Ricos não precisam da ajuda de Deus. Eles já têm a proteção do Estado, por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

– Eu queria agradecer a Deus por mais esta conquista e dizer que sem a força dele, a minha vida e a vida de todos aqui não fariam sentido.

Não posso negar que sinto uma certa tristeza em assistir a cerimônias de premiação, finais de campeonatos esportivos, formaturas e afins nas quais o discurso do agraciado seja inteiramente baseado em alvíssaras a Jeová, Alá ou demais nomes dados ao deus ou à deusa de Abraão – como não houve comprovação de gênero, cabem os dois.

Não tanto pelo ato em si. Ele pode atribuir a razão de sua vitória a quem quer que seja – deus, sua mãe, Frank Underwood, Daenerys Targaryen, J. Pinto Fernandes – que, como Carlos Drummond de Andrade avisou, não estava na história.

Já trouxe essa discussão aqui, mas acho que vale retomá-la diante de pesquisa Datafolha divulgada, neste domingo (25), mostrando que nove entre dez brasileiros dizem que seu sucesso financeiro se deve a um deus. Essa porcentagem supera 90% entre os religiosos, fica em 70% entre os sem religião e o dado que me deixou chocado: 23% dos ateus concordam com isso. Gente, pela amor de Deus, assim vocês mancham nossa reputação…

Particularmente, acho que deus – se existir – não gosta de ser culpada por cada gol na face da Terra, cada carro comprado, cada apartamento financiado, pelo sucesso de um negócio próprio. Nem mesmo deve gostar de futebol e, ao que tudo indica, não tem uma concessionária, uma imobiliária e não trabalhou para o Sebrae. Desconfio que, se houver uma Inteligência Suprema, será esperta o bastante para não influenciar na vida de ninguém. Pois, muitas vezes, isso significaria prejudicar outra pessoa. E a vida não é um campeonato do tipo ”quem tem mais fé leva”.

É claro que a teologia da prosperidade, pregada por muitas denominações evangélicas, vem acompanhada de ações concretas. As comunidades formadas nas igrejas funcionam como uma rede de apoio mútuo, ajudando seus membros a encontrarem trabalho. Segundo pesquisa do Instituto Pew, 56% dos evangélicos atuam dessa forma contra 35% dos católicos. Ou seja, vende-se que a saída para a pobreza é levar o pobre à igreja.

A pesquisa Datafolha aponta também que 30% dos evangélicos neopentecostais concordam com a frase ”as pessoas pobres, em geral, não tem fé em Deus, e por isso não conseguem sair dessa situação” – número maior que entre católicos e não-pentecostais e pentecostais. A pesquisa também aponta que, quanto menor a escolaridade e menor a renda, maior a gratidão a Jeová pelas conquistas terrenas.

Quem não teve a sorte a lhe sorrir desde o berço busca ajuda no intangível. Esse grupo, que mais precisa do Estado para ter a dignidade garantida, acaba buscando outras instituições ao perceber que o governo não o coloca como prioridade. Encontram na igreja a rede de proteção social negada pelo Estado.

Daí, parte dessas instituições religiosas, pelo menos as que têm planos de poder, se organizam para controlar o Estado, fincando pés no Legislativo, no Executivo e no Judiciário.

Com Marcelo ”Universal” Crivella, por exemplo, o neopentecostalismo televisivo deu um salto para a implementação de seu projeto de poder. Desconfio que o Brasil terá um presidente assumidamente evangélico neopentecostal antes de ter um presidente assumidamente ateu. Para isso, certamente terá que se distanciar de extremistas, como Silas Malafaia – que surtou, no Twitter, na noite do segundo turno das eleições municipais deste ano, xingando a Globo, a Veja, o PT, o PSOL, Freixo, a esquerda, e bradando ”Chora Capeta” – assim, sem vírgula separando o vocativo.

Durante os últimos anos, um naco conservador dos congressistas religiosos formou uma espécie de bancada fundamentalista, crescente e barulhenta, bloqueando projetos de leis que efetivam direitos relacionados à saúde da mulher, educação e questões de gênero – sem contar as tentativa de retrocesso nos direitos já vigentes.

Ressalte-se que, se por um lado, há parlamentares evangélicos que vociferam contra a dignidade humana, há outros que atuam na defesa dos direitos das minorias, mesmo nos casos em que há conflito com as interpretações hegemônicas de sua própria religião, da mesma forma que ocorre com muitos católicos. Um pessoal cujas bases teológicas estão muito mais próximas ideologicamente de mim – que creio no Palmeiras e no combate à injustiça social – do que das bases de muita gente de sua própria igreja.

É importante fazer essa ressalva neste momento de polarização extrema e débil, em que pessoas são julgadas politicamente por sua fé.

O problema nunca é a fé de alguém. Pode-se acreditar na onipotência de Homer Simpson, na onipresença de Goku ou na onisciência de Pikachu (afinal, a sociedade de consumo transformou esse pessoal em deuses há muito tempo…) e ser um governante bom e justo. Mas se essa fé é usada como instrumento para causar dor e sofrimento, como caminho para reduzir a dignidade de outra pessoa ou para limitar os direitos fundamentais de outro grupo social, então essa fé é contrária aos princípios constitucionais que um eleito para o cargo de prefeito, governador ou presidente deve assumir.

Entendo que as pessoas mais pobres sintam-se devedoras da igreja e da rede de proteção das quais se beneficiaram para conseguir empregos ou alento. Mas isso é um sinal urgente de que o Estado (teoricamente) laico brasileiro deve reocupar o espaço que é seu por dever a fim de garantir o mínimo de dignidade a elas. Que já contribuem com seus impostos para que uma rede de proteção pública funcione a contento e não precisariam financiar mais ninguém.

Ao mesmo tempo, o óbvio: ricos não precisam de ajuda da igreja. Eles já contam com a proteção de um Estado que os salva de contribuir com impostos sobre dividendos recebidos de suas empresas, impostos sobre grandes heranças e fortunas, porcentagens maiores no imposto de renda, enquanto joga a fatura da crise econômica nas costas dos mais pobres – na forma de limitação de gastos públicos (a aprovada PEC do Teto) e de reformas trabalhistas e previdenciárias feitas de forma draconiana.

Se houvesse um deus ou deusa, esse ser supremo sentiria uma vergonha profunda da suruba entre o Estado e os mais ricos. E guardaria tudo para o Dia do Juízo Final.

 

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