Por Roberto Tardelli, no Justificando
Eu nunca havia caído de pensar sobre o tema, mas a escolha de um dos onze semideuses é uma dessas coisas de fazer arrepiar os pelos mais íntimos, com o perdão da crua sinceridade.
O candidato, na verdade, não se apresenta, mas se oferece a uma vontade suserana. Antes, precisa passar pelo ritual iniciático e ser aceito no banquete desses semideuses, que não podem se arriscar a ter entre os pares um semideus meio destronado, meio contestador, meio querendo saber demais como se decide o quê. Os semideuses tem uma rotina de semi-eternidade e não podem correr riscos, levar sustos, todo aquele que chegar deve saber comportar-se à mesa do banquete, deve saber como usar os talheres do poder, com impiedade e discrição.
Após a vontade suserana, uma sabatina no Senado. Essa próxima, muito curiosa, em que réus sabatinarão seu juiz. O Brasil, dizia Tom Jobim, não é para principiantes e só mesmo Tim Maia conseguiria ser seu síndico; uma pena que os dois já tenham ido embora, cantando na chuva eterna.
Os requisitos são altamente subjetivos: notável saber jurídico e reputação ilibada, seja lá o que for reputação ilibada. Nelson Mandela, teoricamente, após uma vida inteira preso, não teria. Angela Davis, opa, também não. Freud, expulso de Viena, teria muito a se explicar para conseguir a medalha de “reputação ilibada”. Galileu precisaria de uma revisão criminal, cujo processo durou quase 500 anos, para poder colocar um xis nesse quesito.
Notável saber jurídico é algo tão imaterial quanto exigir-se que o candidato fosse “feliz e realizado”. Ninguém nunca saberá quem não tem notável saber jurídico, algo que transcende o diploma de Direito. Resumindo, em termos claros, notável é aquele saber, assim, meio Juliana Paz, entendem? Aquele saber que não precisa ser explicado.
Por isso, quando um “candidato”, que nunca aparecerá ao mundo dos vivos, escreve e assina que o casamento é indissolúvel, que união homoafetiva e bestialismo se equivalem, que a família se assenta na obediência dos filhos aos pais e da mulher ao marido, que a função do casamento é a procriação, que a saúde e educação são prioritariamente privadas, ele revela um fato que o excluiria de vez dessa disputa: ele não tem notável saber jurídico, porque tudo o que defende está revogadíssimo, sepultadíssimo, ultrapassadíssimo.
Notável saber jurídico, pombas, é o saber adequado ao momento histórico em se insere o candidato, cujas opiniões encontrariam guarida nas primeiras linhas traçadas no Código Civil de 1916, na sua formulação original. Em 1850, ninguém se escandalizaria ao ouvir que o casamento se destinava à procriação. Hoje, isso soa como algo medievalesco e anacrônico, porque tira do casamento o que o casamento tem de melhor, que é a convivência entre duas pessoas que se amam, pouco importando qual é o sexo dessas pessoas, preponderando o sentimento maior, o amor.
Ives Jr não tem, pois, notável saber jurídico para ser juiz de vara de família, que dirá ter assento no STF; se essa é sua posição sobre algo que sequer comporta mais discussão entre pessoas de boa vontade, imagine-se o que pensa sobre a questão mais grave penal que hoje se coloca: a liberação inadiável das drogas e a busca de outras formas de controle e de diminuição de consumo. Imagine-se o que decidiria sobre o aborto e sua descriminalização. Imagine-se o que pensaria sobre o trabalho escravo, notadamente sendo Sua Excelência defensor beato da iniciativa privada. Imagine-se, por fim, quantas balas de prata guardaria para os direitos dos trabalhadores.
Reputação ilibada, ok. Mas, não há nele notável saber jurídico, o que nos faria esperar que se chamasse o próximo da fila, alguém não muito melhor, mas que, pelo menos, soubesse que não vivemos no Séc. XIX.
Tão ruins que estão as coisas, isso já seria um baita progresso.
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Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway. Procurador de Justiça do MPSP Aposentado.
“E se, no local onde está o crucifixo do plenário do Supremo Tribunal Federal, colocássemos o escudo da gloriosa e centenária Sociedade Esportiva Palmeiras?”. Foto: Blog do Sakamoto