O limite do intolerável: transformar uma chacina em uma competição macabra

Por Roberto Tardelli, no Justificando

Qual é o limite do inaceitável? Existe um denominador comum, que uniria o mais facinoroso defensor da pena de morte e o mais radical dos abolicionistas penais? A resposta sempre foi óbvia para mim, não, claro que não. Nada há que os uma, nenhuma ponte poderia fazer isso. Ninguém.

Pensava isso até ontem, quando me deparei com a mais estúpida, horrorosa, canalha, opinião sobre os massacres nos presídios do norte do país, que alimentaram as velas do ódio, que fizeram com que pessoas novamente se revelassem e exteriorizassem os mais sombrios pensamentos. Bloqueei gente de baciada e ainda estou bloqueando, quando tive minha atenção para publicação, postada na página de Major Olímpio:

PLACAR DOS PRESÍDIOS
MANAUS 66x 30 RORAIMA
Vocês podem
Fazer Melhor
#euAcredito…

Esse, talvez, seja o limite do intolerável. Alguma coisa que causaria náusea a qualquer pessoa, minimamente humanizada, transformar uma chacina em uma competição macabra. É alguém que se divertiu com as mortes horrendas, é alguém revelar que é uma pessoa oca de alma, de espírito, de um mínimo de sentimento de compaixão.

Um condenado à pena de morte tem direito – nos países em que há esse flagelo jurídico – possui alguns direitos, no mínimo, de alguém orar por ele, de alguém, antes da hora fatal, revelar-lhe algum compadecimento.  Mesmo os mais desabridos defensores da pena de morte a submetem, antes, a um processo legal, a eles, imagina-se, deve horrorizar as mortes causadas nesses momentos de insanidade coletiva. Deve ser a eles, esses uns que defendem a pena de morte, obrigatório que seres humanos sejam tratados como seres humanos, ainda que privados de liberdade. Os Adoradores de Tio Sam hão de admitir que no altar das execuções, alguém tenha lido ao preso seus direitos, no momento em que foi capturado. Defender a pena de morte é ainda diferente de saciar-se com o sangue arrancado nos corredores de uma cadeia imunda e superlotada. Mesmo os defensores da pena de morte não podem acolher a manifestação do ilustre deputado, que vulgarizou as mortes, ao levá-las a um nível ético-moral rastejante e infame.

Major Olímpio revelou, na postagem, que não há limites para decadência dos valores morais que compõem uma sociedade, qualquer sociedade, com um mínimo ético civilizatório. Não basta termos o idioma comum, território comum, bandeira, moeda, seleção e hino, sem que tenhamos um mínimo de identidade e de solidariedade, se não aos que morreram trucidados, ao menos, em relação a seus parentes, posto que os tem, tanto quanto os tem Major Olímpio.

As ovelhas cristãs, católicas, ouviram do Papa Francisco um pedido de compaixão. Custa crer que as mais de 22.000 pessoas que curtiram essa opinião não se enojassem com ela, caso os mortos fossem cães abandonados nos canos públicos.

Esse homem é titular de mandato que lhe foi outorgado pelo voto popular, livre e secreto, foi candidato a prefeito de São Paulo. Tem, portanto, força no partido a que pertence, ironicamente, Solidariedade, que o aceita e o fortalece, na medida em que o apresenta como aquele que, dentro de suas hostes, melhor faria pela cidade-estado, onde perambulam milhares de miseráveis, capazes de farem despertar-lhe uma outra macabra competição, de morte aos sem-teto, aos viciados, aos sem-nada.

Esse homem tem milhares de eleitores, que nele vêem alguma réstia de esperança. Não é a esperança de melhoria, mas a esperança do ressentimento e da destruição que pode provocar e está provocando, do ódio que mantém acesa a pira ensandecida do racismo, da discriminação de gênero, do atraso cultural.

Talvez represente Major Olímpio o nível máximo da degradação moral que a Guerra do Ódio pode produzir e deve ser ele o alerta de que, caso nos descuidemos, passemos a nos identificar com ele, antes mesmo de abominar seu pensamento. Corremos o risco de aplaudi-lo quando deveríamos expulsá-lo de qualquer ambiente de civilidade.

Major Olímpio deve ser o Gabinete da comunidade de segurança e de boa parcela das carreiras jurídicas, que no afã de defender interesses corporativistas, podem estar a se aliar com aquele que deveriam levar às barras do tribunais. Quem se compraz da forma que o fez com uma tragédia de ciclópicas dimensões não poderia ter lugar garantido no pior dos parlamentos, por ausência mínima de decoro.

Minha tristeza aumenta quando me dou conta que ele, Major Olímpio, nos representa, ainda que seja no que temos de mais odioso, no que temos de mais repugnante. Talvez seja esse senhor nosso marco-zero da estupidez, de nossa capacidade pelo culto à barbárie, de nosso cinismo vil. Ele é o limite do inaceitável.

Aos que o seguiram, meus pêsames pela morte espiritual de que padeceram.

Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway. Procurador de Justiça do MPSP Aposentado.

 

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