Estupro e misoginia: o cinema espelha a vida

Casos de violência sexual na sétima arte, como o de Maria Schneider, expõem um mundo de machismo e agressões silenciadas por anos

por Ingrid Matuoka, Carta Capital

Maria Schneider tinha 19 anos e nenhuma experiência em cinema quando estrelou no filme Último Tango em Paris, em 1972, dirigido por Bernardo Bertolucci. Na obra, ela contracena com o Marlon Brando, que à época tinha 48 anos, na “cena da manteiga”, uma das mais famosas da história do cinema.

Anos mais tarde, e até a data de sua morte em 2011, aos 58 anos, a atriz alegaria que a atuação, na verdade, foi uma reação a um estupro real, e que ela se sentia humilhada.

Ninguém acreditou na atriz. Foi preciso que um vídeo do premiado diretor viesse à tona, por meio da revista feminina francesa Elle, para que se acreditasse que as alegações, a tentativa de suicídio e problemas de drogas de Schneider decorriam do estupro, e não somente da fama, como fizeram acreditar.

Em uma entrevista gravada em 2013, que fora perdida, Bertolucci, hoje com 75 anos, assume que ele e o já falecido ator Marlon Brando conspiraram para que a cena acontecesse sem que Schneider soubesse. Segundo ele, queriam “a reação de uma garota, não a de uma atriz”.

O diretor também diz que se sente culpado, mas não arrependido, e justifica o estupro em nome da arte, alegando que para fazer um filme “às vezes é preciso ser frio”, e continua: “portei-me de maneira horrível porque não disse a ela o que ia acontecer. Queria que ela reagisse ao ato de humilhação gritando ‘não, não’. Não queria que Maria fingisse essa humilhação e raiva, mas que ela sentisse raiva e humilhação. E por isso ela me odiou a vida inteira”. Vale mencionar que vários outros homens assistiam à cena no momento em que foi gravada.

O estupro de Schneider não é um caso isolado, mas soma-se a diversas outras violências já divulgadas, que se manifestam desde a desigualdade salarial entre homens e mulheres na indústria cinematográfica e a banalização e romantização de cenas de estupro e agressão a personagens femininas em filmes e séries, até as violações físicas e psicológicas de atrizes.

E as histórias datam de décadas atrás. Chales Chaplin já foi acusado de pedofilia e diversos abusos. A atriz Tippi Hedren denunciou Alfred Hitchcock por seu comportamento obsessivo e perseguições que duraram anos. “Uma vez ele veio e colocou as mãos dele em mim. Foi sexual, foi perverso. Quanto mais eu lutava, mais agressivo ele ficava”, diz a atriz em sua biografia.

Roman Polanski, preso em 2009 na suíça e solto 42 dias depois, tinha 43 anos quando fotografou Samantha Geimer, uma garota de treze anos, para um ensaio da revista Vogue. Segundo o relato de Geimer, ele mudou o cenário para uma banheira e ofereceu champanhe e uma droga sedativa a ela. Polanski pede então para que Samantha tire a calcinha, e a estupra.

Woody Allen também foi alvo de um escândalo que sua ex-namorada, Mia Farrow, encontrou fotos eróticas de sua filha adotiva, Soon-Yi Previn, na casa dele. Farrow também o acusa de abusar de sua outra filha, Dylan, aos 7 anos.

Aos 28 anos, Dylan Farrow falou publicamente sobre o assunto, após Allen alegar ser inocente: “Mais uma vez, Woody Allen ataca a mim e a minha família, em um esforço para me desacreditar e silenciar – mas nada do que ele diga ou escreva pode mudar a verdade. Por 20 anos, eu nunca vacilei em descrever o que ele fez comigo. Vou carregar as memórias de sobreviver a essas experiências pelo resto da minha vida”.

O comediante Bill Cosby, 79 anos, também entra na longa lista. Ele admitiu ter drogado e estuprado cinco mulheres. Outras 41 mulheres, incluindo menores de idade, afirmam ter sido violentadas por Cosby. Ele será julgado em julho de 2017 somente pelo estupro de Andrea Constand, que ocorreu em 2004.

Clássico do terror, O Iluminado (1980) também exibiu cenas de horror e misoginia do diretor Stanley Kubrick contra a atriz Shelley Duvall, que contracenava com Jack Nicholson na pele da personagem Wendy.

No documentário Stanley Kubrick: A Life in Pictures, o próprio Nicholson admite que avaliava o diretor como “ótimo de trabalhar”, mas não com relação a Duvall.

Kubrick manteve a atriz isolada, cortou muitas de suas cenas e a obrigou a repetir uma cena, em que tenta se defender do personagem de Nicholson com um taco de basebol, exaustivas 127 vezes. Como o diretor optou por filmar o longa em ordem cronológica, Duvall chorava 12 horas por dia em cena, o que a levava à desidratação e ao desespero.

Autor do livro homônimo que originou O Iluminado, Stephen King classifica a Wendy de Kubrick como um dos retratos “mais misóginos” do cinema, muito diferente do traçado para a personagem no livro.

Lars Von Trier, que trabalhou com Björk em Dançando no Escuro, ganhou a Palma de Ouro pela obra, e a inimizade da atriz, que chegou a rasgar o figurino de sua personagem e abandonar o set por quatro dias, exausta com Von Trier. O diretor afirmou que ela era “louca” e trabalhar com ela foi terrível.

Nicole Kidman também quer distância de Von Trier. Estrela de Dogville, a atriz desistiu de participar de duas sequências do longa após as filmagens com o diretor. Sobre o assunto, Von Trier disse: “Não acho que torturei Nicole Kidman em Dogville, mas sei que ela disse que fui duro”.

O cinema segue espelhando a vida real, estejam as câmeras ligadas ou não.

No Brasil, acontece um estupro a cada 11 minutos, geralmente por pessoas próximas a essas mulheres. Outro estudo analisou dez anos de alegações de estupro e constatou que 90 e 98% das acusações são reais. Contudo, apenas 3% destes homens chegam a ser julgados, condenados e presos. Além disso, um terço dos brasileiros culpa a mulher pela violência sexual. Nada muito diferente do que acontece no mundo do cinema.

Chaplin, Bertolucci e Brando, Hitchcock, Allen e Cosby. Estes são só alguns dos casos de violência que vieram à tona, e vários deles levaram anos para serem revelados. Quantos estão acontecendo nesta década e serão descobertos somente no futuro?

Imagem: Brando e Bertolucci tiveram a ideia da “cena da manteiga” na manhã da filmagem e não conversaram com Schnider – Reprodução/Último Tango em Paris.

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