Andrea Tonacci: filmando nos andes, por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

Quando o conheci, em fevereiro de 1980, o cineasta Andrea Tonacci estava com uma câmera na mão, filmando uma ruazinha estreita e pavimentada de pedras rosadas, em Ollantaytambo, nos Andes, a 3 mil metros de altura. Viera de São Paulo, onde morava, para documentar o 5º Congresso Mundial de Índios e o 1º Congresso de Movimentos Índios da América do Sul, no qual estávamos inscritos o pareci Daniel Matenho Cabixi da aldeia de Rio Verde (MT) como delegado e eu, que o acompanhava, como observador. Os três tínhamos, então, trinta e poucos anos. 

Uma chuvinha fina e o vento gelado cortante nos levaram a correr pela rua para buscar abrigo nas ruínas de uma fortaleza. Lá embaixo o rio Patakancha gemia em direção ao leito de pedras do Urubamba, indiferente às nossas fofocas sobre a abertura oficial do evento na Praça de Armas do Cuzco, que não contou com a dupla Marlon Brando e Jane Fonda, cuja vinda fora anunciada, num golpe publicitário, pelo canadense George Manuel, presidente do Conselho Mundial dos Povos Indígenas, o que frustrou os participantes, entre os quais os lapões autodenominados de vikings e mais de 300 indígenas de todos países da América, excetuando o Uruguai onde os Charrua eram invisíveis.

Durante vários dias – de 27 de fevereiro a 3 de março – convivemos com Andrea num cenário soberbo formado pelo Templo do Sol, gigantescas pedras e uma vista do Vale Sagrado dos Incas, de tirar o fôlego, com sua rede de terraços e canais que permitiam drenar o solo para a agricultura. “Devemos ressuscitar essas ruínas para reconstituir o 2º Império do Tahuantinsuyo” – diziam as teses polêmicas do congresso. Foi então que a câmera de Andrea Tonacci registrou o maior quebra-pau entre os delegados nos diferentes grupos de discussão.

Choxonnataxanaxaic

Na Comissão de Indianidade, Filosofia e Ideologia, da qual eu fazia parte com direito à voz, mas não a voto, o debate se polarizou entre Guajiros da Venezuela e um índio Toba da Província do Chaco, que acusava de “marxista e esquerdista” todos os que discordavam dos seus rasgados elogios ao general Jorge Videla, então ditador da Argentina. Ninguém podia imaginar que Videla um dia seria condenado e preso por “terrorismo de estado”, por tortura e morte de 8 mil pessoas e que, em 2013, atacado por uma indefectível e justiceira diarreia, morreria sentado no vaso sanitário de sua cela.

De qualquer forma, discordei publicamente do índio Toba e, por isso, fui recriminado por um jornalista escandinavo diante da câmera de Andrea: “Você não pode sufocar a voz dos índios” – ele disse e eu lhe observei que aquela voz não era indígena, que a defesa da tortura não fazia parte da cultura Toba. Se fosse hoje eu acrescentaria que a língua Toba, que pertence à família Guaicuru, não tem palavra equivalente para “tortura”, mas usa choxonnataxanaxaic para designar “solidariedade”, conforme registra o linguista Orlando Sánchez em “Rasgos Culturales de los Tobas”.

Não vi o documentário feito por Andrea com o material filmado nos Andes, mas seu título é bastante informativo: “Discussão ideológica num intervalo do encontro indígena em Ollantaytambo, Peru” (1980, 30′). Lá aparece o  desconfiado boliviano Constantino Lima, ex-deputado pelo Movimento Indio Tupak Katari (Mitka), cujas opiniões são conhecidas. Para ele, “essa esquerda que nos abraça, nos chama hipocritamente de irmãos e nos apunhala pelas costas, é muito mais perigosa que a direita, que nos discrimina como índios de mierda, mas a qual podemos combater de frente”.

Tudo isso foi registrado pela câmera de Andrea, que já havia filmado outros índios. Quando subiu os Andes, levava a experiência do projeto “A visão dos vencidos” que desenvolveu com uma bolsa de Artes Criativas da Fundação Guggenheim e que lhe permitiu filmar comunidades indígenas nos EUA e na América Central. Valeu a pena aquele menino nascido em Roma, em 1944, migrar com a família para São Paulo e abandonar depois os cursos de arquitetura e engenharia para se dedicar ao cinema. O Brasil perdeu um engenheiro e talvez um arquiteto, mas ganhou o  diretor mais criativo do movimento conhecido como “Cinema Marginal”.

Olhando estrelas

No Brasil, Andrea filmou índios de diferentes etnias. Viveu três anos no Pará, onde conviveu com grupos não-contactados. Lá conheceu os Arara. “Uma vez fiquei oito meses seguidos na floresta”, ele conta, narrando sua experiência em área que hoje pertence ao estado de Tocantins.

No Maranhão, foi adotado por uma família dos índios Canela Apãniekra, com quem morou por um tempo. “A gente saía para caçar, depois sentávamos à noite para fumar um baseado e olhar as estrelas” – ele relata, dizendo que aprendeu a olhar os astros com os índios, “que vivem cantando e dançando e sabem quando um corpo estranho aparece no céu”.  Documentou seus rituais, o cotidiano, os conflitos fundiários e o massacre que sofreram. Está tudo lá, em “Conversas no Maranhão” (1977), nos “Discursos Canelas” (1979) e em “Os Araras” (1980).

Andrea conviveu ainda com os Guarani e registrou a vida da líder religiosa Keretxu Mirî, dona Aurora Carvalho da Silva, que lhe narrou a longa caminhada até Caieira Velha no litoral do Espírito Santo (1978, 30′) na busca da Terra Revelada. Nascida na aldeia Palmeira Sagrada, no Paraguai, ela passou pelas ruínas de Santa Maria, na Argentina, por diferentes aldeias do sul do Brasil, viveu em Minas Gerais até chegar na Aldeia Boa Esperança (ES). Andrea levou essas imagens e o canto ritual de um velho guarani para mostrá-las nas aldeias de Cananeia (SP).

Mas a obra prima, que justifica a passagem de um cineasta pelo planeta, foi “Serras da Desordem” (2006), premiado no Festival de Gramado com o Kikito de melhor diretor. Ele filmou 140 horas no Maranhão, no sertão da Bahia e em Brasília para contar a história de Carapiru, um índio Guajá, que depois de ter sua aldeia incendiada por jagunços nos anos 1970, foge sozinho, perambula pelas serras do Brasil Central por dez anos até ser acolhido numa comunidade rural da Bahia, distante 2.000 km de sua aldeia. Embora não fale uma palavra de português, eles acabam se entendendo, numa prova irrefutável de que a solidariedade é mais importante que a língua, para se comunicar e compreender o outro. A alegria de viver de Carapiru, apesar do trauma do massacre, assim como a convivência com os moradores da comunidade, compartilhando comida, afeto e trabalho, é algo mágico que restaura a esperança no ser humano.

Atores de si mesmos

Trata-se de um fato histórico recente que foi amplamente noticiado na mídia, depois que o sertanista Sydney Possuelo localizou Carapiru e o levou em seu próprio carro a Brasília, em 1988, onde seria entrevistado pelo Jornal Nacional. Para isso, o chefe de Posto da Funai enviou da aldeia do Maranhão um bilíngue falante de guajá e português. No momento em que os dois se defrontam, o jovem intérprete, de 18 anos, reconhece Carapiru, seu pai, de quem fora separado pelo massacre e incêndio da maloca.

– “Essa história do reencontro, de uma família despedaçada, me tocou, porque eu estava vivendo longe de um filho pequeno” – disse Andrea.

O filme é  uma reconstituição dos fatos, uma encenação na qual Carapiru e os demais personagens interpretam anos depois seu próprio papel. Além disso, reúne material de arquivos, gravações feitas pela televisão, depoimentos, recortes de jornais, entrevistas, misturando documentário, ficção, arte e vida.

Não tive mais contato pessoal com Andrea Tonnaci que, no entanto, a cada semestre, me acompanha e vai continuar acompanhando nas salas de aula, quando exibo “Serras da Desordem”. Ele nos deixou na sexta-feira (16), vítima de um câncer no pâncreas, mas seguirá presente cada vez que as pessoas se encantarem com a beleza imorredoura de seu filme – um canto de esperança, de resistência e de solidariedade – que nos ajuda a refletir sobre a alteridade e nos coloca na pele do outro.

P.S. – A trajetória de Andrea Tonacci nos Andes foi reconstituída a partir da matéria que publiquei no Porantim (Manaus, Ano III, nº 17, abril/1980, pg.10) e às lembranças dos antropólogos Renato Athias e Ademir Ramos presentes no evento. As citações são da entrevista à revista Contracampo(2005) feita por Daniel Caetano, Francis Vogner, Francisco Guarnieri e Guilherme Martins.

 

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