre os Xavante de forma legítima. “O governo não respeitou nosso direito. Estamos preocupados com a sociedade não indígena e indígena”, completou Rewaptu.

No horizonte de implementação do plano de gestão, os desafios locais também ainda são grandes. “A história de Marãiwatsédé ainda não pode ser toda escrita porque ainda continuamos lutando pelo nosso direito à terra”, disse o cacique Damião Paridzané. Para ele, além da vontade de retomar as áreas tradicionais não demarcadas, o principal problema ainda é o risco de invasão, representado pela existência de estradas federais e estaduais cruzando o território recém conquistado. Além do fogo que se espalha, em grande parte, a partir de focos ateados criminosamente na época seca, em 2016 os indígenas relataram a soltura de gado em território indígena. “Este ano os posseiros invadiram com o gado”, denunciou Paridazné.

“No nosso plano de gestão, tem educação, saúde, vida, cultura e nossa relação com o meio ambiente. Com ele, queremos garantir a segurança alimentar do nosso povo e recuperar a área para não invadirem mais”, explica Carolina Rewaptu. E o plano de gestão de Marãiwatsédé tem tudo a ver com o futuro da região, acredita Rodrigo Junqueira, coordenador do Programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA), que chamou a atenção para a luta contra a monocultura que destrói o cerrado, suas águas e os povos que ali habitam. A preservação e recuperação de Marãiwatsédé está ligada à preservação e recuperação de seu entorno, que sobre um forte impacto pela expansão das monoculturas, afirmou.

A preservação e recuperação de Marãiwatsédé está condicionada ao que aconteça em seu entorno. O ISA, com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Associação Nossa Senhora da Assunção, a Operação Amazônia Nativa (OPAN) e a Rede de Sementes do Xingu, da qual participam as mulheres coletoras xavante, formam a Articulação Xingu Araguaia (AXA), que juntos reúnem esforços em prol da garantia de direitos e valorização da sociobiodiversidade da região.

Para enfrentar essa situação, outros povos já se espelham no exemplo e na força de Marãiwatsédé. “O cacique Damião Paridzané está convidado a dar palestra para o povo Paresi no processo de elaboração do nosso plano de gestão”, anunciou a liderança Haliti, Genilson Kezomae. João Guilherme Cruz, assessor técnico do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), e que atuava na Funai na época da desintrusão, resumiu o sentimento de admiração por todo aquele percurso histórico empreendido pelos Xavante. “A gente vê no plano de gestão as discussões que tivemos desde 2013, assim que a desintrusão acabou. Parabéns para todo mundo e para todo o povo indígena de Marãiwatsédé, que nos dá uma aula a cada dia”.

Imagens: Mídia Ninja e OPAN

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