Rasgaram a Constituição, mas em pouco tempo ninguém lembrará mais deles

Por Roberto Tardelli, no Justificando

Num de seus mais fantásticos sambas, Mestre Paulinho da Viola ensina: “Faça como o velho marinheiro /Que, durante o nevoeiro /Leva o barco devagar”. O Mestre sabe das coisas e deve ter ficado com seus olhos rasos d’água, como diriam os poetas populares do passado (que lindo isso,  deles, alé olhos rasos d’água), ao ver o patético e triste resultado de ontem, quando vetustos senhores e vetustas senhoras, ricos, riquíssimos alguns de uma turma enorme de devotos religiosos fundamentalistas, que votaram algo que nunca se havia visto, um retrocesso constitucional, ancorados pelo manto conservador do Supremo, onde, em razão de estranhas combinações gasosas, sintetizou-se algum veneno inodoro, incolor e invisível, que transforma geniais juristas em medíocres burocratas.

Seria como se os constituintes – estes, no jargão jurídico, chamados de derivados – dissessem: “Gente, não deu certo. Tem direito demais aqui dentro. Tem brasileiros a mais no Brasil, infelizmente. Ah, essa Constituição de 88 era mesmo obra de comunistas.” Direitos demais na previdência, na educação, na saúde, direitos humanos, direitos que atrapalham o Governo, sim, Golpista e Ilegítimo.

Dispararam o canhão do atraso. Um canhão cujo bombardeio foi gestado para durar vinte anos, uma expressão redonda. Um chute estatístico, vinte anos; alguém deve ter dado uma porrada em alguma mesa brasiliense e, machinho-alfa dessa turma, impôs vinte anos. Vinte anos! Ninguém questiona vinte, como questionaria, dezessete por exemplo; há um ar de graça consensual nesse número, vinte.

Todavia, no Brasil pós-escravidão, nada durou tudo isso. Vinte anos nesse hospício de oito milhões e meio de quilômetros quadrados é uma eternidade tão incomensurável que minha esperança se acende, paradoxalmente.

Experimentarão esses malditos do próprio veneno. Eles se deram a atropelar a constituição (isso, assim, minusculamente grafada), tornaram-se bambas nisso e, até ontem, muitos de nós, pelo menos os não- abstêmios, com certeza, tínhamos como certo que seria impossível, pelo viés de emenda constitucional, andar para trás, recuar em direitos concedidos pela Constituição, mais ainda pelo legislador constituinte, esse, originário. Teve até um Ministro que escreveu isso, brilhantemente. Mudou de ideia, depois de vestir a capa preta (ou seria ela, a capa? Seria a capa que transformaria juristas em burocratas?). Se não há constituição para libertar, que não haja constituição para oprimir. A constituição virou um almanaque, nada mais, assim reduzida pelo Congresso Nacional, com o auxílio luxuoso do contra-baixo do STF, com o solista Ministro Barroso.

Vamos esquecer essa história dos 20 anos. Não vale e não valerá. Pode durar mais dois anos, muito tempo para deixar ainda na mais dura miséria física uma boa parte da população, muito tempo para arrebentar o que restou das escolas públicas e muito tempo para muita gente morrer na fila do SUS, sim. Mas, não serão vinte anos, serão dois, se a vontade popular for respeitada e, mesmo se não for, esse um não conseguirá sair da cripta eleitoral em que se trancou.

Eles rasgaram a constituição. Choramos lágrimas de sangue por isso, mas não temos também nenhum compromisso ético-moral de defender essa mixórdia que aprontaram. Deixem estar. Em breve, isso vai acabar, essa gente horrenda vai amargar o ostracismo e daqui a pouquíssimo tempo ninguém mais se lembrará deles.

Ficarão de pijama, em casa, ralhando com netos, chutando cachorros.

Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway. Procurador de Justiça do MPSP Aposentado.

 

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