Mulheres invisíveis, trabalho precário

Este artigo faz parte da iniciativa “16 dias de ativismo” do Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM Brasil). 

Por Isadora Brandão, no Justificando

Um relatório publicado pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) em janeiro de 2013, que conta com informações coletadas em 117 países, estimou em 7,2 milhões o número de trabalhadoras domésticas no Brasil, sendo esse o maior contingente de empregadas domésticas do mundo. Mais da metade dessas trabalhadoras não tem assegurado o limite da jornada de trabalho e cerca de 45% não tem direito a descanso semanal remunerado. Pouco mais da metade de todas as trabalhadoras recebe o salário mínimo equivalente ao das demais categorias.[i]

No Brasil, durante muito tempo, praticamente não existiu um horizonte normativo garantidor de direitos trabalhistas para as empregadas domésticas. Mesmo após o seu “nascimento jurídico”, em 1972, predominou um tratamento jurídico-formal condizente com o de uma subcategoria de trabalhadoras. Essa situação de marginalização não foi plenamente sanada com o advento da festejada EC 72/2013, pois, ao invés de extirpar da ordem jurídica o parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal, eliminando de uma vez por todas qualquer subsídio legal para construções doutrinárias e  jurisprudenciais contrárias à equiparação dos direitos das trabalhadoras domésticas aos das demais categorias profissionais, preservou parcela do dispositivo legal que tende a ser manipulada visando a perpetuação do cenário discriminatório.

Apesar desse grave quadro de desproteção jurídico-trabalhista – marcado tanto pelo reconhecimento capenga de direitos, quanto pela baixa aplicabilidade das normas já positivadas -, pouca atenção tem sido concedida a essa realidade, tanto no plano político, quanto no jurídico, mesmo entre os setores mais progressistas.

Isso ocorre por serem as mulheres negras e pobres as principais responsáveis pela realização diuturna desse trabalho.

De fato, a visibilidade e a valorização do trabalho reprodutivo passam pela explicitação da sua importância para a garantia do bem-estar e da sustentabilidade da vida humana, assim como da sua relevância econômica, na medida em que assegura a reprodução da força de trabalho a baixos custos, sob a ótica do Estado e do empresário capitalista. Ademais, ela não será possível enquanto não se promover a ruptura com o arquétipo racista que enxerga esse trabalho como um “serviço de mucama”, como atividade manual abjeta típica de grupos sociais inferiorizados. Dito de outra forma, não é viável enquanto persistir a lógica racista – obnubilada pelo mito da democracia racial sobre o qual se edificou a narrativa hegemônica de nação –, que intenta frustrar qualquer possibilidade de humanização de negros e negras e de sua equiparação com os brancos em qualquer esfera da vida social.

Do mesmo modo se mostrará inviável enquanto permanecer representado como uma atribuição prioritariamente feminina e como um conjunto de tarefas exercidas pela mulher em nome do amor e/ou por aptidão natural. Afinal, a separação entre trabalho de homens e trabalho de mulheres, princípio regente da divisão sexual do trabalho, opera concomitantemente com uma lógica hierárquica que atribui valores distintos ao trabalho de acordo com o sexo de quem o realiza. Ademais, na medida em que este trabalho é realizado no âmbito doméstico e familiar deve enfrentar o desafio de romper com a dicotomia ideológica entre público/privado, típica da tradição liberal patriarcal, interessante à manutenção do status quo e conscientemente reforçada pelo Direito e pelo Estado na produção legislativa e na elaboração e implementação de políticas públicas.

Nesse sentido, a visibilidade e a valorização desse trabalho significam não apenas um elemento de tensão com a lógica capitalista, na medida em que tende a gerar a ampliação dos custos de produção e a redução da mais-valia global, mas também com a lógica patriarcal e com a estratificação racial que têm sido racionalmente utilizadas para naturalizar a exploração, reificação e silenciamento das mulheres negras no interior desse sistema.

Isso nos leva a concluir que não é a “natureza” ou a “peculiaridade” do trabalho doméstico que levam à marginalização das empregadas domésticas da esfera de proteção trabalhista. É, isso sim, a confluência das contradições de gênero, raça e classe, ao longo da história do colonialismo e do pós-colonialismo no Brasil que explica a desumanização dessas trabalhadoras e, por conseguinte, o desvalor socioeconômico e a desproteção jurídica de seu trabalho.

A história política das trabalhadoras domésticas sugere que, em seu esforço de resistência e re(existência), há uma transitar entre os movimentos sindical, negro e feminista movido pela percepção de que o quadro teórico-político sobre o qual estão assentados não engloba suficientemente as suas experiências específicas, as suas demandas reivindicatórias, tampouco os saberes produzidos a partir do seu ponto de vista.

O relato de Creuza de Oliveira[ii], do Sindoméstico da Bahia, ilustra essa percepção: “Quem participava do movimento feminista no começo eram as mulheres brancas e patroas. E sempre eu falo. Uma vez teve uma companheira feminista que se chateou comigo: “Ah! Não diga isso”. Porque quando eu disse a ela: “nós, trabalhadoras domésticas, somos discriminadas e violadas nos nossos direitos por todos: pelas mulheres que estão no movimento feminista, que tá lá gritando liberdade sexual, direito à maternidade, direito a não sei o que, ao mercado de trabalho. Mas ela não quer que a mulher doméstica, trabalhadora doméstica, negra, que tá lá dentro da casa dela, estude, não quer que tenha a sua vida sexual ativa, não quer que ela tenha filho, não quer que tenha a sua cidadania, que participe politicamente.” (…) “Quando você vai pro movimento sindical também, o companheiro tá lá no sindicato dele […]. Aí ele tem uma trabalhadora dentro da casa dele, ela não cumpre. Ele tá dentro do sindicato querendo reposição salarial, direito a isso, banco de horas. E aí ele esquece que a trabalhadora está dento da casa dele merece ter salário justo, que merece ter carga de trabalho respeitada e tal. E você vai pro movimento negro, muitos companheiros que são doutores […] que tem um salário digno, que dá pra pagar um salário digno, direito pra trabalhadora, justo, e não quer pagar porque ele vê essa categoria como subalterna, que não estudou. E aí não quer também respeitar os direitos […].”[iii]

Observa-se que as trabalhadoras domésticas, nesse trânsito entre diversos movimentos (negro, sindical e feminista), vivenciam um constante “não-lugar” identitário e reivindicatório. É a partir desse fenômeno, que envolve pertencer a um grupo e, ao mesmo tempo, estar para além dele, que se desenvolve a consciência das mulheres negras, a qual Patrícia Hill Collins designa de “consciência opositora”. [iv]

A interseccionalidade, conceito-metáfora cunhado pela jurista afro-americana Kimberle Crenshaw em 1989[v] é fruto, justamente, de um esforço intelectual e de organização do ponto de vista das mulheres negras. Partindo das experiências das mulheres afro-americanas, Crenshaw revela a perspectiva unidimensional e mutuamente excludente a partir da qual as categorias “gênero”, “raça” e “classe” são trabalhadas pelos movimentos políticos, organizações não governamentais e órgãos nacionais e internacionais de direitos humanos. Isso ocorre, por exemplo, na medida em que as mulheres brancas e os homens negros, respectivamente, são tomados como parâmetro central para identificação do que é “discriminação de gênero” e do que é “discriminação racial”.

Assim, para além dos efeitos materiais da interseccionalidade–responsáveis por situar as mulheres negras na base da pirâmide social – há também os seus efeitos políticos, que produzem a invisibilidade e sub-representação desse grupo.

Desse modo, coloca-se como questão central para a concretização dos direitos trabalhistas das empregadas domésticas o apontamento dos óbices existentes à concretização da isonomia. Essa tarefa pressupõe o alargamento da noção de dignidade da pessoa humana, paralelamente à desmistificação da figura do “sujeito universal” que, na prática, tem correspondido ao homem/heterossexual/branco/proprietário/ocidental.

O olhar interseccional, na medida em que contribui para a visibilização das experiências de exclusão e restrição de direitos que afetam as mulheres negras, coloca-se como uma ferramenta útil e urgente numa sociedade como a brasileira, estruturalmente autoritária, pautada por valores estamentais, demarcada por um apartheid latente e silencioso, no bojo do qual direitos básicos são desfrutados como privilégios.

Isadora Brandão Araujo da Silva é defensora Pública do Estado de São Paulo. Mestra em Direito pela Universidade de São Paulo.

[i] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. 2013. Disponível em: <http://www.oit.org.br/content/entra-em-vigor-convencao-sobre-trabalho-domestico-da-oit>. Acesso em: 11 jul. 2014.

[ii] Creuza de Oliveira foi presidente da Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas) no primeiro mandato do governo Lula, época em que integrou o Conselho Nacional de Políticas da Mulher da Secretaria Especial para as Mulheres e o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial da Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial, ambas ligadas à Presidência da República.

[iii] BERNARDINO-COSTA, J. Sindicato das trabalhadoras domésticas no Brasil: teorias da descolonização e saberes subalternos. Brasília, 2007. Tese de Doutorado. Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, 2007.

[iv] COLLINS, P. H. The social construction of black feminist thought.  In: Signs, v. 14, n. 4. Common Grounds and Crossroads: race, ethnicity, and class in womens`s lives, 1989, p.745-73.

[v] CRENSHAW, K. Documento para o Encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. In: Revista de Estudos Feministas. Ano 10, 1º semestre 2002.

________. A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. Painel: Cruzamentos raça e gênero. Ação Educativa, 2012.

CRENSHAW, K. Mapping the margins: Intersectionality, Identity Politics and Violence against Women of Color. Standford Law Review, n. 43, 1991, p.1241-1279.

________. Beyond entrechment: race, gender and the New Frontiers of (Um) equal Protection. In: International perspectives on gender equality & social diversity. Tokohu University Press, 2008.

________. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory, and antiracist politics. University of Chicago Legal Forum.1989, p.39-52. Disponível em: <http://chicagounbound.uchicago.edu/uclf/vol1989/iss1/8>.

 

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