Uma trilogia para repensar os consensos que paralisam a esquerda. Entrevista especial com Jean Tible

Patricia Fachin – IHU On-Line

Num momento em que a esquerda se depara com mais uma crise interna, autores como Antonio Negri e Michael Hardt são referência para muitos grupos, porque “não se omitem em tratar de várias questões polêmicas e fundamentais para repensar a esquerda”, diz Jean Tible, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo – USP, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Para Tible, a trilogia de Negri e Hardt, composta pelas obras Império, Multidão e Bem-Estar Comum, é “incontornável para pensar e fazer a esquerda hoje. Não se trata de concordar com as posições que são apresentadas nesses livros, mas eles colocam questões fundamentais e que muitas vezes não estavam colocadas dessa forma”.

Segundo Tible, a obra de Negri e Hardt é marcada pelo referencial teórico de clássicos como Maquiavel, Espinoza e Marx e tem, entre outras finalidades, o objetivo de “pensar o que seria a atualidade do comunismo, e, nesse sentido, eles trabalham a atualidade do comum, ou seja, as condições concretas e materiais, ou que tendências estariam em curso e que poderiam levar ao fim da exploração capitalista e a um novo regime ou a novas formas de organizações sociais”. E acrescenta: “Essas três obras colocam a pensar a atualidade da revolução, da luta de classe em nível global – porque essas questões atravessam as três obras –, e ajudam a compreender também as condições econômicas e políticas do que na época se discutia e hoje se volta a discutir, com o conceito de globalização”.

Jean Tible é graduado em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP, mestre pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo – USP. É autor de Marx selvagem (São Paulo, Annablume, 2013; 2ª edição, 2016) e co-organizador de Junho: potência das ruas e das redes (Fundação Friedrich Ebert, 2014) e de Cartografias da emergência: novas lutas no Brasil (FES, 2015). Essas obras estão disponíveis aqui.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Pode nos dar uma síntese das três obras que compõem a trilogia de Antonio Negri e Michael Hardt, Império, Multidão e Bem-Estar Comum? Que problemas foram expostos pelos autores nessas obras e de que modo eles os resolvem ao longo dos três volumes?

Jean Tible – É importante dizer que não sou um “especialista” na obra de Negri e Hardt, embora tenha lido os textos e tenha laços e interlocução com os autores. Essas três obras colocam a atualidade da revolução, da luta de classe em nível global – porque essas questões atravessam as três obras –, e ajudam a compreender também as condições econômicas e políticas do que na época se discutia (com a força do movimento antiglobalização/altermundista) e hoje se volta a discutir (dessa vez no contexto do Brexit, da eleição de Trump e da ascensão da extrema-direita), com o conceito de globalização. Então, Negri tenta pensar a formação do Império ligado a uma nova articulação entre Estados, empresas, organizações internacionais, ONGs, e é interessante analisar como se formam essas novas articulações. Tudo isso está vinculado a mudanças no mundo do trabalho, o que em alguns momentos os autores tratam como trabalho imaterial ou capitalismo cognitivo. Depois há uma virada no sentido de analisar a questão da guerra global (ao terror), a partir da reação estadunidense após o 11 de setembro.

Outro aspecto importante da trilogia é o surgimento da multidão. Na verdade, na própria narrativa dos autores, o Império é resultado de uma vitória do internacionalismo proletário, ou seja, veem a globalização formada desde baixo pelos trabalhadores, pela classe trabalhadora. A partir daí eles pensam a multidão como uma articulação entre classe e diferença (mulheres, negros, povos indígenas…), que seriam polos que estariam em certas abordagens tradicionais da esquerda, que não conseguem tratar, desses dois âmbitos – essa é uma questão que está, no Brasil, desde sempre nos interpelando, mas também está na Europa e nos Estados Unidos.

Outro aspecto que vale a pena enfatizar é o de pensar a atualidade do comunismo, e nesse sentido eles trabalham a atualidade do comum (para além do Estado e do mercado e suas oposições muitas vezes esquemáticas), ou seja, as condições concretas e materiais, ou que tendências estariam em curso e que poderiam levar ao fim da exploração capitalista e a um novo regime ou a novas relações e organizações sociais.

IHU On-Line – Qual é o referencial teórico utilizado por eles nessas obras e, de outro lado, a qual referencial teórico eles se contrapõem?

Jean TibleNegri cria uma linhagem ou pensa a partir de uma linha que conectaria Maquiavel, Espinoza e Marx – o que seria sua matriz filosófica. Ele é um dos grandes expoentes do que poderíamos chamar de uma “leitura operaísta” de Marx (elaborada coletivamente por vários autores na Itália a partir dos anos 1970), que é essa ideia do primado da resistência. Eles invertem o polo da luta de classes. Em geral, os marxistas estão sempre pensando, analisando ou partindo do capital e de uma subjetividade advinda do capital, e não da própria luta de classes ou da prática subjetiva dos trabalhadores. Acabam olhando mais para o polo do capital do que para o do trabalho. Negri pensa a partir do primado da resistência; esta é anterior à exploração, indicando a potência dos produtores/criadores/trabalhadores.

Na questão anterior, eu falava da multidão, que tem essa ideia de pensar a partir desse novo ciclo de lutas global, que teria origens em várias revoltas ocorridas no fim dos anos 1980 e início dos anos 1990, como os tumultos em Los Angeles em 1992, o levante zapatista ou a Batalha de Seattle, e depois o que foi conhecido como as revoltas globais, a exemplo da Primavera Árabe, ou seja, pensar a partir das lutas contemporâneas.

Negri também tem influência do pensamento francês de Foucault, de Deleuze e de Guattari, que tem um peso importante na trilogia. Outro ponto importante é o encontro de Negri com Michael Hardt – é interessante observar que, na esquerda, tivemos duplas importantes, como talvez a mais importante destas, Marx e Engels. A dupla Negri e Hardt tem uma mistura de estilos, bagagens e gerações que parece potente. Outra dupla recente, que publicou uma obra magnifica, é Davi Kopenawa e Bruce Albert, autores de A queda do céu.

Voltando a Negri, diria que ele também está tentando polemizar com o pensamento conservador em geral e também com a esquerda, especialmente com um marxismo que seria mais apegado a certos esquemas e a certas certezas de sempre (sobre o papel do Estado nas mudanças e sobre o trabalho industrial, por exemplo), como qual é o significado de classe, qual é o significado do capitalismo e da própria concepção do que seria o socialismo e o comunismo; ele tem um embate muito forte nesse campo amplo que podemos chamar de esquerda.

IHU On-Line – Que discussões, inspirações e implicações essas três obras ofereceram e ainda podem oferecer para a esquerda?

Jean Tible – São obras incontornáveis para pensar e fazer a esquerda hoje. Não se trata necessariamente de concordar com as posições que são apresentadas nesses livros, mas eles colocam questões fundamentais e que muitas vezes não estavam colocadas dessa forma. O importante é que eles não se omitem em tratar de várias questões polêmicas e fundamentais para repensar a esquerda, porque no século 20 tivemos três principais matrizes de esquerda: a social-democracia, o socialismo dito real e o socialismo terceiro-mundista ou de libertação nacional. Claro que as experiências dessas três matrizes levaram a conquistas sociais e a alguns avanços democráticos, a experiências de autonomia, mas elas deixaram muito a desejar no seu conjunto. Quando falamos da crise da esquerda, estamos falando disso – e há bastante tempo. Nesse sentido, Negri e Hardt fizeram um esforço muito grande para tentar abrir certos debates e repensar alguns quase consensos que paralisavam a esquerda, e isso vale tanto para o Brasil e a América Latina, quanto para o mundo em geral.

IHU On-Line – No ano passado, o senhor organizou um evento em que se discutiu a obra de Negri, o qual contou com a presença do autor. Que debates esse encontrou gerou e quais foram as principais contribuições para se pensar o atual momento do país e da esquerda brasileira e latino-americana?

Jean Tible – O evento “Diálogos com Antonio Negri” ocorreu durante três dias e foi organizado com a professora Vera Telles, do Departamento de Sociologia da USP, e com o professor Homero Santiago, da Filosofia. Essa foi a primeira vez que a FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP) acolheu o filósofo italiano e discutiu com ele suas obras. Tivemos a sorte de contar com a presença, dentre outros, de Marilena Chauí, Paulo Arantes, Michael Löwy, Vera Telles, Tatiana Roque, Ricardo Teixeira, Peter Pál Pelbart, Rodrigo Nunes, Salloma Salomão

Nesse encontro, chamamos pesquisadores que têm dialogado ou queriam dialogar com a obra de Negri. Durante o evento, organizamos mesas de comunicações e, no fim da tarde, pesquisadores dialogavam com a obra do dia, com a presença do Negri, que dialogava com as intervenções anteriores. No começo da noite, ocorreram conferências sobre o Império e o Comum, e também um diálogo entre os conceitos de multidão e bem-viver, com o equatoriano Alberto Acosta, numa atividade em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo e a Escola da Cidade. Tentamos discutir as obras recentes de Negri e Hardt num espaço onde ela não tinha sido tão discutida. O que buscamos fazer foi promover esse diálogo em torno do pensamento dele, e o evento deve resultar numa pequena publicação ainda neste ano. O vídeo do diálogo Negri-Acosta pode ser visto aqui, e os áudios de toda a atividade, gravados pelo pesquisador João Tonucci, podem ser acessados aqui.

É importante dizer que várias atividades foram organizadas por conta da vinda do Negri, como a conferência sobre Foucault, no Sesc (disponível aqui), e o lançamento de quatro livros, com as editoras Autonomia Literária e n-1, inéditos no Brasil, como Marx além de Marx, que é um clássico. Na talvez atividade mais importante da vinda dele, organizamos uma assembleia com vários movimentos sociais e coletivos na Casa do Povo, da qual participaram desde um quadro importante dos metalúrgicos do ABC, militantes do MPL [Movimento Passe Livre], secundaristas, artistas, anarquistas, autonomistas, militantes do movimento negro, do movimento estudantil, pessoas ligadas a partidos de esquerda, como o PT e o PSOL, ou seja, tentamos chamar um amplo espectro da esquerda para dialogar com Negri. Quase todos fizeram intervenções e, no final, o Negri buscou dialogar com as falas dos movimentos e coletivos de São Paulo. Tentaremos incluir essas trocas no livro a ser publicado (Fábio Zuker escreveu um relato que deve se tornar público em breve).

É interessante que o Negri tem uma relação muito forte com o Brasil, e a primeira viagem dele para fora da Europa, após sair da prisão, foi em 2003, a convite do então ministro Gilberto Gil e organizada pela Universidade Nômade. Depois ele veio ao Brasil em diversas outras oportunidades e estava, desta vez, muito curioso para tentar compreender o que tinha acontecido no país, a questão do golpe e o declínio do que se chamou de ciclo progressista na América Latina, que o tinha entusiasmado. Nesse sentido, Negri também aproveitou a viagem e seu intuito de compreender a conjuntura brasileira e latino-americana para conversar com intelectuais e militantes, como, por exemplo, um dos líderes do MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem Teto], Guilherme Boulos.

Sobre as percepções dele a respeito do Brasil, prefiro remeter a uma entrevista que a Tatiana Roque e a Rosana Pinheiro-Machado fizeram e que foi publicada no El País; na entrevista, é possível ler as próprias palavras do Negri. Há também o relato de viagem que ele escreveu e está publicado (em italiano) na EuroNomade.

IHU On-Line – O senhor foi o organizador de Junho: Potência das Ruas e das Redes (Fundação Friedrich Ebert, 2014) há dois anos. Que avaliação faz de junho de 2013, quase quatro anos depois?

Jean Tible – Junho de 2013 abre um novo ciclo, é uma disrupção, é um momento importante de uma mobilização inédita a partir dessa faísca produzida em 13 de junho, pelo MPL e pelo enfrentamento à repressão policial. Junho foi a faísca de um descontentamento que estava presente, e podemos pensar tanto na tomada do Congresso pelos povos indígenas semanas antes de junho, como nas ações que ocorreram em São Paulo após a proibição da marcha da maconha. Também havia um descontentamento generalizado com a questão do sistema político, mas também com o inferno da vida nas cidades, com a questão do transporte, com a má qualidade dos serviços públicos.

Um ponto que considero importante é que todos os poderes constituídos ficaram com medo em junho de 2013: banqueiros, donos de meios de comunicação, políticos, e esse é um ponto chave de junho. Lamentavelmente a esquerda no governo não conseguiu dialogar e trabalhar essa energia social que clamava por bandeiras que não eram tão distantes das suas e, no fim das contas, a direita e os setores conservadores conseguiram compreender melhor esse momento que se abriu. A partir daí, tanta coisa aconteceu: passamos por um golpe cujas consequências ainda estamos vivendo e vamos viver ainda mais. Abriu-se um período de revanche daqueles que nunca saíram do poder, mas já não estavam mais satisfeitos com o espaço que tinham. Com isso, temos uma porteira aberta para talvez perdermos várias conquistas recentes e para se ter uma repressão ainda mais acentuada.

Temos aí um cenário muito adverso. Ao mesmo tempo, me parece importante que os últimos 15 anos do país também deram mais gás e força para novas subjetividades e isso está colocado em uma série de lutas de muitos coletivos, lutando pela questão antiproibicionista, do movimento negro, dos povos indígenas, dos secundaristas, a luta pela educação pública de qualidade, uma força política das periferias; tudo isso compõe uma nova subjetividade que tomou corpo e que talvez consiga criar novos corpos políticos para fazer frente a essa situação e para conquistar e constituir novas relações mais igualitárias e mais livres.

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