Por Diego Junqueira, do R7
Ele tem dois instrumentos de criação: o violão e o computador. Faz melodias simples, com não mais que quatro acordes, e as manda direto para o programa de computador, onde serão testados os instrumentos de software e colados samplers de outras músicas. Ao mesmo tempo surgem as letras, a maior parte sobre a violência contra indigenas no Brasil e violações a trabalhadores e ao meio ambiente.
Esse é Ruspô, o projeto musical do jornalista paulistano Ruy Sposati, que lançou em novembro seu segundo álbum, Dourados (pelo selo Um Distante Maestro).
Como jornalista-andante, Ruy acompanha os danos ambientais e sociais causados pelas grandes obras brasileiras, como Belo Monte, na Bacia do Rio Xingu, ou o confronto pela terra entre índios e fazendeiros em Dourados, no Mato Grosso do Sul. Suas histórias foram publicadas nos últimos anos pelo Movimento Xingu Vivo e pelo Conselho Indigenista Missionário, além de também ser divulgada pela imprensa de todo o país.
Suas músicas transitam por esse universo de faroeste e disputa, que já lhe rendeu seis processos judiciais, com acusações como a de orquestrar uma greve de operários no Pará, além de ter sido investigado por uma CPI da Assembleia Legislativa do MS, onde se tentou relacionar seu trabalho a táticas de guerrilha. Todos os processos já foram arquivados.
Ruy compõe as músicas na estrada, entre as viagens e os personagens que encontra, criando seu autodenominado estilo lo fi-tropical, de produção caseira de música eletrônica a custo zero.
— O violão é o instrumento que tenho mais intimidade. Começo de uma base muito simplória, abro o programa de computador, marco o tempo dela na base e a partir daí vou desenrolando de um jeito espontâneo, sem parar, de uma forma até obcecado. Faço como tentativas de acerto, vou criando alternativas. As letras tendem a surgir da mesma forma, muito dominado por esse processo.
Ruy viveu durante 2016 em Dourados, a segunda maior cidade do Mato Grosso do Sul, região mais violenta para indígenas no Brasil.
Lá se vive um enfrentamento aberto entre os agropecuaristas de soja, cana e gado e uma imensa população indígena, boa parte dela confinada em reservas, onde “se vivencia uma forma de organização que potencializa a proletarização dos indígenas”, numa espécie de aculturação, “diferente do que acontece nos acampamentos, onde tende a reacender uma tradicionalidade indígena”.
Em Dourados State of Mind, Ruspô faz uma crítica ao “sonho desenvolvimentista” da cidade, simbolizado nas usinas de cana, onde estão todos “preparados para o combate”:
ruas feitas todas de flores
(e um pouco de sangue)
isso é dourados
índio não entra no shopping
que branco não gosta
isso é dourados, dourados, dourados.
A colagem eletrônica remete à Compton State of Mind, do rapper americano Kendrick Lamar, sobre Compton, em Los Angeles, uma das regiões mais violentas dos Estados Unidos. Rap este que já faz oposição à famosa Empire State of Mind, de Jay-Z e Alicia Keys, e sua visão deslumbrada de Nova York.
A partir de Compton, consumida de maneira “obcecada”, Ruy cria seu relato de Dourados. O videoclipe é também uma colagem visual, a partir de antigas imagens de uma família branca viajando por regiões indígenas do México, onde é possível ver a diversão dos turistas ante a exploração dos nativos.
— Dourados veio aleatoriamente. Um sampler básico de uma música indiana dos anos 60, que é o começo. (…) Em uma noite com um grupo de guaranis-ñandeva, três rezadoras passaram a madrugada rezando. Eu gravei as mulheres e surrealisticamente a reza delas estava no tom e no tempo da música.
Mas embora suas letras tratem de temas duros, as canções são leves e irônicas, ou nada dramáticas, como ele mesmo diz.
A ironia musical de Ruspô também está marcada em “Meu Glorioso Clodiodi”, que fala do ataque a um acampamento indígena em junho passado em Caarapó, por milícias financiadas por produtores rurais, quando morreu o agente de saúde e indígena Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, de 26 anos.
— Essas músicas não têm a intenção de serem um resumo do que aconteceu. A história por si só é muito dura, e a musicalidade vai costurar, vai tentar contar essa história de outro jeito, a partir de outras sensações.
Encerrada a missão em Dourados e vivendo agora em São Paulo, o Ruy-jornalista promete abrir mais espaço em 2017 para Ruspô. A ideia é retomar a divulgação nos palcos, com a possibilidade de se formar um banda e apresentar shows nos primeiros meses do ano.
Seu primeiro disco, Esses Patifes (2013), foi econsiderado um dos melhores álbuns daquele ano pelo crítico musical Gilles Peterson, da Rádio BBC de Londres, mas rendeu somente três shows ao vivo.
Dourados está disponível para download gratuito, e também pode ser ouvido online aqui.
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As músicas costumam surgir a partir de acordes do violão, que depois são jogados no computador para receber os outros instrumentos. Foto: Phil-Clarke Hill /Divulgação