O pai de mil medos

Por Juliana Castello Branco , no Justificando

De um lado, um escritor. No seu sobrenome, Mãe. Na sua história de ficção “O filho de mil homens”[1], um personagem cujo sonho é viver a maternidade. Vive numa pequena aldeia e, incansável, persegue seu sonho, buscando ali, “uma criança que estivesse perdida ou invisível aos olhos dos outros”.

Crisóstomo, o pescador de filhos, sabia muito. Um homem feminino, sem preconceitos. Um macho, sensível.

Para ele “o homem estava condenado a uma tristeza maior, como se fosse o corpo fraco da humanidade, o corpo menor.” Porque ao homem não era permitido gerar outro corpo. Nas suas palavras, as mulheres eram perfeitas, por escolhidas para a maternidade.

“Somente as mulheres assinavam a pele de cada filho, nunca repetindo entre elas os códigos com que para sempre distinguiam, uma a uma, as pessoas que criavam”.

Numa escrita lúdica, o escritor português, cria um personagem masculino que consegue exercer em sua plenitude a maternidade. Um personagem que chama atenção no lugarejo onde vive. “Crisóstomo delicado, feito de uma virilidade equilibrada pelos sentimentos mais humanos”.

Chamaria atenção se aqui vivesse também o Crisóstomo, pela consciência da importância do que é gerar filhos, ser mãe, ser pai. Pela responsabilidade e beleza de exercer essas funções.

“Aos quarenta anos, o Crisóstomo, com seu inusitado entusiasmo, mudou o mundo”. Tornou-o um lugar melhor.

Do outro lado do Oceano Atlântico, um presidente. No seu sobrenome, Medo.

Na sua história real, de apenas seis meses, tenta mudar um País. Seus alvos: mães, pais e filhos. E também seus sonhos.

Em uma grande nação, age como se invisível fosse seu povo. Ignora suas vontades e necessidades, o despreza. O Medo não sabe muito de sua gente. E não quer saber. Não tem olhos de ver, nem ouvidos de escutar. Não dialoga. Não teme. Não tem nada a temer.

Ao contrário do Crisóstomo, não caminha pelas pequenas aldeias, mas decide qual será o futuro dos que ali vivem. Desvaloriza as mães, que geram a vida. Não as distingue.

Nossa Constituição, como Crisóstomo, o pescador de filhos, enxergou que as mulheres “construíam as pessoas meticulosamente, sem sequer olharem ou se preocuparem demasiado com isso. Construíam-lhes cada osso, cada veia e cada fio de cabelo”. Nossa Constituição pensou nas crianças que nasceriam sob a sua vigência.

Em seu art. 1º, II e III, a Constituição estabeleceu como fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

No art. 5º, I, a igualdade entre homens e mulheres.

O artigo 6º garantiu como direitos sociais a educação, a saúde, a previdência social e a proteção à infância.

Crisóstomo certamente acharia pouco, porque sempre há mais para garantir e doar. Mas Crisóstomo é personagem de ficção. Voltemos.

O Medo, figura da nossa realidade, acha muito. Acha custoso. E na sua Ponte para o Futuro ameaça as mulheres e as crianças, tira-lhes a perspectiva de mudança para melhor.

Por sua iniciativa, foi aprovada a PEC 55, que congela por 20 anos os gastos com saúde e educação, impedindo investimentos no nosso tão precário sistema de saúde e de ensino. Nega-se às mulheres e às crianças a esperança de um futuro com mais qualidade de vida. Isenta o Estado de cumprir o seu papel constitucional de proteger a infância e assistir aos desamparados (art. 6º).

Mas o golpe de misericórdia, como presente de Natal para fechar 2016 e desejar um feliz Ano Novo, vem através da PEC 287 apresentada no Congresso Nacional pelo Executivo, através da qual são condenados os trabalhadores a mais 15 anos de trabalho, se homens, e 20 anos, se mulheres, para obterem acesso à aposentadoria. Para a aposentadoria integral, passa-se a exigir 50 anos de contribuição.

Com isso cria-se o fim da aposentadoria dos trabalhadores e trabalhadoras braçais, pois não há força, não há saúde que resista a tanto peso e descaso.

Nem nos nossos piores pesadelos poderíamos imaginar uma situação como essa.

A reforma da previdência prevê, ironicamente, igualdade entre homens e mulheres, mesma idade mínima para se aposentar, mesmo tempo de contribuição, provavelmente fundamentado no art. 5º, I da CF/88.

A igualdade que é diuturnamente negada às mulheres, a começar pela nomeação dos integrantes do primeiro escalão deste (des) governo, vem da forma mais hipócrita, mais cruel e machista:

– Mulher, antes de ter seus direitos, trate de cumprir suas obrigações.

Como sempre foi.

E assim segue o tempo real. Triste. O tempo em retrocesso, mas tempo em andamento.

Durante a sua busca incessante, Crisóstomo se deparou com uma mulher que lhe disse: “quem tanto pede o que lhe pertence assim o mundo convence”.

Conclamo as mulheres para que sigamos, pois, em sororidade, com Crisóstomo e Valter Hugo Mãe, nessa luta que não tem dia para acabar. E superaremos o Medo.

Juliana Castello Branco é mulher, mãe, foi juíza do trabalho da 12ª Região (Santa Catarina) e atualmente é juíza do trabalho da 53ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro. Associada à AMATRA1 (Associação dos Magistrados da 1ª Região), à ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho) e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Adora programar e fazer viagens, ler poesias e ouvir MPB. Entusiasta do pensar e fazer coletivos, acredita que a sororidade não vai mais sair de pauta.

[1] O Filho de mil homens, Valter Hugo Mãe, Biblioteca Azul, 2016.

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