Um mergulho na História: o nascimento e formação do Complexo da Maré

Hora do medo

Quais são nossos medos?
Na hora do medo haviam tábuas podres,
Crianças caindo na água, ventanias, tempestades, ratos, remoções…
Na hora do medo havia uma bala perdida,
Violência, morte brutal…
Os medos que nos perseguem podem nos paralisar
Mas também nos motivar a lutar
Para a transformação da realidade.

Poema no muro do Museu da Maré

Simon Marijsse* – Rio On Watch

Hoje o Complexo da Maré é uma aglomeração de 16 favelas na Zona Norte do Rio, o maior complexo de favelas da cidade. Suas delimitações geográficas são definidas pela Baía de Guanabara e três vias expressas: Linha Vermelha, Linha Amarela e Avenida Brasil. Lar de aproximadamente 130.000 pessoas, de acordo com informações do censo de 2010, a Maré foi oficialmente reconhecida como bairro em 1994. Apesar desses 130.000 indivíduos possuírem histórias e perspectivas únicas, o presidente da CEASM (Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré) Lourenço Cesar da Silva afirma: “há algo de universal nessa história que perpassa todas as comunidades da Maré”.

Na era pré-colonial, essa região era um lugar quieto e tranquilo: lar de um arquipélago de nove ilhas na Baía de Guanabara, onde pescadores moraram por mais de 8.000 anos. Suas memórias ancestrais ainda são refletidas nos nomes dos bairros atualmente, como Inhaúma, Timbau e Pinheiro.

Na primeira metade do século 20, o Estado Novo formado no governo Getúlio Vargas tinha projetos visionários para esse pântano: um grande anel industrial. Em 1946 a via expressa Variante Rio-Petrópolis, posteriormente chamada de Avenida Brasil, foi construída para melhorar a conexão entre o Centro e os subúrbios. Esse vasto esforço trouxe muitos projetos industriais para a região, criando uma zona industrial oferecendo sólidas condições para as pessoas se mudarem e habitarem a área.

A expansão da Zona Sul da cidade, ao redor de Copacabana e Botafogo, e a construção da Cidade Universitária, um campus universitário planejado para ser em uma ilha que ainda não existia, demandava muita mão de obra. Entre 1949 e 1952, para construir o campus, o arquipélago do Fundão foi drenado e as ilhas originais anexadas para formar o que hoje é conhecido como Ilha do Fundão, localizada a leste da Maré.

Consequentemente, a construção da Avenida Brasil é fundamental para compreender a Maré, a maneira que ela evoluiu e a forma que aparece no mapa atualmente. Isso não apenas indica uma das suas fronteiras geográficas, mas mais importante, foi a principal razão para as pessoas se estabelecerem na vizinhança, e forneceu meios para as pessoas conseguirem materiais de construção para construírem suas casas. A Avenida Brasil simboliza trabalho e progresso. Mesmo hoje, a Avenida Brasil conecta muitos trabalhadores e estudantes da Maré aos seus trabalhos e universidades na Zona Sul ou Centro. A via expressa está sempre presente na vidas dos moradores.

Esses grandes projetos industriais aconteceram em um momento de seca severa no nordeste brasileiro. Isso estimulou um êxodo rural do Nordeste para as cidades do Sudeste, principalmente Rio e São Paulo. Na Maré, esses migrantes se juntaram aos pescadores locais na costa. Naquele tempo, o Morro do Timbau era a única área continental, cercada de água e pântano. Conforme a migração se intensificou, as pessoas construíram palafitas, acima da água, criando a comunidade Baixa do Sapateiro em 1940.

Essas comunidades se expandiram rapidamente durante os anos 50 e 60, com mais e mais palafitas ocupando bancos de areia e áreas rasas. As comunidades de Parque Maré, Parque Rubens Vaz e Parque União começaram a se desenvolver. Esses eram os dias do rola-rola, que atravessava a recém-construída Avenida Brasil com grandes barris de madeira para pegar água em Bonsucesso. Era a época da primeira categoria do medo de acordo com o poema de abertura desse artigo: um tempo de inundação, ventanias e tempestades, tábuas podres e remoções.

A favelização da área reflete um grande padrão nacional de urbanização. Entre 1950 e 1991 a porcentagem de brasileiros vivendo em cidades aumentou de 36,2% para 75,2%. Os anos 50 e 60 também coincidiram com projetos de modernização na Zona Sul e grandes processos de remoções das favelas. O antigo presidente da Associação de Moradores do Timbau Antônio Carlos Pinto Vieira relembra: “Eu tenho notícias de processos de remoções de moradores, já na década de 50. Mas foi um processo de resistência também. A Maré foi se formando apesar desse processo. Aqui também surgiram as antigas associações de moradores, em um processo de associativismo. A Favela de Timbau foi fundada em 1954 e Baixa do Sapateiro em 1956 o 1957″.

Durante o regime militar dos anos 60, sob a autoridade do governador Carlos Lacerda (1961-1964), um grande projeto de modernização varreu a cidade. Túneis, viadutos e parques, concentrados na Zona Sul, inauguraram a nova imagem de cartão postal do Rio de Janeiro. Muitas favelas na Zona Sul passaram por remoções, com moradores se mudando para áreas mais pobres e remotas, como a Maré. A comunidade Nova Holanda foi especificamente construída em um grande aterro como um projeto de moradia temporária em 1960 para os que foram removidos. Até o início dos anos 80, essas seis favelas–Morro do Timbau, Baixa do Sapateiro, Parque Maré, Parque Rubens Vaz, Parque União e Nova Holanda–formaram a configuração original da Maré.

Em 1979, durante a ditadura, o Projeto Rio foi implementado pelo Banco Nacional de Habitação. Esse projeto, estabelecido pelo Ministério do Interior, vislumbrou a criação de outro grande aterro na região da Baía de Guanabara. Dessa vez o foco não era no arquipélago do Fundão, mas nas comunidades da Maré. A proposta do projeto continha a remoção de favelas na Maré e a importação de um modo de vida “moderno” e “civilizado”.

Os diferentes conselhos das comunidades se opuseram a essa ameaça. O comprometimento eventual permitiu que os moradores ficassem na região, mas com as palafitas removidas. Moradores dessas cabanas foram movidos para complexos habitacionais em outros aterros próximos–Vila do João, Vila do Pinheiro, Conjunto Pinheiro e Conjunto Esperança–e cada um formou uma das favelas da Maré hoje. Pode-se argumentar que o projeto de remoção de moradias na verdade aumentou o crescimento das favelas.

Alguns moradores de hoje ainda lembram dos dias quando eles desciam o morro do Timbau e passavam por ruas de casas de palafita, ou da época em que eles tiveram que se mudar da Baixa do Sapateiro para a Vila do João.

Quatro novas comunidades foram criadas nos anos 80 enquanto a Nova Maré foi construída nos anos 90, quando moradores foram removidos das últimas palafitas ainda de pé em Ramos e Roquette Pinto. Finalmente, o Conjunto Salsa e Merengue foi construído pelo governo para abrigar, em um primeiro momento, moradores afetados pelas fortes chuvas nos anos da década de 90. Em 1994, a Prefeitura do Rio oficialmente declarou o Bairro da Maré como sendo a 30ª região administrativa do Rio de Janeiro, estabelecendo-o como um bairro reconhecido, como a Rocinha e o Complexo do Alemão.

Cada comunidade da Maré tem sua própria história, mas a narrativa das comunidades se forma quase literalmente d’água, através de processos tanto formais quanto informais simultaneamente, e dando coesão ao Complexo da Maré, que forma e compartilha uma narrativa única do bairro de maneira geral. O processo gradual de consolidação urbana se estende por mais de 80 anos e não esconde as heterogeneidades, complexidades e identidades operando dentro desse vasto distrito. Contudo, encarando processos de ocupação militar e intervenções policiais, essa diversidade histórica fica em suspenso na voz da resistência. O elemento universal que liga a Maré, fora sua geografia, e a enlaça às outras favelas é o direito de resistir e de reivindicar por voz.

*Está pleiteando um Mestrado em Conflitos e Desenvolvimento na Universidade Ghent, realizando pesquisas etnográficas sobre narrativas religiosas contemporâneas. Ele é editor de assuntos internacionais para o Politheor: European Policy Network.

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