Ano novo é ritual de passagem e, como tal, não se presta a fotos ou exposições públicas. São coisas que fazemos dentro de nós, no recôndito do sagrado. Por isso, escapou-me a triste notícia do encantamento de Sérgio Grando, nessa virada do tenebroso 2016. Na radiante manhã desse 1 de janeiro, fui ver as mensagens e lá estava essa, solitária, num dos aplicativos que a isso se dedicam. Sei que a morte é limiar para outro universo, tempo em que o corpo volta a ser só energia. Ainda assim, a ceifadora sempre nos toca, porque nos lembra – impávida – de que nossa hora também vai chegar. Por isso choramos. Pelo que se foi e pela pena que nos dá saber que também nós iremos…
Grando não era meu amigo, mas era um companheiro. Com ele trabalhei no tempo em que foi prefeito. Naqueles dias, convidada pelo querido Luis Sabanay, fui fazer o trabalho de divulgação da proposta de Orçamento Participativo, incorporada ao programa da então Frente Popular. Tinha como parceiro o agora precioso amigo Raul Fitipaldi. Esse incrível trabalho que veio da plataforma do PT mergulhava na vida dos bairros, das comunidades, e com os moradores discutia e decidia como o orçamento da cidade seria usado.
Foi uma experiência monumental. Com reuniões em todos os cantos de Florianópolis, podíamos testemunhar a democracia participativa se fazendo real. Não foi coisa fácil, afinal, aquela era a primeira vez na história do município que a prefeitura olhava para os moradores como sujeitos da cidade. Em princípio, tudo era visto com muita desconfiança, mas, na medida em que avançava, a participação crescia. As pessoas decidiam qual rua era prioritária para calçar, se o melhor era colocar esgoto, se precisava melhorar a mobilidade. Um exercício de participação único e generoso.
Também pude testemunhar a subida do primeiro ônibus no Mont Serrat, no maciço do Morro da Cruz. Durante décadas, o povo das comunidades dos morros vivia a dureza de carregar suas compras e seus corpos, ladeira acima, sem que ninguém se importasse. O Grando se importou e colocou os micro-ônibus para fazer as linhas nos morros. Lembro como se fosse hoje dessa primeira viagem, que foi gratuita. A alegria inenarrável dos meninos, com a cabeça para fora da janela, acenando para as famílias que assomavam nas janelas, olhando espantadas, o ônibus subir, subir, subir. E as senhorinhas mais velhas, com suas sacolas de supermercado, rosto em festa. Dentro do ônibus, com eles, ia o Grando, rindo o mesmo riso de criança. Até hoje essa cena me emociona, porque era tão pouco. Uma decisão quase pueril, mas que nunca, ninguém, havia tomado.
O Grando não era fácil também. Turrão e teimoso. Tínhamos divergências, na prefeitura e depois. Mas, uma coisa é certa. Ele amava a cidade e, mais que tudo, tinha respeito pelas pessoas. Durante o seu mandato, elas, as pessoas, foram o seu foco. Era para a gente de carne e osso, a maioria, que ele governava. Isso fazia dele um prefeito especial. E como diria Lula, “nunca antes nessa cidade”, alguém administrou com esse olhar.
Há pouco tempo o vi, andando na Felipe Schmidt, achei que ele estava um pouco magro e até comentei com minhas amigas. Não sabia que estava doente. Vestia uma roupa toda branca, como se fosse um caribenho. E, ao longo da sua caminhada pelo nosso/dele amado calçadão, ia cumprimentado as pessoas. Parou nas mesinhas de dominó, falou com um ou outro. E os manés históricos, entre uma olhada nas pedras do jogo e outra no homem que passava, sorriam e gritavam seu nome. A oligarquia que domina a cidade não permitiu que ele se elegesse outra vez prefeito, mas a vida real mostrava que as gentes sabiam muito bem que aquele era um homem que havia feito muito pela nossa capital. Ele estava na memória e no coração.
Naquele dia, enquanto observava seu passeio demorado pelo calçadão cheguei a pensar: “tenho que escrever algo sobre o Grando”. Não o fiz. A ceifadora agora me faz recorrer a essa lembrança. Por isso cuido para homenagear as pessoas que amo quando vivas. Porque depois que partem, já não lhes importará mais.
De qualquer sorte fica aqui o registro. O eterno professor de matemática, que mais parecia um urso, ainda que com generosos olhos, já não está mais. Não foi um ser perfeito, teve seus equívocos. Mas, nunca traiu a gente que o elegeu. De fato, nos quatro anos que foi prefeito cumpriu o que prometeu, coisa difícil de encontrar na política. E quando saiu da prefeitura deixou a cidade melhor. Construiu uma linda trajetória.
Fica o meu carinho para a família, especialmente para minha amiga Silvinha, parceira de lutas e de vida. A morte não é o fim, ela é só uma mudança de roupa. Grando cumpriu. E deixou sua marca. “Saúde e felicidade a todos”, era seu cumprimento tradicional e inesquecível. Tomara que um dia isso se cumpra para todos nós que vivemos na velha Desterro.
Valeu, compa!!!!