Da função simbólica do discurso de ódio à naturalização da barbárie

Por Cícero Araujo, no Justificando

No longa-metragem “Ele Está de Volta” (Er Ist Wieder Da, 2015,) produção alemã da mais alta estirpe disponível na netflix, a reencarnação de Hitler reaparece em pleno século XXI, devidamente ornado em sua indumentária nazi. Durante as filmagens da obra que resulta duma mistura documentário-ficção (contém spoiler), o notório personagem faz uma turnê por toda Alemanha abordando as mais diversas pessoas por onde passa acompanhado de um youtuber, o qual lhe projeta na mídia.

No prolongado percurso pela Alemanha, constata-se algo estarrecedor para qualquer pessoa de mente sã: somente duas pessoas reagem negativamente à imagem-símbolo do nazismo, isso numa gravação de pelo menos 300 horas com entrevistados reais! Entre uma selfie e outra com “Hitler,” cidadãos de bem destilam sua “opinião” acerca de temas como estrangeiros, gays, refugiados, bandidagem, criminalidade e afins, os quais seriam, para eles, algumas das razões das mazelas atuais da sociedade alemã.

Na tênue fronteira entre ficção e realidade, Hitler é tido como um comediante que não consegue sair do papel e, assim, vira uma celebridade. No entanto, ao passo que ninguém pareça estar levando a situação a sério (parece com alguém no Brasil?), ele se prepara para enfim desencadear o Terceiro Reich através da grande visibilidade que ganha na TV.

Mesclando discursos de naipe extremamente punitivista a um populismo político-midiático, como desemprego e recessão –, não precisa fazer muito, vai apenas “jogando coliformes fecais no ventilador” e, bingo! Há sempre um idiota útil como receptor-transmissor!

Uma ideia fascista propalada através de um discurso de ódio é como um parasita hospedeiro, o qual se aloja numa mente conservadora e reacionária, sugando toda sua racionalidade e qualquer senso de alteridade, direcionando-a a extremismos numa dinâmica de flerte com a barbárie.

Não obstante, diga-se, esta é uma metáfora sordidamente providencial para entender o crescimento da disseminação das ideias fascistas no Brasil de hoje: elas se expressam nos clichês punitivistas como “bandido bom é bandido morto”, “não tinha nem um santo”, “tem que matar é mais,” dentre outros, os quais saem da esfera do mero discurso e reconduzem a práticas de barbárie – estas vão dos linchamentos em postes às chacinas nos presídios; da ação de policiais contra jovens negros ao descaso e conivência de secretários de segurança pública e governantes com a situação prisional em que o país se encontra.

Nesse sentido, é importante trazer ao debate o pensamento de Bourdieu, o qual enuncia que o poder simbólico “só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário”. (…). Desse modo, a influência psicológica que a palavra tem sobre quem “recebe”, seja o imperativo mais escancarado ou a ordem mais sutil e velada, em ambos, se exercem forte poder simbólico.

Para Bourdieu, “o poder simbólico é esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.” (p. 7-8); Isto é, um “poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica)” (p. 14).

Em Bourdieu, as produções simbólicas são instrumentos de dominação. Isto significa que o campo de produção simbólica é um microcosmos da luta entre as classes. Por isso, a classe dominante, cujo poder é calcado no capital econômico e político, visa impor a legitimidade da sua dominação por meio da própria produção simbólica, reproduzindo nuances punitivistas contra os pobres através das próprias instituições de Estado.

Por sua vez, o autor também interage com a tradição marxiana em sua análise do poder simbólico, sobretudo no tocante a ideologia enquanto instrumento de dominação [para Marx], cujas “ideologias, por oposição ao mito, produto coletivo e coletivamente apropriado, servem interesses particulares que tendem a apresentar como interesses universais, comuns ao conjunto do grupo (…)”, é a este processo que Marx chama de falseamento da realidade, ou falsa consciência, alienação.

Um espectro fascista ronda o imaginário social dos cidadãos de bem brasileiros… Na disseminação do ódio não é necessário, para surtir o efeito desejado, apenas o discurso de ódio nu e cru, este deve ser alternado e mesclado com nuances legitimadoras, com a carga e a aparência de verdade.

Por isso, no âmbito da produção simbólica do discurso jus punitivista, convém destacar que toda ação ou omissão se inscreve num determinado contexto, e o contexto confere significado às ações, o contexto é sempre uma narrativa e a narrativa punitivista e de criminalização da pobreza, das lutas e os movimentos sociais é forte na sociedade.

Partindo dessas premissas, em razão da função simbólica exercida na narrativa punitivista-criminalizante, convém observar sua dimensão probatória, isto é, não basta uma inferência não probatória (do tipo): “só pode ser bandido mesmo!”; ou, “mereceu!” numa tentativa discursiva de abolir a narrativa e a garantia da presunção de inocência. Ademais, quando um acusado, suposto criminoso, é acusado face determinado delito, é preciso a produção de provas em juízo, o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, a preservação da presunção de inocência, o trânsito em julgado. Para a professora Vera Regina Pereira de Andrade:

“É precisamente a lei e o saber (ciências criminais), dotados da ideologia capitalista e patriarcal, que municiam o sistema de uma discursividade que justifica e legitima a sua existência (ideologias legitimadoras), coconstituindo o senso comum punitivo reproduzido, por sua vez, pelo conjunto dos mecanismos de controle social, com ênfase contemporaneamente para a mídia. (p. 134)”

Este é o tipo de discurso que alça o sistema penal brasileiro estar entre os mais punitivistas em relação a outros países, sendo o Brasil o 3º colocado em matéria de número de presos, condenando o suposto criminoso antes mesmo do trânsito em julgado, antes das etapas processuais, criando assim, uma massa carcerária superior ao número de vagas no sistema penitenciário, e em evidentes condições sub-humanas.

Resultado sarcástico e banal do sistema penal brasileiro retroalimentado pela sanha punitivista, são as chacinas ocorridas em presídios nesse primeiro mês do ano, a mais recente, em Alcaçuz, nas proximidades de Natal, estado do Rio Grande do Norte, resultando em 24 decapitados e 2 carbonizados, numa soma cruel de 26 presos mortos, segundo informações do Governo do Estado. Somente no ano de 2016, foram pelo menos 372 presos mortos. Já, entre os dias 1 a 15 de janeiro de 2017 são 134 detentos mortos, o que representa algo em torno de 36% em relação aos números do ano passado.

Na esteira desse entendimento, à luz de uma importante teoria criminológica americana (labeling approach theory), convém salientar, o sistema criminal brasileiro, seleciona um perfil pré-determinado de autor desviante conforme um etiquetamento social do individuo. Em que pese esse processo de etiquetamento social não é um fenômeno isolado nem tampouco abstrato, se traduz na realidade de milhões de jovens negros e moradores das periferias, exatamente o perfil da grande massa de presos hoje no Brasil.

Por ser seletivo o sistema criminal, o etiquetamento (expressão simbólica), se aplica no dia a dia de milhões de jovens pretos e pobres quando são abordados pelas polícias, ou parafraseando o professor Riccardo Cappi, seria um cenário em que “o camburão da polícia seleciona sua clientela”, depois joga nos presídios lotados um perfil determinado gente.

É importante destacar ainda, este sistema penal é herança da política criminal dos séculos XVIII e XIX, e na seletividade imperam conceitos como “noção de periculosidade”, “impressão sobre a conduta” e “comportamento” do agente. Tais elementos tem dupla função: servem como guia para a polícia reprimir e criminalizar o inimigo penal na sociedade e, ao mesmo tempo, para acautelar o meio social, numa dinâmica em que se invertem o princípio do in dubio pro reo a “in dubio pro societate”.

Em nome da Ordem Pública e, como forma de acautelar o meio social, o sistema criminal mantém presos provisoriamente durante anos a fio sem direito a julgamento. No entanto, importa ponderar, se a ordem pública à época do fato em que o indivíduo supostamente cometeu o delito estava abalada, não existe mais motivo para permanência da prisão após largo lapso temporal, não existe fundamento constitucional em o réu continuar preso cautelarmente se o abalo à ordem pública cessou à época do fato. Quem admite que a ordem pública esteve ou está abalada, também admitirá que um dia o abalo cessará.

Não bastasse isso, vigora atualmente um clamor do senso comum-midiático em torno da ideia de segurança pública e, não obstante, o que move o clamor por segurança e ordem pública é o medo. O medo tem a função de retroalimentar o clamor punitivista por mais pena, mais cadeia contra o outro, o tido como inimigo.

Dessa forma, o cidadão médio impulsionado pelo desespero e medo da violência e criminalidade cerca-se em seu mundo e implora que o Estado prenda mais, puna mais, elimine aquele outro, o inimigo que tira seu sono. Segurança pública e presídio tornam-se meras mercadorias da cultura do medo imposta pela falsa ideia de segurança.

Portanto, enquanto o discurso punitivista se propala aos quatro ventos, o direito enquanto possibilidade de acesso à justiça se encastela cada vez mais entre os tribunais, palácios, togas e discursos jus demagógicos. Como numa metáfora kafkiana, as hierofanias jurídicas de um judiciário encastelado se distanciam cada vez mais da realidade, ao passo que um viés extremamente reacionário do judiciário ganha força na sociedade quando pune mais, quando criminaliza mais, nutrindo e respondendo, assim, uma cólera coletiva e sede de vingança.

Por fim, vale dizer, o papel que o poder simbólico do discurso de ódio exerce na sociedade provoca certa relativização dos direitos e garantias constitucionais, bem como, a consequente naturalização da barbárie. Neste jogo de ideias, símbolos, discursos punitivistas e poder, momentos de crises e desestabilização política e moral são o melhor cenário para disseminação e fortalecimento de ideias fascistas. Hitler está prestes a reencarnar em centenas de milhares de cidadãos de bem Brasil afora!

Cícero Araújo é militante do MST/RN, integra o Setor de Direitos Humanos e é graduando em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS.

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PIERRE, Bourdieu. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

Van DIJK, Teun A., Discurso e Poder; Judith Hoffnagel; Karina Falcone, org. 2. Ed., 1ª reimpressão – São Paulo: Contexto, 2012.

ZAFFARONI. Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. Sérgio Lamarão, Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2007. 3 ed. 2011, 3 reimp. 2015.

Destaque: Rebelião no presídio de Natal.

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